sábado, 11 de julho de 2015

Quanto de vida há num lapso de memória?



Quanto de vida há num lapso de memória? Ouvi alguém me perguntar numa manhã cinzenta. Todos os pássaros passavam voando baixo. Eu não conseguia identificar as nuvens, era tudo cinza. E a insistência com que me punha a perguntar, agora eu, solitário e sem vozes esquecidas, me deixava à espreita de alguns passos que poderiam ser o próximo lapso. De memória ninguém vive, me punha a responder, de memória ninguém vive.

A vida corre pelos veios de uma árvore morta, você me diz. Pode ser, pode ser. Quanto de vida há numa árvore morta que sinaliza um antigo caminho para uma casa onde sonhávamos juntos? E agora já não posso perguntar a você quais os dias da semana que mais lhe agradam, quantas vezes você correu em volta da árvore quando era criança, quais eram os nomes de seus cachorros, quanto de seiva petrificada a árvore ainda pode conter.
 
Continuo andando por esse caminho e, na bifurcação que se abre perto da árvore, um lapso de memória me impede de saber qual das vias trilhar. Talvez à direita encontre vestígios da minha infância febril; ou à esquerda possa retomar as brincadeiras com que me satisfazia em manhãs como esta. Tudo é seiva morta, alguém me disse no sonho que acabara de sonhar. Toco adiante à esquerda ou fico parado? Tento recobrar a memória do lapso ou volto à corrida ao redor da árvore?

Todas as vozes que me dizem palavras que são coisas (ou são essas vozes coisas em forma de palavras?) são silenciadas nesse lapso de memória. Como voltar ao caminho da vida sem me ater à árvore morta? Percebo que na TV grita uma senhora por justiça. Perdeu o marido, que talvez tenha sido morto por alguém que trilhava uma caminho próximo ao meu. Aliás, todos nós estamos próximos nesse caminho em que a vida cabe num lapso de memória, não?

Você ainda me diz que talvez um dia parta para longe. Sei que não quer mais me dizer nada sobre os dias da semana, sobre as brincadeiras com seus cães sem nome, sobre aquela árvore que norteava nossa estrada. Você se foi para nunca mais e meu lapso de memória só me faz sentir que todo nunca também corre pelos veios da árvore morta. E agora já sei qual é a árvore e, com uma pedra de ponta, gravo nossos nomes em sua casca umedecida pela neblina. Também eu agora vou e sinto que vamos no mesmo passo mas muito distantes. Talvez eu tenha pegado o caminho da esquerda enquanto você ia pelo da direita.

Agora escrevo para você no silêncio das letras que preenchem este caderninho sujo pelas algas da casca da árvore e, mesmo que de memória ninguém viva, nada parece insinuar respostas: quanto de vida há num lapso de memória?

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