terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O sentimento da história



Caro Lizzani,

estou de acordo com o que dizes; poderia mesmo te poupar desta resposta, na realidade. Se te respondo, faço-o de modo pretextual. Portanto: é verdade. Por sua natureza, o cinema não pode representar o passado. O cinema representa a realidade por meio da realidade: um homem por meio de um homem; um objeto por meio de um objeto. Em certo modo, inexato, habitual, pode-se mesmo dizer que o cinema, como langue, é por si só naturalista (um "infinito plano-sequência", já o chamei). Portanto, se quero te representar em um filme, Carlo Lizzani, eu te represento por meio ti mesmo; se, em seguida, quero te representar por meio de um ator "que te interprete", posso talvez te trair, mas não o espírito da época que tu, o ator e eu vivemos em comum. A capacidade de se transfigurar do ator é um momento superior; antes de tudo vem da possibilidade objetiva do cinema - enquanto langue, código, sistema de signos - de representar um momento histórico (o atual) por meio de coisas, fatos, personagens atuais.
Assim, eu jamais teria podido representar Medeia: não só isso; mas nem mesmo por meio de nenhuma outra mulher do tempo de Medeia que a interpretasse. Para representar Medeia chamei Callas: o que é uma falsidade. Jamais Callas - como de resto, em menor medida, as pedras e o mar de uma paisagem de hoje - teria podido regredir no tempo, "ser Medeia", isto é, a verdade, a autenticidade. A câmera (nos filmes de autor) "rejeita" os falsos; desmascara as maquiagens; evidencia cada mínimo erro; e quanto à má fé, a faz pagar até o fim, sem nenhum instante de hesitação ou de piedade. Isso o sei bem. Portanto, nos meus filmes históricos nunca tive ambição de representar um tempo que não existe mais: se tentei fazê-lo, foi por meio da analogia: isto é, representando um tempo moderno de algum modo análogo àquele passado.
Há ainda lugares no Terceiro Mundo onde acontecem sacrifícios humanos; e existem ainda tragédias da inadaptabilidade de uma pessoa do Terceiro Mundo ao mundo moderno: é esse persistir do passado no presente que se pode representar objetivamente. É verdade, assim, que o cinema (Barthes-Jakobson) é essencialmente metonímico; mas no caso de um filme histórico de autor, ele é também, e totalmente, metafórico. De fato, o passado torna-se uma metáfora do presente: em uma relação complexa, pois o presente é a integração figural do passado. Como construir essa metáfora? Por meio tanto da invenção poética e quanto das referências culturais: o limite baixo de todo filme histórico de autor é o maneirismo (veja no meu filme a reconstrução de uma obra de bem estar meta-histórica, uma Corinto alexandrina "pensada" com base na pintura maneirista do Quinhentos etc.). A invenção poética (suponho) teve um melhor desempenho na primeira parte do filme, na qual o sacrifício humano, além de ser uma realidade ainda objetiva, é um "lugar do espírito" (o espírito religioso, e a psiqué, com seus sadomasoquismos).
Assim, caro Lizzani, procurar no cinema a "representação do passado" é tarefa injustificada, porque ou tal representação é falsa ou totalmente maquiada (filmes comerciais) ou não pretende ser real (nos filmes de autor) mas, repito, simplesmente metafórica. Pois, sabe-se, o "sentimento da história" é uma coisa muito poética e pode ser suscitado dentro de nós e comover-nos até as lágrimas por qualquer coisa, porque o que nos chama a voltar atrás é tão humano e necessário como o que nos impulsiona a andar adiante.

Pier Paolo Pasolini. Il Sentimento della Storia. In.: Saggi sulla letteratura e sull'arte. II. a cura di Walter Siti e Silvia De Laude. Milano: Arnoldo Mondadori, 2008. pp. 2818-2820. (O texto foi publicado pela primeira vez em "Cinema Nuovo, XIX, 205, maggio-giugno 1970") - Tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: Eugène Delacroix. Medea matando seus filhos. 1838. Musée du Louvre, Paris.

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