domingo, 15 de março de 2015

A guerra civil paradigma da política

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Stasis, de Agamben, conclui Homo Sacer.
Andrea Cavalletti 

“Hoje há tanto uma “polemologia”, uma teoria da Guerra, quanto uma “irenologia”, uma teoria da paz, mas não existe uma “stasiologia”, uma teoria da guerra civil”. A partir desse diagnóstico, Giorgio Agamben constrói seu novo livro, “Stasis. A guerra civil como paradigma político, Homo Sacer, II, 2” (Bollati Boringhieri, 2015): trata-se da reelaboração de dois seminários ocorridos na Princeton University, em outubro de 2001, que agora são reunidos e compostos como última peça do mosaico Homo sacer. Na ordenação de toda a obra, esse novo volume segue “Estado de Exceção” e precede “O Sacramento da linguagem”, isto é, situa-se no ponto nodal da seção II, dedicada às formas jurídico-políticas e ao governo, e que se conclui com a “genealogia teológica” da economia, ou seja, com “O Reino e a Glória” (cuja exata numeração é II, 4 e não II, 2, como se lê, por conta de um descuido, no frontispício).

É certo que Agamben não pretendeu colmatar a lacuna ao propor uma teoria stasiológica. Como anuncia no subtítulo, Stasis, antes, analisa a guerra civil como “paradigma” da política ocidental, isto é – seguindo um rigoroso princípio metodológico – como fenômeno singular que, com sua exposição, torna inteligível o contexto problemático mais amplo.

O primeiro seminário é dedicado à Grécia clássica e baseia-se nos trabalhos de Nicole Loraux, a mais importante e notória estudiosa contemporânea da stasis. O segundo, dedicado a Hobbes, é uma penetrante e muito inovadora leitura do Leviatã, desenvolvida como uma “iconologia filosófica”, ou seja, como interpretação da célebre água-forte do frontispício de 1651. Assim, de imediato se mostra ao leitor que o confronto com a teoria do estado (e, em particular, com Carl Schmitt) não será velado nem sem implicações. Apenas o gesto genuinamente arqueológico pode, com efeito, atingir o teor político mais relevante.

Vamos pela ordem. De modo completamente inovador, rachando o duro lugar comum segundo o qual o nascimento da polis assinalaria uma superação do oikos, da casa, e dos primeiros vínculos de parentesco, Loraux mostrou como as guerras civis que agitam periodicamente a cidade grega provêm, na realidade, da família. Elas revelam, portanto, a persistência do poder do oikos no seio da cidade. Mas não apenas isso. A relação entre cidade e família é em grande medida ambivalente, uma vez que a própria reconciliação que põe fim à stasis é realizada (como na Sicília, em Nakone, no século III) por meio de uma nova ligação parental, a dos “irmãos por sorteio”. Mas por que a família implica necessariamente o conflito? E por que pode então se representar como forma de pacificação? Agamben relê as fontes e dissolve a ambiguidade: se é verdade que a stasis se situa entre cidade e família, ela, todavia, não provém do oikos, mas se produz em um campo de tensões polares que vão do oikos à polis vice-versa, confundindo o que pertence a uma e a outra, o íntimo e o estranho. Na guerra civil “a ligação política se transfere ao interior da casa” enquanto “o vínculo familiar se aliena em facção”.

Além disso, guerra civil funciona no mundo grego como “revelador” da política: quem nela não toma parte acaba, de fato, punido com a infâmia e deixa de ser um cidadão. Isso significa não apenas que a stasis é consubstancial à polis (exige uma pacificação e não deve dar lugar a ressentimentos, e permanece ao mesmo tempo uma possibilidade aberta), mas que a própria política é “um campo incessantemente percorrido pelas correntes tensivas da politização e da despolitização, da família e da cidade”. A interpretação paradigmática do fenômeno “guerra civil” torna, por fim, inteligível o domínio mais amplo: a política, assim como o mundo grego a concebeu e nos transmitiu.

O segundo seminário (Leviatã e Behemoth) põe à prova o paradigma stasiológico na teoria moderna ou securitária do estado, ou seja, exibindo-o em sua mais severa construção, o Leviatã de Hobbes. Estudando a famosa água-forte como um compêndio de toda a obra, Agamben descobre na série de emblemas e, sobretudo, nas imagens enigmáticas do gigante composto de homens (que é ao mesmo tempo mito e artifício, Leviatã e produto de um dispositivo óptico) e da cidade deserta sobre a qual ele se levanta, as chaves interpretativas dos conceitos fundamentais de Hobbes: o “corpo político” e as duplas populus / mutitudo dissoluta; civitas / status naturalis. A análise da iconologia religiosa (o monstro do Livro de Jó que dá título ao livro assume traços até mesmo demoníacos na tradição cristã) induz então a reler todo o livro a partir da terceira parte: a grande teologia que Hobbes chamava de sua “política cristã”. E é uma política escatológica, do Reino de Deus na terra.

Se a cidade da água-forte aparece vazia, argumenta Agamben, é porque o povo é um conceito contraditório e fantasmático. O povo, que só pode ser representado, desaparece no seu representante – o qual é, por sua vez, o fruto do engano visual que compõe muitos seres em um só. Portanto, a multitudo dissoluta, única presença na cidade, se dá por conta da constituição do soberano. Mas ela é também o sujeito da guerra civil (Behemoth) que permanece assim inseparável do Leviatã como uma projeção do estado de natureza, da luta de todos contra todos, no coração da civitas. Behemoth e Leviatã convivem e, seja segundo a tradição (na origem talmúdica), seja segundo a lógica rigorosa (isto é, profética) de Hobbes, acabarão por matar um ao outro. Somente então, com o desaparecimento do estado profano, poderá afirmar-se, entre os homens, o Reino de Deus: a ficção da representação será apagada e a multidão restituída a si mesma.

Estamos, portanto, no lado oposto da leitura schmittiana, que, como é notório, vê no estado de segurança o katechōn, a potência que impede o fim do mundo. Ora, se Schmitt permanece hoje atual é porque desenvolveu, de maneira imprudente, a visão política ainda dominante, que trai o modelo grego e força o de Hobbes no sentido da associação, excluindo a tendência à dissociação. Justamente a manutenção do mitologema associativo (securitário) implica, entretanto, como é sempre mais evidente, a contínua exposição ao perigo. Um mais sombrio “revelador” do político toma assim o lugar da stasis: aos membros do povo Schmitt requer “o ser disposto à morte”.

Esse livro desvela uma outra perspectiva, messiânica e fiel ao paradigma stasiológico. Ela rompe o encanto mortífero reconhecendo na soberania uma ficção que será destruída. E não diz respeito a Schmitt, mas a Benjamin: o estado não é uma categoria do Reino, mas (sendo internamente disposto à dissolução) “de seu mais silencioso aproximar-se”. 

Texto publicado no dia 01/03/2015 no suplemento de "Alias" (pp. 3-4), do jornal "Il manifesto". Tradução: Vinícius N. Honesko.

Imagem: Capa (água-forte) da edição de 1651 do "Leviatã", de Thomas Hobbes.




2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Olá,
Você teria como postas o link com a publicação do texto de Cavalletti no Il manifesto? Procurei e não encontrei.
Obrigado