domingo, 20 de dezembro de 2015

Pequeno parágrafo sobre o claro enigma



Mas o que é um claro enigma senão estar aqui sentado, Drummond a meu lado, com esse piano claustrofóbico que soa notas de desespero? Ainda a vida, esse mistério sem mistério, esses sentidos sem sentido, há de fazer-se vida em falsete ou morte a plenos pulmões? Despeço-me de meu último companheiro de sonho nesta manhã em que maritacas aportam no pinheiro que, desperto, observa-me todos os dias no café da manhã. O companheiro de sonho me dá a mão e sussurra algumas palavras em meu ouvido. Não as entendo, nunca entendi, aliás. As palavras sempre soam diferentes, mesmo sendo sempre as mesmas. Talvez porque diferir e insistir no mesmo pouco importe, talvez porque o olhar do pinheiro e o palavrório das maritacas sejam muito mais ardilosos do que qualquer palavra soprada por nós, que temos medo. Claro enigma, Drummond, por que tão claro? As casas de silêncio agora jazem no sonho do qual acabo de me despedir, e a figura de meu companheiro se distancia. Talvez um dia entenda suas palavras, talvez suas casas de silêncio e roças de cinza maduras, orvalhadas, encontrem outra medida que não a memória. Tento ainda gritar para ele que o disco que escuto tem um nome: "L'absente". Mas de que adiantaria falar a ausência? Já não é ela branca e aconchegada em mim, em nós, em qualquer um que tem medo? O pinheiro ri de minhas perguntas e as maritacas me desdenham. Mas há um rito de despedida: talvez um último beijo dado numa escada que logo mais volto a descer, talvez um afago no leito de adeus, talvez uma voz estranha de alguém ainda mais estranho numa língua estranha mas, ao mesmo tempo, familiar. O mundo viaja em forma de máquina e persigo seus traços deixando minhas cartas aos que amo: "Amar, depois de perder"? O que amamos e fomos um dia, ou nunca fomos, arde em forma de esquecimento neste exato momento em que o sonho de há pouco se transforma no vazio de mais um dia. E só nos resta lutar contra o dia, este que nós, os que têm medo, transformamos em constante e passageira previsão de eternidade.  


Imagem: Albrecht Dürer. O hemisfério sul do globo celeste. 1515. British Museum, Londres.

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