terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Bater em retirada, um manifesto guerrilheiro



Texto achado no chão de uma ocupação da República, Pauliceia Desvairada, fevereiro de 2015.  


Os limites claustrofóbicos impostos às ações que busquem uma outra configuração da ordem do mundo – forma Estado-Capital mundializada, com suas dimensões tentaculares expressas no mercado internacional e na sociedade do consumo – debatem-se hoje com a impossibilidade da busca clássica por hegemonia, seja porque dificilmente conseguirão chegar às esferas decisionais sem alterar os princípios que fundamentam suas ações, seja porque não há mais um espaço comum de interlocução e convencimento político, associado desde o séc. XVIII ao termo “espaço público”, que poderia limitar ou interromper o vínculo de servidão das grandes massas à maneira estabelecida de vida, tornada naturalizada.

O que resta, portanto, à política, entendida como o campo de abertura das possibilidades de novas formas de vida? Em limites tão restritos, qual deve ser a estratégia? Como não sucumbir à derrota?

É preciso, antes de tudo, evitar as mistificações. Uma das características dos movimentos atrelados às mais recentes manifestações no Brasil, seja às chamadas jornadas de junho de 2013 como nas iniciativas contestatórias à Copa do Mundo de 2014, é a evidente negligência com a forma-Estado. Seja na maneira como buscam combate-la, em confrontos com os aparatos policiais que beiram ao ridículo – usando de fogos de artifício, pedras e instrumentos artesanais – ou na reação caricata quando surgiram as primeiras prisões: o apelo histérico aos  “direitos humanos”, às decisões judiciais “heroicas” no interior de uma máquina judiciária infame, à tentativa de separar drasticamente os detidos nas manifestações como “presos políticos” (pois, em sua maior parte, membros da burguesia) dos demais “presos comuns”, como se fosse possível fazer uma luta revolucionária dentro da legalidade, com proteções e imunidades em face do próprio Estado que visam destruir.

A iniciativa destes grupos apresenta-se como desastrosa, pois - com provocações distantes de uma estratégia abrangente e fundadas no puro espontaneísmo, dependentes do aparato espetacular da mídia (seus ativistas poderiam ser chamados de dublês de revoltados para consumo rápido dos telejornais, tendo como estereótipo vulgar a figura anódina do black-block), crendo piamente num fantasmático papel educativo do gesto veiculado massivamente, - levaram a um retrocesso na luta contra as forças policiais do Estado, fomentando de forma gratuita e não tática o fortalecimento destas, estimulando a opinião pública, facilmente cooptada pelos grades veículos massivos, a apoiar o fortalecimento e o estatuto intrínseco da polícia na contenção de tudo aquilo que pareça fugir à normalidade asfixiante. Aparatos policiais que já possuem um poderio técnico e de contingente cada vez mais inaudito. 

Disto se extrai uma importante tese em torno dos limites para ação política de esquerda: o estrito ativismo e a manifestação pública de massas apresentam-se inócuos no fim de superar as formas policiais do Estado em suas configurações contemporâneas. Os aparatos policiais se autonomizaram, mantendo-se impermeáveis à domesticação política, mesmo em nações ditas democráticas. Na sua configuração contemporânea, o poder policial se manteria mesmo na remotíssima hipótese de uma mudança de regimes, se isso fosse possível dentro do modelo político vigente. Esta autonomização e soberania da polícia se agrava em países onde o debate parlamentar apresenta-se como uma extensão da organização policial (vide a bancada da bala no Brasil) ou com poderes Executivos que usam da polícia como um ininterrupto braço de sustentação, mesmo em governos ligados a partidos autoproclamados "sociais-democratas".    

É preciso que a política de esquerda seja atravessada por uma preocupação com as dimensões técnicas, logísticas e a-significantes que determinam a forma-Estado no presente. Não basta um corpo-a-corpo com a polícia de forma amadorística, despreparada de artefatos e sem qualquer forma de organização. Uma política de esquerda que não encare de frente a manifesta superioridade da indústria capitalista de defesa, munida de armamentos impensáveis mesmo para as tecnologias existentes até o fim séc. XX (os Estados mundiais, hoje, podem dispor até mesmo de armas de micro-ondas capazes de conter levantes massivos em raio de quilômetros, desenvolvidas pelo Estado chinês), e que hesite em combater neste campo específico está fadada, de forma irremediável, ao fracasso.             

Obviamente, a dimensão do agir político, principalmente quando busca instaurar algo de novo no mundo, de forma não violenta, não está excluída de antemão. Ocorre que mesmo este agir estará condenado à impotência se limitar-se a ser apenas um instrumento reivindicatório no interior da forma-Estado estruturada. É impensável, nas condições do presente, imaginar um amplo levante revolucionário que levaria a minar a legitimidade do Estado, conduzindo, de forma automática, a um despertar de consciências, fazendo com que a própria polícia deponha suas armas e passe para o lado dos revolucionários. As últimas revoltas presenciadas no mundo árabe só nos demonstram um truísmo na política contemporânea: Estados sem qualquer resquício de legitimidade conseguem se manter a despeito desta “insustentabilidade” no plano dos princípios, mesmo quando atuantes na lógica do “um contra todos”. Os dispositivos policiais e de segurança permitem esta sobrevida fantasmagórica da forma-de-lei de maneira ininterrupta e com longa duração.

Portanto, toda a ação política de esquerda que pretenda um mínimo de coerência e capacidade de alteração das atuais coordenadas da forma-Estado, que não pretenda se limitar ao papel de gestora de um deus insondável chamado mercado internacional, tem de ser uma ação revolucionária.                 

Só a revolução, incluindo a luta armada em seu plano tático, no sentido sentido militar e não pirotécnico desta luta, tem chances de vencer e destruir o aparato policial, mas é preciso reconhecer que longe estamos das condições de uma revolução Russa ou Cubana nos países hoje assolados pelo capitalismo financeiro mais escandaloso. Primeiro, mesmo que a revolução conduza um grupo de pessoas ao poder, e que estes assumam a condução dos dispositivos estatais – não se pode pensar o Estado como uma unidade monolítica e mitológica – dificilmente conseguiriam instaurar uma nova forma das ruínas da antiga, dado que a presença do passado e da tradição é mais poderosa em momentos de declínio, e que não poderão e nem deverão contar com o apoio massivo da população deste determinado território: este apoio é imponderável e inevitavelmente entrar-se-á na fantasia da representação. Ou, no plano tático, seria muito difícil contar com tal apoio, visto que a guerra civil poria um termo nas comodidades cotidianas do homem médio capitalista (nas atuais condições, muitos pegariam em armas por uma conexão de internet ou para manter seu automóvel queimador de petroquímicos).

A revolução de nosso tempo só pode partir do reconhecimento de várias derrotas, está longe de adotar o vocabulário triunfal e otimista das revoluções do séc. XIX. Derrota dos princípios do Esclarecimento, de que seria possível educar e emancipar o homem pelo homem a partir do discurso racional e do livre convencimento (uma derrota imposta pela sociedade do espetáculo), derrota das possibilidades da política estatal, assimilada à vitória do mercado econômico sobre todas as esferas da vida humana: a metafísica do mercado auto-regulador só demonstra sobreviver no interior de um intricado hospedeiro chamado Estado. Derrota da ideologia de que inevitavelmente o progresso técnico, e com ele o futuro, carregará consigo melhores condições de vida.
   
Como reconhecimento da derrota, a revolução, hoje, só pode pode ser uma maneira de batida em retirada. Não pede tréguas, não foge, mas luta para evitar que a tragédia seja pior: que, no momento de sua derrota, abra flancos para que o inimigo desfira o golpe fatal. Ataque mortal às possibilidades intrínsecas de um movimento de esquerda efetivo (e não apenas fantasioso), algo que já está prestes a ser operado se o rumo da máquina que se tornou o mundo permanecer tal como está. 

O mito revolucionário oitocentista da guerra total, cujo corolário é a guerra civil global, está atrelado à suposição da busca por uma centralidade, seja do Estado, seja do poder, entendidos estes como entidades monolíticas.

A revolução, nas atuais contingências, só pode ser uma espécie de foquismo guerrilheiro.      

A revolução mobiliza, acima de tudo, novos afetos e novas subjetividades políticas. O(A) guerrilheiro(a) não teme, mas busca a ilegalidade. Não pode esperar proteções, imunidades, ou regalias do Estado que ele busca esfacelar. Sua posição é a mais perigosa de todas, exigindo uma disciplina ascética que poucos teriam a coragem de suportar. Na política, o(a) guerrilheiro(a) arrisca a própria vida.

Exemplo concretos, aplicados ao contexto brasileiro: 

Uma guerrilha rural lutaria para evitar que toda a região rural brasileira se torne espaço desertificado por pastos e grandes plantações de monocultura: não buscará derrubar os aparatos centrais, mas criar ilhas de emancipação e resistência de formas tradicionais de viver, ao estilo zapatista. Não pretende ir até ao deserto urbano, quer se proteger dos ataques que inevitavelmente sofrerá, não só do Estado, mas dos jagunços pagos pela grande indústria agropecuária – hoje, um dos cernes de sustentação do próprio Estado brasileiro. 

No campo, é preciso semear faxinais e comunas, fazê-los florescer e frutificar. Defender com armas e formas livres de produção as áreas ainda preservadas, agindo no apoio a índios, quilombolas e faxinalenses, mas também criando áreas autônomas que não visam a temporariedade. Para não ser dizimada, a guerrilha será um conjunto de colunas nômades, lembrando da experiência da Coluna Prestes. 

A guerrilha urbana, longe de atacar os prédios públicos e simbolicamente ocupar o poder, busca instaurar nas cidades multiplicidades de espaços para além do agenciamento estatal. Seus principais inimigos: grandes corporações financeiras, a polícia, especuladores imobiliários, a indústria petrolífera e suas irmãs em mutualismo predatório: a indústria automobilística e a política urbana voltada à construção de grandes avenidas para a circulação de automóveis, produtora de não-lugares e de lixo arquitetônico.

 A segurança e a seguridade, definitivamente, não são horizontes de um foco guerrilheiro.   



Nenhum comentário: