sábado, 9 de fevereiro de 2013

O que é o "facebook"?


Tive um amigo que estudava Platão e gostava, muito, de jogar xadrez. Era um pai de família dedicado que lecionava em duas faculdades e escrevia uma tese sobre o Fedro. 

Foi a primeira pessoa que conheci em São Paulo. Enfrentávamos, na condição de bolsistas interioranos, a rotineira canalhice acadêmica e uma cidade hostil.      

Lembro que conversávamos por correio eletrônico sobre como conseguir prorrogar prazos e questiúnculas de doutorandos solitários quando, sem mais receber mensagens e vendo sua página de "facebook", deparo-me com a seguinte situação (ou a invento de memória): 

- Caro K, você está em Deus, ele escolhe os Seus. Descanse em paz. 

(Dez pessoas "curtiram" isso). 

- K. Saudades eternas, nos vemos do outro lado. 

(40 pessoas "curtiram" isso). 

E assim por diante. 

Supondo estar diante de uma alucinação, ou de piadas sobre teses platônicas intermináveis, recebo um e-mail da secretaria da pós-graduação avisando-me do pior. 

Meu amigo havia sido atropelado e estava morto.   

Relembrando, ou melhor, perlaborando este evento depois de alguns anos, vejo-me novamente com o estranhamento causado pelas mensagens de "facebook" ao amigo morto. 

Ali se revelou, para mim, a verdade deste aparato. Verdade não no sentido técnico-formal de uma definição (apologética) das redes sociais e a imbricação destes dispositivos ao capitalismo informacional, à sociedade do espetáculo, etc. etc. Estas análises tocam, talvez, apenas a epiderme do significado histórico-antropológico do "facebook". 

Em um mundo de subjetividades fantasmáticas e condenadas ao esquecimento massivo, o "facebook" é uma precária prótese de memória. 

O "facebook": milhares de Narcisos viciados em se olhar em pequenas poças. Cada uma destas poças, minúsculas, se conecta com as demais. Uma tentativa, desde sempre fracassada, de que as imagens de cada um destes Narcisos drogados lancem reflexos no líquido viscoso que compõe a totalidade das pequenas poças. O desespero infernal de se chegar à Imagem Matricial (que nada mais é que o Nada translúcido e espectral de toda imagem de si). 

Stalker (de Tarkovsky) matizado de azul bebê. O líquido das poças pode ser o vômito de um menino assustado chamado Mark.        

Cada vez que vejo o "facebook" não deixo de pensar em grandes cemitérios memoriais contendo milhares e milhares de fotografias de espectros. Um monumento à frágil memória de eidola viventes. Tumbas online.

Barthes: toda fotografia é espectral, um eidolon. Não só por sua dimensão imaginária, seu suporte fantasmático, mas por ser uma autenticação daquilo que não mais é. A imagem do morto. "Pois não sei o que a sociedade faz de minha foto, o que ela lê nela (de qualquer modo, há tantas leituras de uma mesma face), mas quando me descubro no produto desta operação, o que vejo é que me tornei Todo-Imagem, isto é, a Morte em pessoa."    

7 bilhões de pessoas movendo-se, em uma pedra musguenta aquecida por uma estrela, na escuridão da noite cósmica. Embriagando-se, fumando pedras ou lançando dados no "facebook".                    

"Facebook" é a apokatastasis infernal de um presente contínuo e asfixiante. "Restitutio in pristinum statum": neste inferno, que não leva em conta a passagem do tempo (e a memória dos eventos concretos), sua namorada de infância - casada e com filhos - conviverá, na suposta harmonia de um paraíso virtual, com seu colega de trabalho, com seus pais, irmãos, primos distantes e nunca mais visitados, com o cunhado drogado, o tio folgado, com a moça embriagada do boteco de ontem à noite, com o patrão assediador, com a atual namorada e, sim, com os amigos de colégio, inclusive aqueles que faziam troça de si, mas isso apenas você lembra. 

O "facebook" é cumulativo ao modo Funes, mas aplicado às relações humanas e suas pequenas memórias e sordidezes.  

O "facebook" colocou um fim ao benfazejo luto entre-vivos.  

A grande metáfora da passagem do tempo está nos convivas proustianos reencontrados pelo narrador. O tempo é visto nas rugas, nas papadas, nos cabelos brancos de cada um. O tempo é a morte. O narrador é tomado por um estado de comoção ao perceber estas mudanças, a morte moldando a vida, o corpo exposto ao tempo, a mente ao esquecimento.  

O "facebook" é antiproustiano por excelência: a morte, a distância e o esquecimento são ali interditados. 

Mas não se brinca impunemente com o tempo. Nada mais perturbador que "fazer uma amizade numérica" com um(a) absolutamente estranho(a) outrora familiar. Nada mais melancólico que falar com fantasmas. Nada mais abjeto que espectros "curtindo" um grito de socorro no baile macabro da Gurizada Fandangueira.   

Um tapa na cara daqueles que argumentam sobre os riscos à "privacidade" nas redes sociais. Desde Simmel sabemos que a privacidade está vetada na grande metrópole capitalista. A principal vítima do aparato deste canalha chamado Mark Zuckerberg é o mundo enquanto tal, a possibilidade de gestos e experiências mundanas e suas memórias de pele. 

Compartilhamentos ("cum panis") de pães efetivos, não da miséria metafísica. 

O "facebook" é a fábrica gestora de fetichistas auto-centrados e resilientes. 

A mercadoria encarnando-se em pessoas. 

Studium macabro: captura dos gestos excessivos - o jogo, o prazer, o "investimento" não utilitário - na formação de um cadastro babélico, feito prazerosamente pelos próprios governados, para servir de uso à CIA e companhias de marketing. 

O Bloom-Narciso viciado em si mesmo trabalhando, boa parte de seus dias fugazes sobre a terra, para construir um panóptico rizomático com tons azul bebê.  

O rosto, último reduto da nudez e da visibilidade, tombado no livro de um catalogador de campo virtual.  

Ora, e os ativismos? E as "primaveras" desencadeadas pelas redes sociais? E "los indignados" e o movimento "occupy", a guerra de posição virtual? 

Onde eles estão? Que revolução é esta que exige postos de trabalho? Pois, na ótica do "facebook", que plasmou uma cultura política deletéria, todos estamos ligados a empresas e marcas, nem que seja uma Ong "alternativa".       

O questionamento começa pelas formas, pelo medium que pode limitar ou expandir os limites do possível e do vivido. Política à maneira analógica. Práxis: todos os manifestos "facebookianos" não atingem o nível de materialidade de uma pichação barata. 

Recuso-me a conceber que os Mark's Zuckerberg's estejam com a razão. 

Quis custodiet ipsos custodes? 

Quién vigilará a los vigilantes? 

Nenhum comentário: