quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

À destinatária impossível


Para minha destinatária impossível.

Querida, sinto por escrever-lhe novamente. Não um lamento, um sinto muito, não. Sinto que os anos, essas máquinas vorazes de Saturno, mastigam minha cabeça e rasgam meu peito enquanto luto para escapar de suas presas. Sinto porque parece que ainda assim as passadas da vida dão ares luxuriantes para esse caminho sem volta ao ralo da morte. Sinto porque, como um velho perdido em sua viagem vertical, decidi ocupar o tempo que me resta, sabendo que, nessa luta contra Saturno, resta-me todo o tempo do mundo. E meu sentir, querida, não é lamento, pois entre os gritos do meu nascimento e os suspiros da morte por vir não há somente uma perda desenfreada e esdrúxula (para a qual tendemos quando os ventos da melancolia tocam nosso rosto), mas, como na música, há síncope, um juntar (syn - com) e um cortar (cope - romper), um ritmo que meus ouvidos deixam entrar docemente para me guiar ao nosso impossível encontro. O velho Itamar Assumpção - que, digo, criou-se onde também me criei -, na sua empresa extratora de petróleo musical, cantava o impossível, suponho, também a uma sua destinatária impossível. Que tal o impossível?, dizia ele. Eu, porém, querida, penso que talvez seja sua impossibilidade sincopada, ritmada, pronta para juntar e cortar seus tempos numa melodia que talvez eu nunca escute. Pode ser (ou pode não ser) que jamais juntemos nossos impossíveis, aliás, por que haveríamos de juntá-los se sincopamos em ritmos diversos? Não poderia, portanto, como o Itamar, sugerir-lhe o impossível, pois este já é para nós intransponível. Sinto agora o som quase sibilino de sua impossível voz ao ler esta curta carta; sinto o ritmo de sua respiração; sinto o movimentar de seus olhos ao acompanhar estas linhas; sinto o ritmo sincopado de seu coração; sinto, no tempo mesmo em que escrevo, seus dedos segurando esta impossível folha de papel. Sinto agora todo o tempo do mundo que me resta ocupado, pois enquanto escrevo e enquanto você lê, sincopamos uma vida impossível.

Do seu remetente impossível.

p.s.: minha mania de pós-escrever continua. Desta vez, porém, apenas para falar que o cartão que mando junto com esta carta impossível é do Fra Angelico, que também esboçava seus traços nos lugares das músicas impossíveis, os missais.

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