sábado, 4 de janeiro de 2020

Curiosos Fios

 
 
Saulo Mattos

Até das fibras mortas não se pode cuidar com tranquilidade. A corporeidade crespa nasce mais morta nessas cabeças negras. O trançado ficava escondido nos cantos da cidade, como se fosse conhecimento de poucos, como se fosse da ordem da proibição, e, só depois de muito tempo, começa aparecer nos colégios particulares, nas representações redundantes de uma África sempre colorida, como se houvesse tido pouco derramamento de sangue no continente, como se tudo fosse dança agitada e de tambor, como se a foto da criança esquálida cercada pelo urubu não fosse conhecida de todos. Apenas para que pudesse haver uma interpretação de sociabilidade com os que compunham a tarja preta escolar que enfurecia a razão particular dos donos dos boletos. O destino predestinado de todo cabelo é nascer morto, não se enganar com a vida. Seu reino é o dos fios mortos, que podem ser cortados em qualquer dia. Desprezivelmente belo: estar morto para ser livre, originalmente sem estética, cobrir a cabeça, protegê-la do sol. Até das fibras mortas o grito capitalista se aproveitou.

Serve para muita coisa. Para dizer quem é negro, quem não é. Quem pode ser da televisão ou de determinada profissão. Quem pode ter cabelo grande ou não. Quem pode estar na cozinha. Quem pode cuidar de seu filho, ser segurança. Quem pode ser galã ou beldade model. Quem pode tudo. Quem estará na prisão. O cabelo identifica. Rotula. Criminaliza. Mata estando morto, porque escolhemos valorá-lo como distintivo social. O cabelo não. Nós fazemos tudo isso a partir dessa textura que pode ser, paradoxalmente a todo esse modo de viver apartado, a nossa parte mais alegre, a autodefinição, a terra viva do ser. Cabelo que pode ser a alegria suada, de muitas lutas individuais e coletivas, representatividade de uma coletividade marcada pela chibatada, pela nudez exposta ao meio dia com suor queimando os vincos profundos da carne negra intergeracional. As dores ultrapassaram o futuro para que se soubesse o valor da celebração, que se despertasse a consciência negra da negritude (Mbembe). Que não se pode ficar só, sozinho, na clausura do corpo negro sofrido. Deve-se correr para o abraço sereno, celebrar o frescor da liberdade dos nossos cabelos, das nossas cabeças. Celebrar do nosso jeito para que os sentimentos sejam um adubo de bons pensamentos.

A senhora-menina está entre as pernas dela, encostada no sofá, sentada no chão, sentiu as mãos dela, da antiga que pôde chamar de vó, do que sobrou de carinho da família, do tempo quase integralmente dedicado à feira, da reduzida oportunidade de conversa graciosamente dada por aquele momento de trançar o cabelo - isso marca, de modo geral, os usos e costumes da negritude, tempo afetivamente estreito e despedaçado, aos solavancos e encontrões.

Não tê-lo era ritualístico. Dentre os que escolheram o Axé havia os que optaram em ir mais adiante para despir-se do cabelo como ato de entrega energética sagrada, escolhida nos caminhos de dentro da especial religiosidade afro. Outra vez o cabelo a emprestar a liberdade de sua natureza morta ao religare humano.

Nem sempre foi assim. Ainda hoje não se sabe se está a se experimentar a liberdade afrocapilar. As lembranças de um passado recente desenham as mulheres negras que se automutilavam alisando seus cabelos, os homens negros que raspavam suas cabeças com vergonha da realidade crespa que os destacava como sujeito racial negro, por mais impossível que fosse escondê-lo. O imperialismo da branquitude fez-se nas cabeças negras, ainda que alguns cantassem que eram “black power”. Por isso, antes de se falar das dores que “cancerinizam” os corpos negros, elevam suas pressões arteriais e diabeticamente amputam suas pernas, que tal pensar no pânico estético que sempre aprisionou nossos extremos corpóreos roubando as cenas originais da existência afro, que podem não ser originais porque estamos cindidos (Fanon) pela segregação trucidante desde a concepção raivosa e insana que nos coloca no mundo, porque boa parte da negritude tem sido filha dessa insanidade disfarçada de amor, anestesiada de carnaval, e com pouquíssimas chances de se autoproclamar humanamente existente. Fétidos, largados pela cidade, são os muitos negros que sobrevivem psicologicamente devastados tanto quanto aqueles que conseguiram a compensação material da carreira bem-sucedida, que querem patrocinar o mito do negro heroico, excepcional.

Para que disputar dores? Somos um texto só de diversas partituras, com múltiplos ecos, tons e silêncios, poesia e prosa corrida se misturam nessa complexa existência que é o viver negro, que busca significar a liberdade nunca sentida.

Quer saber? As cabeças raspadas são suspeitas cláusulas de aceitabilidade social. Os cabelos alisados também. São pré-condições para a empregabilidade subalterna, escravizada, do negro. Alguns mais livres. No geral, muitos negros matáveis (a indistinta autorização socioestatal para matá-los) com seus fios mortos na cabeça, os quais ainda eletrocutam sua sanidade. Existir para ser subalternizado é linguagem contemporânea. A liquidez do mundo não desperdiça uma gota só desse comando arquétipo multissecular de espoliação pungente do negro.

A pergunta volta: por que há quatro ou cinco décadas raspávamos e alisávamos os cabelos com tanta frequência? Antes de sugerir alguma resposta, aparece Conceição Evaristo (Histórias de leves enganos e parecenças, p. 50) para lembrar a história dos fios de ouro da negra africana Halima, que pertencia a um clã em que “um dos signos da beleza de um corpo era o cabelo” e que “a arte de tecer cabelos era exercida por mulheres mais velhas que imprimiam aos penteados as regras sociais do grupo”. A negra Halima, em 1852, com 12 anos apenas, foi escravizada para trabalhar em plantios e colheitas brasileiros, ser brinquedo das crianças da casa-grande, mas, antes, “a sua cabeça foi raspada, indicando sua nova condição: a de peça para ser vendida no comércio da escravidão.”

Raspávamos e alisávamos porque era o “corte” da aceitação, mostrávamo-nos limpos em concordância com a assepsia social e estética da branquitude, que desde sempre confortável em suas poltronas de privilégios imprimiu nota dolorosa na alma negra: “só te aceitarão assim”. Despersonificação, cabelo de negro não serve. Raspávamos as cabeças como se presidiários fôssemos. Continuamos nas prisões. Atados as essas cordas meladas de sangue que arrastam nossos corpos nas construções dos bairros luxuosos, zerados de lixo pelas mãos negras das cabeças zeradas de cabelo. Sob o céu, onde dizem morar Deus, suávamos higienizados da nossa própria beleza. Alisava-se para ser a impossível Barbie. Não queremos generalizar as potencialidades do existir negro. Eles é que nos apontam os dedos querendo desautorizar as nossas falas e interpretá-las de forma sádica, o que demonstra enquanto continuam organizada e difusamente senhores de um “crime perfeito”: o racismo (Kabengele Munanga). Querem generalizar as nossas falas para desautorizar os pensamentos afrocentrados que se desenvolveram enquanto nossas cabeças sofriam de uma ausência capilar imposta, de um alisamento capilar resultante de uma autopercepção desviante do espelho afro que deu espaço para a imposição de um referencial feminino europeu.

Lutamos pelos nossos cabelos. Lutaremos muito mais. Já sabemos que eles são o húmus de grande ideias. Sabedores da idade do universo, fundamos a universidade na nossa pequena casa, nas paredes dos conjuntos habitacionais, nos quartos de despejo de Carolina de Jesus, e a estendemos para muitos lugares que desconheciam a luminosidade do saber compartilhado. Contaremos a nossa história. Interessam-nos os porquês dessa viva História.

Curiosos esses fios, que dizem muito sobre a vida indigesta de nossa sociedade superencarcerada em ilusões de democracia racial

15/10/2019 
 
 
Imagem: Carolina de Jesus.

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