Solitário em uma cidade medieval desconhecida e vazia, em um terraço, munido de uma garrafa de vinho quente, tive uma iluminação profana. Não sei se ela foi causada pela minha tristeza, pela bebida, pelo cansaço de uma caminhada recente ou pelas milhares de andorinhas murmurando o tempo naquela pequena ilha de pedras brancas em meio à monotonia verde de sombreiros e oliveiras.
Lembro-me de ter entornado a garrafa e ter chorado um bocado. Percebi que tinha envelhecido, senti no rosto o soco ontológico de se sentir vivo e ter de responder, mais uma vez, ao demônio de Nietzsche.
A epifania foi quebrada por uma garota japonesa irrompendo no terraço munida de uma câmera. De forma angustiada, arrumava rápido seus apetrechos para gravar o espetáculo das aves vespertinas. Sem parar para ver - sim, ela não via - começou lançar sua objetiva ao horizonte, como se estivesse a caçar. Em um inglês canhestro perguntei a ela: ei, menina, você pensa que é imortal?
Diante da perplexidade de minha pergunta, dada em um tom agressivo, lancei: você julga que salvará estas imagens em sua máquina, supõe que poderá desfrutá-las ainda no futuro, que está segura contra o tempo, contra estas intempéries. Mas este futuro não existe. Nada de nós se salva. Há isso, agora, somos este som, esta intempérie, este cheiro de comida no ar, este sol que cai atrás do horizonte, e você perde. Você se perde. Isto é muito deprimente.
Ela deve ter me julgado um psicopata, pois desceu correndo as escadas.
Uma epifania parecida me surgiu caminhando pelos morros desta cidade confusa e brutal que é São Paulo. Na rua Francisco Isoldi, uma viela em forma de ladeira na divisa de dois antigos bairros literalmente saqueados pela classe média-alta paulistana, um artista plástico deu um grito contra o absurdo dos gigantescos condomínios fechados da região, e transformou uma antiga e humilde casa, (ainda) remanescente, numa imagem dialética arquitetônica, um soco estético na cara destas pessoas, os trancafiados nos carros e condomínios fechados, que também se julgam imortais.
4 comentários:
J., lembro-me de um poema de Murilo Mendes de que gosto muito:
Coisas, e a morte que existe nelas,
Experiência de desconsolo e de fatalidade
Para as pálpebras que voltaram do amanhã:
Coisas do cristal e do pêssego,
Vacilações da onda fria do veludo;
Coisas sem ângulos e sem vértice
Que no mesmo dia nascem e morrem;
Coisas da letra, não da combinação das letras,
Mas da letra em si;
Coisas do fogo que se transferem ao ar,
Coisas do fim que se transferem ao princípio,
Coisas que poderiam ser restos de roupagens de anjos,
Mas que em bastidores de teatro nem se usam.
Coisas da ligação de certos objetos
Que separadamente nada significam para nós;
Coisas do céu que se encontram por antecipação,
A chama de Pentecostes conservada
Para que o mundo não se entregue ao rio,
E a medalha com o olhar da minha mãe;
Coisas amadas que se atiram ao lixo
E coisas sem valor que divinizamos.
A cinza de todos os dias
Evocada somente na quarta-feira de cinzas:
Saber que todo este pó desce de Deus
Que no final dos tempos
Provará as coisas pelo fogo,
Tudo o que deixaremos no mundo
Para experimentar a prova do fogo:
Exceto nossa alma despojada de coisas
Que tateia nas trevas,
Pesquisando o arquétipo de onde veio.
“movemo-nos na noite escura e somos devorados pelo fogo”
(uma mensagem debordiana, garimpada pela Suellen, encontrada ontem em garrafas perdidas na casa do velho Marechal)
A menina [cega] com sua máquina fotográfica me lembrou uma passagem do velho Vilém Flusser.
"(...) vales são os lugares nos quais os discursos das planícies são dialogados. Por isso, vales são os lugares de pensadores e de poetas. Desde Heráclito até Nietzsche. Desde Davi até Rilke. Mas não para profetas. Profetas não habitam vales. Meu mapa não comporta profetas. Devo Ampliá-lo.
Profetas passam pelos vales e sobem até o cume da montanha. Dão um passo além dos habitantes do vale. E depois voltam. Na volta, nem sequer descansam no vale que atravessam. Dirigem-se à planície para contar sua "nova". Contam a vista que tiveram no cume. Para eles, o vale é canal entre planície e cume, e entre cume e planície. (...)
Quem jamais subiu pelo vale jamais viveu. Vegeta no plano. A terceira dimensão, a do sublime, lhe falta." (in Natural:mente, Vales, Vilém Flusser, editora Annablume, 2011)
Sublimemente feliz por encontrar belos textos como este e como "Sobre epifanias e ascos", Letícia Amaral, seis de outubro de 2012, manhã de sábado
obrigado pela leitura e pelo trecho de Flusser, Leticia. Um grande abraço.
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