Conversa com um filósofo filopoeta sobre a publicação de seu novo livro, Ideia da Prosa.
Giorgio Agamben nasceu em Roma, em 1942. Filólogo erudito, todavia não tocou no problema da origem de seu sobrenome. Talvez a Armênia, a ele certa vez sugeriu Gianfranco Contini. Quando jovem, ia com frequência ao cinema, até duas vezes por dia. Seu pai era proprietário de salas de cinema, sua mãe era química. Em casa, havia livros, mesmo alguns de filosofia. Quando na universidade, já tinha predileções literárias e filosóficas notáveis de modo que se inscreveu em Direito, do qual nada lhe importava. Pelo menos conseguiu fazer a tese sobre Simone Weil e a noção de pessoa. Lera com muito proveito o ensaio de Mauss sobre a pessoa e a máscara, um pequeno modelo de história das categorias fundamentais da cultura ocidental. Mas ainda são os prelúdios. O verdadeiro encontro com a filosofia acontece em 1966, em Le Thor, na Provence. Perto dali vivia René Char, e Heidegger, naquele verão, decidira encontrá-lo. E, para não ficar de braços cruzados, propõe um seminário de um mês no hotel do vilarejo. Agamben havia sido avisado por um amigo, aluno de Char. Assim, uniu-se aos outros participantes, cinco no total. Tinha vinte e quatro anos e algumas boas leituras, e o seminário era sobre Heráclito. Mas muito mais do que aquilo que foi dito, Agamben aproveitou o encontro com quem dizia e com a paisagem da Provence.
Voltei para lá este ano, sabendo que encontraria um vilarejo já irreconhecível pelo turismo, mas, ao invés disso, encontrei o mesmo hotel, agora completamente abandonado, invadido pelo mato e com as janelas caídas, como se tivesse há vinte anos esperando por mim. Em 1968 aconteceu, no mesmo lugar, um seminário sobre Hegel. Dessa vez, éramos uns dez, entre poetas e filósofos. Era vida comum, o seminário aberto pela manhã, as refeições feitas em conjunto e as longas caminhadas pelo campo. O seminário não tinha absolutamente nenhuma formalidade e se baseava na leitura atenta dos textos. Heidegger lembrava no início que em um seminário não pode haver outra autoridade senão a coisa mesma. Por vezes, a lentidão do trabalho no seminário me deixava impaciente, e procurava me recompor, durante as refeições que fazíamos juntos, interrogando Heidegger sobre tudo o que eu tinha no coração. Entre os participantes também estava Jean Beaufret, o destinatário da Carta sobre o humanismo, um conversador infatigável, que Heidegger apresentava como “um filósofo francês que não tem a noção do tempo”. Por vezes nos dirigíamos à casa de Char em L’Isle-sur-Sorgue, onde uma vez discutimos longamente sobre uma frase de Rimbaud que fascinava Heidegger como um enigma: "la poésie ne rythmera plus l'acion, elle sera en avence".
Você teve mestres, grandes velhos amados?
É estranho que você me pergunte, porque exatamente nestes dias pensava sobre isso, depois de meu retorno a Le Thor. Heidegger, certamente. Mas tão decisivo quanto foi também com José Bergamin, a partir de 1967 até sua morte, e com a Espanha. Claro que ambos eram muito mais velhos do que eu, mas, em particular no caso de Bergamin, tinha-os sobretudo como exemplos e como amigos. Apenas depois da morte comecei a tê-los como mestres. A relação com os mortos é muito difícil, e sobre essa relação Kierkegaard escreveu páginas belíssimas. Os mortos são, ao mesmo tempo, os seres mais impotentes e os mais potentes, os mais indiferentes e os mais amáveis. Nesse sentido, também o encontro com Benjamin foi para mim decisivo, mesmo se foi apenas com seus livros.
Quando você conheceu Benjamin?
Eu o li pela primeira vez nos anos sessenta, na edição italiana de Angelus Novus, organizada por Renato Solmi. Me causou imediatamente uma impressão fortíssima: por nenhum outro autor tive uma afinidade tão inquietante. Acontecia comigo aquilo que Benjamin relata sobre o próprio encontro com Paysan de Paris, de Aragon, que depois de um instante tinha que fechar o livro por causa das palpitações. Há alguns anos, em Roma, fui encontrar um homem, Herbert Blumenthal, que na juventude havia sido amigo íntimo de Benjamin nos anos em que este havia sido líder do Movimento da juventude berlinense. Você pode imaginar minha surpresa quando Blumenthal, tão logo começou a falar, manifestou um rancor incontrolável pelo amigo morto há quase 40 anos, dizendo que ele tinha errado em tudo, que não quis seguir os conselhos dos amigos, que era plenamente responsável pelo próprio fim trágico. Não me custou muito para perceber que por trás de tais acusações queimava a ferida de um amor extraordinário. Blumenthal tinha conservado por 60 anos todas as cartas de Benjamin e também dois manuscritos de um único rascunho existente. Por meio dele, sentia Benjamin vivo e próximo como se estivesse diante dos meus olhos. Na sequência, conheci tantos outros que haviam sido seus amigos: Gershom Scholem, Gisele Freund, Pierre Klossowski, Jean Seltz, mas nenhum me restituiu a impressão que tive com Blumenthal.
Você jamais se tornou acadêmico e talvez jamais se torne, nem mesmo agora, com os concursos tiranos. O que você fez nos anos depois de formado?
Em 1965 fui pela primeira vez para Paris, com uma bolsa de estudos. Para lá voltei, nos anos 70, por três anos como leitor de italiano. Então, fui para Londres, talvez perseguindo o ideal nietzschiano do “bom europeu”. Italo Calvino havia me apresentado Frances Yates, que me introduziu ao Warburg Institute e à sua maravilhosa biblioteca, onde permaneci um ano em incansável e obstinada pesquisa filológica. A biblioteca de Warburg era organizada segundo aquilo que se chamava de "lei da boa vizinhança", pela qual quem procurava um livro descobria que o livro que verdadeiramente lhe interessava era o que estava ao lado, e isso era praticamente sem fim enquanto não fosse percorrida toda a biblioteca. Naquele momento, em 1974, Warburg ainda não era um autor em voga na Itália: quando me pus a escrever sobre ele, me dei conta de que não havia nada mais que um belo ensaio de Pasquali e um artigo de Carlo Ginzburg sobre o diretor do Instituto. Quando em 1975 voltei para a Itália, a Universidade havia se tornado uma corporação fechada que não tinha muito a ver com a cultura. Concorri a um cargo, mas me explicaram que este deveria ser entregue a uma senhora do partido comunista. Desde então as coisas não mudaram.
E em 1968?
Não fiquei totalmente à vontade em 1968. Naqueles anos, lia Hannah Arendt, que meus amigos da esquerda consideravam uma autora reacionária, de quem absolutamente não se podia falar... Um ensaio meu sobre os limites da violência, que acertava as contas com o pensamento de Arendt, foi rejeitado por uma revista do movimento e teve de sair em uma revista literária. Não escondo de você que comemorações e congressos sobre Arendt me irritam um pouco, e não por ciúmes de quem vê ser subtraído um autor que lhe era reservado, mas por um sentimento de atraso irreparável, de um ausente compromisso histórico. Pode acontecer, em momentos de aceleração e de revolução, que um livro lido por poucos chegue por curto-circuito a muitos e sirva de detonador histórico. Pode não acontecer, como o foi em 1968 para Arendt. Mas essa inércia histórica, pela qual as ideias se difundem somente quando a ocasião de seus usos reais, e não meramente acadêmicos, já passou é uma das experiências mais humilhantes que a história nos reserva.
Falemos agora de seu último livro, Ideia da prosa. De onde vem a preferência por uma escritura aforística?
Para mim, a reflexão sobre a forma do pensamento sempre foi central e jamais acreditei que um pensamento responsável pudesse contornar esse problema, como se pensar significasse simplesmente exprimir opiniões mais ou menos justas sobre certo assunto. Justamente essa centralidade da forma funda a proximidade entre poesia e filosofia. Sempre pensei que o que Nietzsche diz a respeito da arte – que só se é artista quando aquilo que os não artistas chamam forma se torne o único conteúdo – fosse também verdade para o pensamento. Neste último livro é decisivo justamente o problema da “tomada" do pensamento. Por isso procurei ressuscitar as fontes daquilo que Jolles chama “formas simples”: o apólogo, o aforisma, o relato breve, o enigma, a fábula. Trata-se de formas que não se propõem a expor teorias mais ou menos convincentes, mas de realizar uma experiência, de retirar do engano, de despertar. Por isso me fascinam os doxografos, os recolhedores de anedotas e curiosidades aparentemente insignificantes, que remoem a memória social a ponto de reduzi-la a um cristal de pura transmissibilidade, na qual falta toda distinção entre a coisa a ser transmitida e o ato da transmissão. Esses cristais são as coberturas desconexas na construção da memória social, e nos quais pode um historiador vir a tropeçar e ver vacilar suas próprias categorias temporais. Além disso, tinha para mim o problema da brevidade, da braquilogia como forma filosófica, aquela brevidade que Benjamin recomenda por antífrase em seus "princípios para escrever tijolos”. E também Platão, na Sétima carta, um texto no qual trabalho há tempos, diz que na filosofia está em questão algo tão breve que não pode de modo algum ser esquecido.
Por isso no livro você renunciou às notas?
Porque a poesia, como a filosofia, é essencialmente uma experiência de linguagem, aliás, uma experiência “da” linguagem como tal, daquilo que está em questão no homem pelo próprio fato de falar, o lugar em que se situa o sujeito que fala deve ser extremamente claro. As notas, os parênteses, as referências bibliográficas, o "veja-se”, remetem a um sujeito do saber posicionado como um ventríloquo por trás do sujeito falante, como se fosse possível falar desde dois lugares ao mesmo tempo. Por isso a prosa acadêmica corrente é com tanta frequência infeliz, dividida como está entre uma autêntica experiência da palavra, que não pode ter nada a dizer antes de medir-se com a palavra, e o fechamento numa posição de saber. E por isso a poesia não tem notas (mesmo se de Montale em diante ela chegou a um uso particular das notas de fim de livro, em um sentido totalmente diverso).
Qual foi seu primeiro livro?
O homem sem conteúdo, publicado em 1970, pela Rizzoli. A exigência de uma experiência diversa da arte, fora da esfera tradicional da estética, era um pouco o fio de Ariadne do livro, que reconstruía a cisão entre artistas e espectadores e os destinos da obra de arte no mundo moderno desde sua secularização até seu auto-aniquilamento. Mas no centro do livro estava uma leitura cruzada de Heidegger, Marx e Arendt em busca de um novo estatuto do “fazer" e da produção humana, cujo sentido, depois de sua determinação moderna como "trabalho”, se transformou por completo, mesmo se nos faltem categorias adequadas para pensá-lo. Desse modo, o livro já continha todos os motivos do livro seguinte. Em certo sentido, meus livros são, na verdade, um único livro que, por sua vez, é apenas uma espécie de prólogo de um livro nunca escrito e inescrevível. Justamente nestes dias estão se esgotando os últimos exemplares de O homem sem conteúdo. De todo modo, foi graças a esse livro que em Paris conheci Italo Calvino, que o havia lido."
O segundo livro?
Foi publicado em 1977, pela Einaudi, com o título Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Foi fruto de um imenso trabalho de pesquisa nas bibliotecas de Paris, de Londres e de Roma sobre textos de todo tipo, desde os de padres da igreja até o catálogo da Exposição Universal de Londres. Muito cansaço, mas também muito divertimento. Foi nesses anos que andei mais próximo de uma prática filológica em sentido estrito, mas foi também nesse período que comecei a perceber os limites dela. Há, em todo trabalho filológico original, um elemento mágico (Benjamin fala disso numa troca de cartas com Adorno). Como todo autêntico filólogo sabe, a interpenetração entre trabalho e elemento mágico é tal que, a certo ponto, distingui-los se torna impossível. E essa interpenetração é o fascínio da pesquisa, mas também o risco que ela contém. Por isso o filólogo que foi a fundo em sua prática necessita da filosofia, deve, a certo ponto (a experiência de Nietzsche nos ensina), tornar-se filósofo."
Retomemos a história de sua carreira. Você trabalhou na Einaudi.
Sim, por algum tempo, como consultor. Com Calvino e Claudio Rugafiori elaboramos também um projeto para uma revista, que publiquei como apêndice a meu terceiro livro, Infância e história. Era uma tentativa de individualizar algumas categorias fundamentais da cultura italiana, por exemplo "Arquitetura-vagueza”, ou "tragédia-comédia”, ou “filologia-direito”. O livro sucessivo, A linguagem e a morte, publicado pela Einaudi em 1982, era a reelaboração de um seminário sobre o lugar da negatividade realizado, com alguns jovens napolitanos formados em filosofia, entre 1979 e 1980. Partia-se da definição do homem como dotado da faculdade de falar e de morrer. Nos encontrávamos em Roma, Siena e Capri. Sem o escudo da universidade, a relação de estudo comum é menos ambiguamente acadêmica, mais abertamente de amizade.
Voltemos a Benjamin. Você é o responsável pela organização das obras para a Einaudi.
Saíram três volumes, na coleção “Literatura”, em ordem cronológica; agora está saindo o quarto, que cronologicamente é o décimo-primeiro e que compreende a obra póstuma, um imenso corpo de fragmentos. Uma vez que se sabe que as Passagen eram compostas como uma “montagem”, houve um erro ao se tomar o material acumulado da Forshungweise, a pesquisa, como sendo da Darstellungweise, a composição, a exposição. É muito provável que o manuscrito maior tenha sido perdido durante a fuga através dos Pirineus. Na edição alemã, que ao menos em parte temos que seguir, não foram distinguidos os fragmentos que diziam respeito à obra sobre Baudelaire.
Você encontrou manuscritos importantes de Benjamin em Paris. Como isso aconteceu?
Procurava traços de Benjamin na correspondência com Bataille, e esbarrei em uma carta de Bataille a um amigo, conservador na Biblioteca Nacional, em que pedia para recuperar uma pasta com manuscritos de Benjamin deixada em um depósito durante a guerra. Os manuscritos depositados por Bataille foram retirados e entregues a Adorno muito antes da data daquela carta e, portanto, esta devia dizer respeito a outros manuscritos. Perguntei, mas ninguém, nem mesmo o destinatário, já aposentado, soube me dizer nada; apenas depois de um mês de pesquisa apareceram dois grandes envelopes que haviam permanecido em um depósito privado da esposa de Bataille, depois da morte deste. Você pode imaginar com que emoção abri aqueles invólucros. Havia alguns sonetos escritos depois da morte do amigo de juventude e poeta Heinle; e também um grande volume de textos dos anos trinta. Fiz uma catalogação provisória. Todavia, a primeira publicação esperava, e ainda espera, por questões de direitos autorais, pela Suhrkamp. Não faltou, por ocasião da publicação de Benjamin, certo supérfluo ciúme nacional e professoral. Sempre em Paris, mas em circunstâncias diversas, encontrei também o original datilografado das Teses sobre a filosofia da história.
Qual foi sua formação clássica de filólogo?
Academicamente, nenhuma. Para o latim e o grego, foi um ótimo liceu, e uma retomada mais tardia como autodidata. Segui, de modo mais orgânico, estudos de linguística geral: Benveniste, Meillet.
Temos esboçada uma biografia decisivamente no papel. Algum fato deve ter acontecido em sua vida. Para permanecer discretamente naqueles públicos, você tem em sua conta uma participação no Evangelho de Pasolini.
Sim, era o apóstolo Felipe. Conheci Pasolini por meio de Elsa Morante... Trabalhar no filme não me agradou muito. Não estava nada convencido daquele Evangelho, da figura do Cristo. E ainda aqueles tempos mortos, a espera de horas que são próprias do cinema, e daquele em particular, bastante desorganizado.
É a segunda vez que fala de uma intolerância à lentidão. E, mesmo assim, você não tem jeito de uma pessoa com ritmos acelerados...
Sim, e, no mais, meu mote predileto é "Festina lente”, paciência e impaciência juntas. Daí a imagem na contracapa de meu último livro. Assim, mesmo no filme Cristo ficava velocíssimo.
Você está persuadido da excepcionalidade do homem como animal falante.
Sim, mas apenas em certo sentido. A linguagem humana, em relação àquela dos outros animais, não está inteiramente inscrita no código genético e é, ao contrário, ligada a uma tradição exossomática. A linguagem chega a um infante desde o exterior, historicamente, e se ele não é exposto à linguagem até certa idade perde para sempre a possibilidade de falar. Mas por isso a linguagem também sempre antecipa o falante, priva-o, por assim dizer, de sua voz (a linguagem humana jamais é uma voz, como a do animal) e pode se tornar sua prisão numa medida desconhecida às espécies animais. Mas é também sua única possibilidade de liberdade. Para retomar a imagem de Wittgenstein, o homem está na linguagem como uma mosca presa numa garrafa: o que ele não pode ver é justamente aquilo por meio do qual vê o mundo. Todavia, a filosofia consiste na tentativa de ajudar a mosca a sair da garrafa ou, ao menos, a tomar consciência disso.
Há uma relação entre essa pesquisa sobre a linguagem e a política?
Uma relação fortíssima: a linguagem é o comum que liga os homens. Se esse comum é concebido como um pressuposto, torna-se algo irreal e inatingível, do qual o indivíduo jamais pode encontrar uma saída, seja concebendo-o como nação, como língua ou como raça. Algo que já "foi” e, como tal, pode apenas existir na forma de um Estado. A única experiência política autêntica seria, ao contrário, a de uma comunidade sem pressupostos, que jamais pode decair em um estado. Não é fácil pensá-la, mas se pode pensar, por certos aspectos, na comunidade cristã primitiva, que apenas depois de cerca de dois séculos, quando se deu conta do atraso já irremediável da parousia, criou o cânone neo-testamentário como um "depósito" a ser transmitido. As tradições funcionam sempre como pressuposições daquilo que é transmitido. Verdadeiramente humano e fecundo seria sair desse pressuposto.
Publicado originalmente no suplemento Fine Secolo do jornal romano Reporter em sábado 9/ domingo 10 de novembro de 1985, pp. 32-33. (disponível online em: https://ariemma.wordpress.com/2012/10/14/adriano-sofri-intervista-giorgio-agamben-1985/)
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko
Giorgio Agamben nasceu em Roma, em 1942. Filólogo erudito, todavia não tocou no problema da origem de seu sobrenome. Talvez a Armênia, a ele certa vez sugeriu Gianfranco Contini. Quando jovem, ia com frequência ao cinema, até duas vezes por dia. Seu pai era proprietário de salas de cinema, sua mãe era química. Em casa, havia livros, mesmo alguns de filosofia. Quando na universidade, já tinha predileções literárias e filosóficas notáveis de modo que se inscreveu em Direito, do qual nada lhe importava. Pelo menos conseguiu fazer a tese sobre Simone Weil e a noção de pessoa. Lera com muito proveito o ensaio de Mauss sobre a pessoa e a máscara, um pequeno modelo de história das categorias fundamentais da cultura ocidental. Mas ainda são os prelúdios. O verdadeiro encontro com a filosofia acontece em 1966, em Le Thor, na Provence. Perto dali vivia René Char, e Heidegger, naquele verão, decidira encontrá-lo. E, para não ficar de braços cruzados, propõe um seminário de um mês no hotel do vilarejo. Agamben havia sido avisado por um amigo, aluno de Char. Assim, uniu-se aos outros participantes, cinco no total. Tinha vinte e quatro anos e algumas boas leituras, e o seminário era sobre Heráclito. Mas muito mais do que aquilo que foi dito, Agamben aproveitou o encontro com quem dizia e com a paisagem da Provence.
Voltei para lá este ano, sabendo que encontraria um vilarejo já irreconhecível pelo turismo, mas, ao invés disso, encontrei o mesmo hotel, agora completamente abandonado, invadido pelo mato e com as janelas caídas, como se tivesse há vinte anos esperando por mim. Em 1968 aconteceu, no mesmo lugar, um seminário sobre Hegel. Dessa vez, éramos uns dez, entre poetas e filósofos. Era vida comum, o seminário aberto pela manhã, as refeições feitas em conjunto e as longas caminhadas pelo campo. O seminário não tinha absolutamente nenhuma formalidade e se baseava na leitura atenta dos textos. Heidegger lembrava no início que em um seminário não pode haver outra autoridade senão a coisa mesma. Por vezes, a lentidão do trabalho no seminário me deixava impaciente, e procurava me recompor, durante as refeições que fazíamos juntos, interrogando Heidegger sobre tudo o que eu tinha no coração. Entre os participantes também estava Jean Beaufret, o destinatário da Carta sobre o humanismo, um conversador infatigável, que Heidegger apresentava como “um filósofo francês que não tem a noção do tempo”. Por vezes nos dirigíamos à casa de Char em L’Isle-sur-Sorgue, onde uma vez discutimos longamente sobre uma frase de Rimbaud que fascinava Heidegger como um enigma: "la poésie ne rythmera plus l'acion, elle sera en avence".
Você teve mestres, grandes velhos amados?
É estranho que você me pergunte, porque exatamente nestes dias pensava sobre isso, depois de meu retorno a Le Thor. Heidegger, certamente. Mas tão decisivo quanto foi também com José Bergamin, a partir de 1967 até sua morte, e com a Espanha. Claro que ambos eram muito mais velhos do que eu, mas, em particular no caso de Bergamin, tinha-os sobretudo como exemplos e como amigos. Apenas depois da morte comecei a tê-los como mestres. A relação com os mortos é muito difícil, e sobre essa relação Kierkegaard escreveu páginas belíssimas. Os mortos são, ao mesmo tempo, os seres mais impotentes e os mais potentes, os mais indiferentes e os mais amáveis. Nesse sentido, também o encontro com Benjamin foi para mim decisivo, mesmo se foi apenas com seus livros.
Quando você conheceu Benjamin?
Eu o li pela primeira vez nos anos sessenta, na edição italiana de Angelus Novus, organizada por Renato Solmi. Me causou imediatamente uma impressão fortíssima: por nenhum outro autor tive uma afinidade tão inquietante. Acontecia comigo aquilo que Benjamin relata sobre o próprio encontro com Paysan de Paris, de Aragon, que depois de um instante tinha que fechar o livro por causa das palpitações. Há alguns anos, em Roma, fui encontrar um homem, Herbert Blumenthal, que na juventude havia sido amigo íntimo de Benjamin nos anos em que este havia sido líder do Movimento da juventude berlinense. Você pode imaginar minha surpresa quando Blumenthal, tão logo começou a falar, manifestou um rancor incontrolável pelo amigo morto há quase 40 anos, dizendo que ele tinha errado em tudo, que não quis seguir os conselhos dos amigos, que era plenamente responsável pelo próprio fim trágico. Não me custou muito para perceber que por trás de tais acusações queimava a ferida de um amor extraordinário. Blumenthal tinha conservado por 60 anos todas as cartas de Benjamin e também dois manuscritos de um único rascunho existente. Por meio dele, sentia Benjamin vivo e próximo como se estivesse diante dos meus olhos. Na sequência, conheci tantos outros que haviam sido seus amigos: Gershom Scholem, Gisele Freund, Pierre Klossowski, Jean Seltz, mas nenhum me restituiu a impressão que tive com Blumenthal.
Você jamais se tornou acadêmico e talvez jamais se torne, nem mesmo agora, com os concursos tiranos. O que você fez nos anos depois de formado?
Em 1965 fui pela primeira vez para Paris, com uma bolsa de estudos. Para lá voltei, nos anos 70, por três anos como leitor de italiano. Então, fui para Londres, talvez perseguindo o ideal nietzschiano do “bom europeu”. Italo Calvino havia me apresentado Frances Yates, que me introduziu ao Warburg Institute e à sua maravilhosa biblioteca, onde permaneci um ano em incansável e obstinada pesquisa filológica. A biblioteca de Warburg era organizada segundo aquilo que se chamava de "lei da boa vizinhança", pela qual quem procurava um livro descobria que o livro que verdadeiramente lhe interessava era o que estava ao lado, e isso era praticamente sem fim enquanto não fosse percorrida toda a biblioteca. Naquele momento, em 1974, Warburg ainda não era um autor em voga na Itália: quando me pus a escrever sobre ele, me dei conta de que não havia nada mais que um belo ensaio de Pasquali e um artigo de Carlo Ginzburg sobre o diretor do Instituto. Quando em 1975 voltei para a Itália, a Universidade havia se tornado uma corporação fechada que não tinha muito a ver com a cultura. Concorri a um cargo, mas me explicaram que este deveria ser entregue a uma senhora do partido comunista. Desde então as coisas não mudaram.
E em 1968?
Não fiquei totalmente à vontade em 1968. Naqueles anos, lia Hannah Arendt, que meus amigos da esquerda consideravam uma autora reacionária, de quem absolutamente não se podia falar... Um ensaio meu sobre os limites da violência, que acertava as contas com o pensamento de Arendt, foi rejeitado por uma revista do movimento e teve de sair em uma revista literária. Não escondo de você que comemorações e congressos sobre Arendt me irritam um pouco, e não por ciúmes de quem vê ser subtraído um autor que lhe era reservado, mas por um sentimento de atraso irreparável, de um ausente compromisso histórico. Pode acontecer, em momentos de aceleração e de revolução, que um livro lido por poucos chegue por curto-circuito a muitos e sirva de detonador histórico. Pode não acontecer, como o foi em 1968 para Arendt. Mas essa inércia histórica, pela qual as ideias se difundem somente quando a ocasião de seus usos reais, e não meramente acadêmicos, já passou é uma das experiências mais humilhantes que a história nos reserva.
Falemos agora de seu último livro, Ideia da prosa. De onde vem a preferência por uma escritura aforística?
Para mim, a reflexão sobre a forma do pensamento sempre foi central e jamais acreditei que um pensamento responsável pudesse contornar esse problema, como se pensar significasse simplesmente exprimir opiniões mais ou menos justas sobre certo assunto. Justamente essa centralidade da forma funda a proximidade entre poesia e filosofia. Sempre pensei que o que Nietzsche diz a respeito da arte – que só se é artista quando aquilo que os não artistas chamam forma se torne o único conteúdo – fosse também verdade para o pensamento. Neste último livro é decisivo justamente o problema da “tomada" do pensamento. Por isso procurei ressuscitar as fontes daquilo que Jolles chama “formas simples”: o apólogo, o aforisma, o relato breve, o enigma, a fábula. Trata-se de formas que não se propõem a expor teorias mais ou menos convincentes, mas de realizar uma experiência, de retirar do engano, de despertar. Por isso me fascinam os doxografos, os recolhedores de anedotas e curiosidades aparentemente insignificantes, que remoem a memória social a ponto de reduzi-la a um cristal de pura transmissibilidade, na qual falta toda distinção entre a coisa a ser transmitida e o ato da transmissão. Esses cristais são as coberturas desconexas na construção da memória social, e nos quais pode um historiador vir a tropeçar e ver vacilar suas próprias categorias temporais. Além disso, tinha para mim o problema da brevidade, da braquilogia como forma filosófica, aquela brevidade que Benjamin recomenda por antífrase em seus "princípios para escrever tijolos”. E também Platão, na Sétima carta, um texto no qual trabalho há tempos, diz que na filosofia está em questão algo tão breve que não pode de modo algum ser esquecido.
Por isso no livro você renunciou às notas?
Porque a poesia, como a filosofia, é essencialmente uma experiência de linguagem, aliás, uma experiência “da” linguagem como tal, daquilo que está em questão no homem pelo próprio fato de falar, o lugar em que se situa o sujeito que fala deve ser extremamente claro. As notas, os parênteses, as referências bibliográficas, o "veja-se”, remetem a um sujeito do saber posicionado como um ventríloquo por trás do sujeito falante, como se fosse possível falar desde dois lugares ao mesmo tempo. Por isso a prosa acadêmica corrente é com tanta frequência infeliz, dividida como está entre uma autêntica experiência da palavra, que não pode ter nada a dizer antes de medir-se com a palavra, e o fechamento numa posição de saber. E por isso a poesia não tem notas (mesmo se de Montale em diante ela chegou a um uso particular das notas de fim de livro, em um sentido totalmente diverso).
Qual foi seu primeiro livro?
O homem sem conteúdo, publicado em 1970, pela Rizzoli. A exigência de uma experiência diversa da arte, fora da esfera tradicional da estética, era um pouco o fio de Ariadne do livro, que reconstruía a cisão entre artistas e espectadores e os destinos da obra de arte no mundo moderno desde sua secularização até seu auto-aniquilamento. Mas no centro do livro estava uma leitura cruzada de Heidegger, Marx e Arendt em busca de um novo estatuto do “fazer" e da produção humana, cujo sentido, depois de sua determinação moderna como "trabalho”, se transformou por completo, mesmo se nos faltem categorias adequadas para pensá-lo. Desse modo, o livro já continha todos os motivos do livro seguinte. Em certo sentido, meus livros são, na verdade, um único livro que, por sua vez, é apenas uma espécie de prólogo de um livro nunca escrito e inescrevível. Justamente nestes dias estão se esgotando os últimos exemplares de O homem sem conteúdo. De todo modo, foi graças a esse livro que em Paris conheci Italo Calvino, que o havia lido."
O segundo livro?
Foi publicado em 1977, pela Einaudi, com o título Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Foi fruto de um imenso trabalho de pesquisa nas bibliotecas de Paris, de Londres e de Roma sobre textos de todo tipo, desde os de padres da igreja até o catálogo da Exposição Universal de Londres. Muito cansaço, mas também muito divertimento. Foi nesses anos que andei mais próximo de uma prática filológica em sentido estrito, mas foi também nesse período que comecei a perceber os limites dela. Há, em todo trabalho filológico original, um elemento mágico (Benjamin fala disso numa troca de cartas com Adorno). Como todo autêntico filólogo sabe, a interpenetração entre trabalho e elemento mágico é tal que, a certo ponto, distingui-los se torna impossível. E essa interpenetração é o fascínio da pesquisa, mas também o risco que ela contém. Por isso o filólogo que foi a fundo em sua prática necessita da filosofia, deve, a certo ponto (a experiência de Nietzsche nos ensina), tornar-se filósofo."
Retomemos a história de sua carreira. Você trabalhou na Einaudi.
Sim, por algum tempo, como consultor. Com Calvino e Claudio Rugafiori elaboramos também um projeto para uma revista, que publiquei como apêndice a meu terceiro livro, Infância e história. Era uma tentativa de individualizar algumas categorias fundamentais da cultura italiana, por exemplo "Arquitetura-vagueza”, ou "tragédia-comédia”, ou “filologia-direito”. O livro sucessivo, A linguagem e a morte, publicado pela Einaudi em 1982, era a reelaboração de um seminário sobre o lugar da negatividade realizado, com alguns jovens napolitanos formados em filosofia, entre 1979 e 1980. Partia-se da definição do homem como dotado da faculdade de falar e de morrer. Nos encontrávamos em Roma, Siena e Capri. Sem o escudo da universidade, a relação de estudo comum é menos ambiguamente acadêmica, mais abertamente de amizade.
Voltemos a Benjamin. Você é o responsável pela organização das obras para a Einaudi.
Saíram três volumes, na coleção “Literatura”, em ordem cronológica; agora está saindo o quarto, que cronologicamente é o décimo-primeiro e que compreende a obra póstuma, um imenso corpo de fragmentos. Uma vez que se sabe que as Passagen eram compostas como uma “montagem”, houve um erro ao se tomar o material acumulado da Forshungweise, a pesquisa, como sendo da Darstellungweise, a composição, a exposição. É muito provável que o manuscrito maior tenha sido perdido durante a fuga através dos Pirineus. Na edição alemã, que ao menos em parte temos que seguir, não foram distinguidos os fragmentos que diziam respeito à obra sobre Baudelaire.
Você encontrou manuscritos importantes de Benjamin em Paris. Como isso aconteceu?
Procurava traços de Benjamin na correspondência com Bataille, e esbarrei em uma carta de Bataille a um amigo, conservador na Biblioteca Nacional, em que pedia para recuperar uma pasta com manuscritos de Benjamin deixada em um depósito durante a guerra. Os manuscritos depositados por Bataille foram retirados e entregues a Adorno muito antes da data daquela carta e, portanto, esta devia dizer respeito a outros manuscritos. Perguntei, mas ninguém, nem mesmo o destinatário, já aposentado, soube me dizer nada; apenas depois de um mês de pesquisa apareceram dois grandes envelopes que haviam permanecido em um depósito privado da esposa de Bataille, depois da morte deste. Você pode imaginar com que emoção abri aqueles invólucros. Havia alguns sonetos escritos depois da morte do amigo de juventude e poeta Heinle; e também um grande volume de textos dos anos trinta. Fiz uma catalogação provisória. Todavia, a primeira publicação esperava, e ainda espera, por questões de direitos autorais, pela Suhrkamp. Não faltou, por ocasião da publicação de Benjamin, certo supérfluo ciúme nacional e professoral. Sempre em Paris, mas em circunstâncias diversas, encontrei também o original datilografado das Teses sobre a filosofia da história.
Qual foi sua formação clássica de filólogo?
Academicamente, nenhuma. Para o latim e o grego, foi um ótimo liceu, e uma retomada mais tardia como autodidata. Segui, de modo mais orgânico, estudos de linguística geral: Benveniste, Meillet.
Temos esboçada uma biografia decisivamente no papel. Algum fato deve ter acontecido em sua vida. Para permanecer discretamente naqueles públicos, você tem em sua conta uma participação no Evangelho de Pasolini.
Sim, era o apóstolo Felipe. Conheci Pasolini por meio de Elsa Morante... Trabalhar no filme não me agradou muito. Não estava nada convencido daquele Evangelho, da figura do Cristo. E ainda aqueles tempos mortos, a espera de horas que são próprias do cinema, e daquele em particular, bastante desorganizado.
É a segunda vez que fala de uma intolerância à lentidão. E, mesmo assim, você não tem jeito de uma pessoa com ritmos acelerados...
Sim, e, no mais, meu mote predileto é "Festina lente”, paciência e impaciência juntas. Daí a imagem na contracapa de meu último livro. Assim, mesmo no filme Cristo ficava velocíssimo.
Você está persuadido da excepcionalidade do homem como animal falante.
Sim, mas apenas em certo sentido. A linguagem humana, em relação àquela dos outros animais, não está inteiramente inscrita no código genético e é, ao contrário, ligada a uma tradição exossomática. A linguagem chega a um infante desde o exterior, historicamente, e se ele não é exposto à linguagem até certa idade perde para sempre a possibilidade de falar. Mas por isso a linguagem também sempre antecipa o falante, priva-o, por assim dizer, de sua voz (a linguagem humana jamais é uma voz, como a do animal) e pode se tornar sua prisão numa medida desconhecida às espécies animais. Mas é também sua única possibilidade de liberdade. Para retomar a imagem de Wittgenstein, o homem está na linguagem como uma mosca presa numa garrafa: o que ele não pode ver é justamente aquilo por meio do qual vê o mundo. Todavia, a filosofia consiste na tentativa de ajudar a mosca a sair da garrafa ou, ao menos, a tomar consciência disso.
Há uma relação entre essa pesquisa sobre a linguagem e a política?
Uma relação fortíssima: a linguagem é o comum que liga os homens. Se esse comum é concebido como um pressuposto, torna-se algo irreal e inatingível, do qual o indivíduo jamais pode encontrar uma saída, seja concebendo-o como nação, como língua ou como raça. Algo que já "foi” e, como tal, pode apenas existir na forma de um Estado. A única experiência política autêntica seria, ao contrário, a de uma comunidade sem pressupostos, que jamais pode decair em um estado. Não é fácil pensá-la, mas se pode pensar, por certos aspectos, na comunidade cristã primitiva, que apenas depois de cerca de dois séculos, quando se deu conta do atraso já irremediável da parousia, criou o cânone neo-testamentário como um "depósito" a ser transmitido. As tradições funcionam sempre como pressuposições daquilo que é transmitido. Verdadeiramente humano e fecundo seria sair desse pressuposto.
Publicado originalmente no suplemento Fine Secolo do jornal romano Reporter em sábado 9/ domingo 10 de novembro de 1985, pp. 32-33. (disponível online em: https://ariemma.wordpress.com/2012/10/14/adriano-sofri-intervista-giorgio-agamben-1985/)
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko
Imagem: Giorgio Agamben e José Bergamín.
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