Para minha destinatária impossível
Querida, esboço laços solúveis entre as palavras e as coisas, mas nenhum deles dura mais que alguns segundos, uns poucos instantes entre um piscar e outro, entre a visão de Íris (a deusa das mensagens divinas) e a íris, que abre a porta de entrada da luz. A cada piscar, lembro-me de você soltando os cabelos, do mesmo modo como agora tento soltar esses laços que acabo de esboçar. A carta se faz presente pouco a pouco, tingindo a folha branca que, como a fita que prendia seus cabelos, agora se desfaz em letras soltas. Mas o presente, que é sempre a condição de uma carta, é também o futuro que se verte em palavras, na ânsia de estar aqui, desenhado, e nada mais. Drummond uma vez lhe enviou uma tartaruga de futuro, mas eu, na condição de passado, encho de areia as rugas da carapuça e finjo ser ela a ampulheta da felicidade, uma outra porta à luz que Íris insiste em mandar. Talvez minhas palavras hoje lhe soem confusas, querida, mas fundido em desesperança estão meus sonhos, todos eles já sonhados outrora, no mundo que jaz no laço que, mal esboçado, solta-se no chão do quarto por onde zanza a tartaruga e onde porventura vivemos noites confusas: meus pés com os seus, minhas mãos com as suas, seus cabelos com os meus. Mas por que lhe digo isso se você é apenas o impossível? Por que escrevo mais uma carta que só diz impossibilidades? Talvez porque certas palavras são demasiado duras para não serem escritas, para permanecerem guardadas nas coisas. Porém as coisas não querem palavras para dizê-las e, assim, riem do meu laço que se esvoaça na distância que esta carta tenta preencher. Para que insistir, me pergunto. Para que tecer sentidos se dos cinco que temos nenhum é capaz de dizer palavra? Por que as imagens de Vermeer continuam a me sondar como se as cartas que leem suas mulheres fossem estas que lhe escrevo? E por que não pensar que, de fato, você poderia ser uma dessas impossíveis mulheres do pintor? A confusão das noites agora é toda minha, querida. Já não há seus pés, suas mãos e seus cabelos, mas apenas esse laço solúvel que se desfaz a cada letra que rabisco.
Do seu remetente impossível.
Imagem: Johannes Vermeer. Mulher com sua empregada segurando uma carta. 1667. Frick Collection, New York.
2 comentários:
Que melancolia!!!!! Prefiro enviar cartas para o possível, ou para torna-lo possível.
comme tu veux!, anônimo... preferir é se abster de si em prol de um espelho... Mas assim caminham as palavras, não?
Postar um comentário