domingo, 5 de fevereiro de 2012

Cartas e delírios impossíveis



Para minha destinatária impossível.

Querida, pode ser que tenhas estranhado minha longa demora. Estive suspenso, em suspenso, titubeando entre o vagar solitário do lobo hesseano e a companhia constante de Tânatos. Mas, inesperadamente, uma matilha de outros lobos passou pela minha estepe e as asas do anjo mortal entrelaçaram-se com Eros sem que eu tivesse chances de abraçar um ou outro. Talvez, também, todo o tempo em que não escrevi tenha sido cifrado pela minha obsessão por escrever; talvez a carta faltante seja já parte do romance-carta que há tempos planejo escrever; talvez escrever tenha se tornado algo duro demais e a inserção de letras na página branca seja agora um derradeiro e definitivo gesto tatuador. Não sei, querida, mas estou cansado das metáforas; estou farto de dizer coisas que coisas não são senão "como" coisas. O vagar pela estepe e a companhia fantasmática da pessoa da morte encheram-me do desejo de "dizer as coisas", como (e, mais uma vez, quando me dou conta já estou com as metáforas) a criação do deus das quatro letras. Não, querida, não se trata de uma conversa, de um diálogo, de uma carta que espera por resposta (acho que, uma outra vez, já lhe falei que sempre escrevemos para nós mesmos, não?). Não há troca, há um dom - e sinto doação e danação (o velho lobo que se dá ao tempo das caminhadas gélidas e solitárias; o velho tolo que sente incessantemente a presença de Tânatos) como nosso irrefreável destino. Dar-se à morte, mais do que se doar ao Outro. Pois é, querida, tudo delírio por me faltarem as chances de suprimir as metáforas; tudo fruto da impossibilidade de dizer as coisas. E como hei de escrever um romance-carta? E como narrar algo que escrevo para mim mesmo? E como continuar a lhe escrever cartas (as falácias do delírio; as quase crenças de que tu poderias me ouvir ou ler; as sombras daquele abraço entre Eros e Tânatos) se não mais posso borrá-las, se, a partir de agora, elas se tornam tatuagens em meu próprio corpo? Querida, não posso senão lhe enviar isto, uma sombra de carta, uma sombra de um devaneio do qual não consegui apagar nenhuma linha...

Do seu remetente impossível.

p.s.: mando também, talvez como reflexo desta carta, a foto de um dos estudos de Bosch sobre monstros.

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