Vinícius Nicastro Honesko
Para analisar e pensar a respeito do que parece ser um movimento que poderíamos denominar como niilismo de Estado – aflorado já quase sem pudores cínicos em terras brasileiras –, é preciso o resgate das denúncias que, no século XX, foram cruciais para a formatação do mundo político posterior à, como diria Guy Debord, integração da Sociedade do Espetáculo: o diagnóstico de esgotamento do projeto iluminista. Cabe ressaltar, no entanto, que este não fora apenas algo sinalizado por Adorno e Horkheimer, mas também por um dos pensadores cruciais da chamada nova liberdade que deveria sobrevir às "sevícias" e "tiranias" do poder organizador do Estado: Friedrich Hayek, autor cujas análises do esgotamento do projeto de um estado de direito liberal – sobretudo na sua vertente de então: o estado de bem-estar social – começam nos mesmos anos da "Dialética do Esclarecimento".
Enquanto a partir dos frankfurtianos surgem vertentes do pensamento crítico às democracias liberais e diversas apostas na dimensão do comum (toda a discussão sobre a comunidade: Maurice Blanchot, Jean-Luc Nancy, Giorgio Agamben e mesmo Georges Bataille – já que estamos, por ora, em solo Europeu), em Hayek e em seus leitores a aposta se dá numa radicalização da dimensão concorrencial do capitalismo. Em outros termos, uma libertação do capital das amarras do modelo organizacional keynesiano do Estado de Bem-Estar para que a liberdade, a verdadeira liberdade (que surge apenas à medida em que não se submeta a nenhum tipo de coação por parte de quem quer que seja, sobretudo dos governos), pudesse irromper tal como é, isto é, de forma imprevisível, posto que, se a liberdade fosse da ordem do previsível sequer poderia dizer-se liberdade. Nesse sentido, Hayek – apoiando-se em certa leitura que faz da escola histórica alemã – teoriza que as instituições se formam e evoluem sempre de modo competitivo entre si e a despeito do voluntarismo das ações humanas. Em linhas gerais, à medida em que não haja construtivismo social (intervenção, coação) e o campo da competição esteja dado à espontaneidade, apenas as instituições que efetivamente estimulam a liberdade acabariam por se sobrepor às demais na história da organização social. Ao final desse processo, uma ordem espontânea, absolutamente livre e equilibrada fulguraria, de modo que, contra os planejamentos compactuados na ordem estatal – cerceadores da liberdade e que põem os povos no “caminho da servidão" –, o modelo concorrencial das instituições seria o ponto de irrupção da verdadeira liberdade.
Da proposta hayekiana para compreender a nova liberdade, obviamente ecoam os temas-chaves do chamado liberalismo clássico. Dentre estes, e talvez o mais pujante em Hayek, podemos ressaltar a repulsa a qualquer tipo de ingerência de um poder governamental capaz de conduzir e cercear os poderes decisórios dos governados. No entanto, há uma diferença crucial no como refrear essa ingerência: para o neo-liberal o freio não passaria mais por um pacto, um contrato, fundacional (para Hayek, esse modelo, de inspiração em certa racionalidade emancipadora e construtivista, acabara de mostrar sua falência com a barbárie das grandes guerras), mas pelo respeito à concorrência, que seria o fundo naturalmente constitutivo do mundo e a porta de acesso à verdadeira liberdade. Mas talvez o rastro mais importante do liberalismo clássico a permanecer no neoliberalismo seja a reserva de discricionariedade ao indivíduo, a condição sine qua non para que todo indivíduo possa agir em concorrência com os demais e, nesse sentido, aprimorar – mesmo que de forma inconsciente – a evolução das instituições e o caminho para a liberdade.
Domenico Losurdo chama a atenção para o fato de que esse poder discricionário, cujo ápice de funcionamento está exemplificado no modo como se exerce sobre a propriedade privada, foi a bandeira levantada, por exemplo, pelos federalistas estadunidenses contra as tiranias do governo metropolitano inglês. Foi essa forma de proteção da discricionariedade absoluta sobre a propriedade que também engendrou o paradoxo seminal dos princípios do liberalismo clássico: a convivência entre escravidão mercantil-negreira e a emancipação do jugo das tiranias. Enquanto rechaçavam e lutavam contra as ingerências do poder do soberano inglês – as quais seriam a expressão máxima do cerceamento de liberdade –, os revolucionários estadunidenses podiam, ao mesmo tempo, manter um regime de escravidão que reduzia o ser humano negro e indígena à condição de coisa, de mercadoria. Losurdo mostra como essa consciência do paradoxo já se encontra em diversos protagonistas da revolução estadunidense, como, p.ex., em James Madison, que, não obstante a condição de revolucionário e contrário aos atos anti-liberdade da tirania, era um proprietário de escravos; e mesmo John Locke, o "campeão na luta contra o absolutismo monárquico", era acionista da Royal African Company, que em 1675 – justamente após o período em que Locke havia sido secretário do Conselho de Comércio e Plantations, entre 1673-1674 – havia desbancado o domínio holandês no comércio transatlântico de escravos. (Sobre essa coisificação do negro e do indígena remeto aos trabalhos de Susan Buck-Morss – que em Hegel e o Haiti mostra como mesmo ciente do Code Noir francês em vigor nos anos em que escreve, Rousseau, no discurso sobre o contrato, em momento algum faz referência ao código e nem mesmo à mercantilização da vida – e a Achille Mbembe, que em diversos textos, sobretudo Crítica da Razão Negra, escreve sobre as formas de consolidação da escravidão mercantil negreira. E é preciso salientar que toda a aposta no mito dos valores da civilização ocidental – presente como pano de fundo em vários discursos contemporâneos que têm fundamentado os novos nacionalismos e protecionismos mercantis – tem como lubrificante de suas engrenagens históricas o sangue de escravos).
Em Hayek e no neoliberalismo que a ele se segue, esse paradoxo dos liberais é recoberto com um mito: o da concorrência como pano de fundo universal, o qual, escamoteando a dimensão colonial escravocrata, elide o pacto social e naturaliza, torna espontânea, uma ordem que adviria da concorrência (a título de exemplo, lembro que em O caminho da servidão, no momento em que pretende demonstrar que a concorrência não necessariamente leva aos monopólios, Hayek analisa a dinâmica concorrencial interna à Inglaterra no final do século XIX e início do século XX: não há sequer uma menção à estrutura imperial-colonial inglesa). Nesse modelo, há a previsão de desigualdades iniciais, já que os indivíduos não estariam em condições de igualdade no início da concorrência: há, naturalmente, os mais livres e os menos livres; todavia, à medida que os mais livres fossem ampliando o campo da liberdade, essa ampliação não seria apenas uma conquista individual, mas para todos, inclusive para os menos livres, posto que estaria espontaneamente ordenando a vida dos indivíduos entre si e garantindo também para os menos livres mais condições de alcance da verdadeira liberdade ("não há algo como a sociedade, apenas indivíduos", dizia Margareth Thatcher; isto é, a melhor ordem é sempre aquela que se dá entre indivíduos em livre concorrência).
Ao desconsiderar o paradoxo (evidente no século XVIII, mas não menos sensível ao longo da história recente do capitalismo) entre libertação do jugo tirânico absolutista e a legalização da escravização mercantil sob o argumento da total discricionariedade do direito à propriedade, o modelo de liberdade de Hayek acaba por potencializar regimes de servidão travestidos de livre-concorrência: no funcionamento do capitalismo contemporâneo, p.ex., a economia de plataformas (na qual nenhuma garantia é dada aos trabalhadores diante de seus empregadores) seria o modo de implementação de novos regimes escravocratas sob o mote da liberdade absoluta de empreendimento (tanto os donos das plataformas quanto os empregados estariam, à medida de suas desigualdades – lembremos, previstas –, implementando a ordenação espontânea; assim como no liberalismo clássico a escravidão mercantil negreira foi o mecanismo fundamental para a emancipação dos jugos absolutistas, os novos registros de funcionamento nas relações laborais – flexibilização, barateamento de mão-de-obra etc. – são a evolução de instituições que ampliariam ainda mais a liberdade dos mais livres e garantiriam aos menos livres a chance de aumentarem sua liberdade à medida de seu esforço empreendedor).
As leituras já consolidadas do modo de funcionamento do neoliberalismo nos países onde o bem-estar social teve certa força precisariam, em um país com dinâmica colonial como o Brasil, de certos ajustes. Isto é, é preciso uma leitura que dê conta das nuanças que o neoliberalismo adquire uma vez em funcionamento no registro colonial. As análises de Michel Foucault e as recentes e pertinentes leituras de Wendy Brown, e também de Dardot e Laval, são muito interessantes no que diz respeito às formas do neoliberalismo em países onde a consolidação de certo estado de bem-estar se deu, mas talvez em regiões como a América Latina e a África, onde qualquer afirmação de um estado de bem-estar é no mínimo falaciosa, é preciso refinar o instrumento, sob pena de incorrermos em generalizações que por vezes podem nos induzir ao equívoco.
Pensemos, então, o caso brasileiro contemporâneo. A figura do bolsonarismo – algo que vai para além da persona Bolsonaro – pode ser lida como uma radicalização do modelo do neoliberalismo. As denúncias que o bolsonarismo faz do pacto social como o “conluio de um modelo de organização da velha política” funcionam como tônica de um discurso libertador: é preciso eliminar os tiranos que, contra a população brasileira, monopolizaram as riquezas e instrumentalizaram o poder em proveito próprio, usando para isso toda e qualquer forma de direito e de poder que estavam em suas mãos. Mecanismo facilitador para essa tirania teria sido, justamente, o sistema político baseado no pacto organizador e direcionista da liberdade. Não à toa, no discurso bolsonarista toda e qualquer ação estatal de sentido inclusivo – de bem-estar social, digamos – é qualificada como “comunista” ou “de esquerda", sem qualquer nuance (lembremos que em algumas palestras que ministrou em 2018, o "príncipe" Luiz Philippe de Orleans e Bragança, um dos porta-vozes do bolsonarismo durante as últimas eleições presidenciais, apresentava um degradê político em que à exceção de PSL e NOVO todos os demais partidos políticos brasileiros eram taxados como sendo de esquerda, logo, com um viés comunista).
A “revolução conservadora", que no Brasil é capitaneada pelo bolsonarismo, procura achatar as democracias liberais, os comunismos, os totalitarismos e tudo o mais sob o argumento de que todos são modos de cercear a verdadeira liberdade – não ser coagido por ninguém sob nenhuma circunstância. Para isso, reivindica um "mito" fundador como hipótese para o início de uma "nova era" da política. Podemos ler essa nova era como uma espécie de estado de exceção, nos moldes schimittianos, que funcione tal qual uma mola propulsora para que os indivíduos se desvencilhem das instituições que, em nome de um pacto social que estaria nos conduzindo ao caminho para a servidão, cerceiam a verdadeira liberdade: é nesse sentido que os recentes ataques às estruturas fundamentais do Estado, o STF e o Congresso Nacional, ganham inteligibilidade). O niilismo de Estado – uma forma de não-governo que instrumentaliza o bolsonarismo – é, no limite, a postulação de um acompanhamento, uma gestão (ou seja, no fundo ainda um governo), das condições de concorrência. Entretanto, é preciso dar à concorrência seu nome: stasis, a guerra civil, na qual – sob o argumento do não-direcionismo e do não-intervencionismo que garantiriam o afloramento espontâneo e natural da verdadeira liberdade e da verdadeira ordem natural das instituições – a intervenção da violência do governo se dá, nos rincões coloniais do planeta, não mais na forma-polícia mas na forma-milícia (o recente caso das insurgências polícia-milicianas no Ceará com o apoio do governo federal é emblemático; e os exemplos mundo afora poderiam ser muitos).
À diferença dos países onde o bem-estar social teve alguma força, no Brasil (e também nos territórios de ocupação: América Latina, África, Sudeste Asiático etc.) as postulações neoliberais tendem a encontrar um horizonte de recepção ainda mais naturalizado: a luta diária por condições elementares de subsistência já é uma constante secular e, portanto, o velho ditado “cada um por si, Deus para todos” pode se transformar facilmente em “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Esse jogo do “salve-se quem puder”, cujo fundo universal é a guerra civil – renomeada eufemisticamente com o termo concorrência –, tem, no tabuleiro chamado Brasil, os requintes da crueldade de todo senhor diante de seu escravo (o todos contra todos do suposto estado de natureza hobbesiano sempre foi consubstancial ao estado civil, lembra-nos Andrea Cavalletti).
Se na dinâmica das democracias liberais – do pacto social – a política estatal tem seu outro nome no “monopólio do uso da violência”, é importante notar que no modelo concorrencial há a disseminação capilarizada da violência justamente nas figuras da milícia e dos agentes financeiros. Uma das críticas mais contumazes ao sistema eleitoral de qualquer democracia liberal está no modelo de financiamento de campanhas, o qual mascara forças que, dando suporte para seus representantes na estrutura do Estado, angariam modos de praticamente alcançar o estatuto de fora-da-lei (o outro nome da soberania; e lembremos de Brecht: "Assalto a banco é um negócio de diletantes. Os verdadeiros profissionais fundam um banco."). Com uma legislação praticamente inexistente na tributação de lucros e dividendos de acionistas majoritários de grandes conglomerados financeiros, com o controle da vida do cidadão comum por meio da dívida, além da componente propagandística (mitológica, para dizer com Furio Jesi) do sacrifício necessário para impedir que a economia pare e com isso todos sejam sacrificados, os agentes financeiros atuam em nível institucional-global tal como as milícias em nível social-local: estes, os empreendedores locais bem sucedidos de regiões depauperadas que à medida que monopolizam a violência local fundam sua lei; aqueles, os empreendedores globais que vampirizam economias inteiras de estados ao ajudar a eleger – ou a sustentar pequenos tiranos locais, como fazem as empresas de tecnologia no Sudão e, desde 2005, no Sudão do Sul – seus representantes nas estruturas desses mesmos estados (de fato, o fundamento místico da autoridade para o qual Jacques Derrida quer chamar a atenção nada mais é do que uma arma na mão diante de alguém sem meios de defesa).
"A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção' no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica." Ao reler a famosa tese benjaminiana parece-nos claro que as atuais apostas contra o bolsonarismo insistem numa volta a um pacto social. Volta impossível para os estados em que um bem-estar social pôde ter certa consistência, mas volta sequer pensável num contexto como o brasileiro, onde apenas sopros frágeis de bem-estar foram sensíveis ao longo da história e onde a nova norma histórica, o naturalismo da concorrência, já é uma constante dos modos de relações sociais desde a dizimação das populações originárias.
Hoje, com o acontecimento provocado pela pandemia global da COVID-19, as entranhas do bolsonarismo e também das práticas biopolíticas espetaculares nos países do Atlântico Norte (basta pensarmos que Emmanuel Macron, até então um agente de especulações financeiras e que vinha lidando com as insurgências locais – “os coletes amarelos", p.ex. – com declarações que procuravam instar terror diante de um colapso econômico, de repente passou a ter um discurso alinhado ao dos “grandes estatistas" de outrora) fazem-se visíveis com mais clareza. Deleuze nos diz que os acontecimentos são sempre moleculares e, a partir disso, Jonnefer Barbosa lembra que os inframundos – tais como o do vírus que hoje, invisível, muda todo o campo do visível – desconhecem os complôs e destituem-nos de nossa pretensa soberania, lançando-nos à sorte de forças que nunca controlaremos, mas diante das quais podemos agir com virtú ou covardia. Assim, no mundo humano, estamos em um tempo de abertura de possíveis – mesmo que muitas vezes pareçam apontar a desfechos terrificantes – e no qual nos é dado ver o funcionamento do mito da concorrência universal como instância de legitimação da realidade/verdade se desfazendo a olhos nus (ou seja, vemos que o mito é apenas o produto de uma máquina mitológica: um aparelho discursivo que quer nos convencer da realidade daquilo sobre o qual é impossível asseverar qualquer juízo de existência ou não-existência, isto é, o mito).
Agora, em meio à excepcionalidade efetiva causada pelo vírus – que, como argumenta Emanuele Coccia, inclusive coloca em xeque os narcisismos das sociedades humanas –, ouvimos os clamores desesperados de economistas neoliberais que, diante desse acontecimento que desmonta o mito da verdade da concorrência, agarram-se àquilo que antes, na normalidade neoliberal, repudiavam, mas que, como último aliado, ainda pode fazer com que esse mito continue a funcionar sob quaisquer circunstâncias: o monopólio do uso da violência. Entretanto, num contexto como o brasileiro, onde essa máquina mitológica produziu um mito cuja potência é desconhecida nos países onde o bem-estar social teve, mesmo que apenas alguma vez, certa força, o estupor diante do acontecimento ganha um tom mais cáustico, e, hoje, não poderíamos descartar ouvir do presidente ou de seu ministro da economia algo como: "o vírus é só mais um inimigo na sua guerra diária por sobrevivência. Virem-se como têm se virado até aqui. 'Cada um por si, deus para todos!'." (Nesse sentido, no contexto da expansão da epidemia de Covid-19 no Brasil sob a égide do bolsonarismo, por vezes mesmo um apelo paradoxal – como uma forma imediata para lidar com a irrupção da pandemia – a um funcionamento mínimo da máquina mitológica do bem-estar pode, sim, ser um modo de ao menos refrear o alastramento da morte sobretudo entre aqueles já largados à própria sorte na stasis secular brasileira. Ainda assim, no limite, é necessário não crer que uma máquina como esta poderia agora passar a operar contra o bolsonarismo, como tampouco foi capaz de impedir, onde funcionou de forma mais acentuada, o renascimento dos fascismos. Todavia – e lembremos da advertência benjaminiana –, mesmo que momentaneamente útil como um dos modos de salvaguardar a vida de humanos, também ela deve ser questionada em sua sanha de controle e vigilância, e, por fim, voltada contra si mesma.)
A frequência com a qual o neoliberalismo se modula no Brasil tem ainda muitas ondas por irradiar. Todavia, hoje, essa máquina mitológica operativa e fundacional, que se travestia, ao sabor das circunstâncias, para assegurar mais liberdade aos que por aqui desde sempre foram mais livres, agora já não consegue apresentar o mito sobre cuja veracidade gostaria de nos convencer. Com isso, dá-se a ver abertamente em toda sua feiura e compleição; resta, assim, aos cada vez menos livres o desafio de emperrar essa máquina e organizar o desespero de modo a criar outras formas de solidariedade e vida em comum.
A frequência com a qual o neoliberalismo se modula no Brasil tem ainda muitas ondas por irradiar. Todavia, hoje, essa máquina mitológica operativa e fundacional, que se travestia, ao sabor das circunstâncias, para assegurar mais liberdade aos que por aqui desde sempre foram mais livres, agora já não consegue apresentar o mito sobre cuja veracidade gostaria de nos convencer. Com isso, dá-se a ver abertamente em toda sua feiura e compleição; resta, assim, aos cada vez menos livres o desafio de emperrar essa máquina e organizar o desespero de modo a criar outras formas de solidariedade e vida em comum.
Imagem: Marc Ferrez. Acervo Instituto Moreira Salles.
3 comentários:
Excelentes observações, porém, tenho de discordar ou pensar além, em vários pontos:
1. Sinto falta de contexto brasileiro e excesso de teoria ocidental. O texto começa com Hayek e Keynes e em nenhum momento citou o SUS, instância biopolítica fundamental no nosso caso, nesse momento. Não à toa, o bolsonarismo tá rachado em torno dele. O SUS ainda não está completamente entregue aos inescrupulosos anseios neoliberais do governo, e entretanto vemos um político de origem neoliberal, como Mandetta,d partido conservador como o DEM, defendendo o SUS, baseado em saberes científicos, contra a hegemonia bolsonarista. Não basta dizer foucaultiana ou agambenianamente que um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo é biopolítica. Agamben, apesar de ter apontado, como era de se esperar, que há um óbvio risco de recrudescimento do estado de exceção, deve estar bem resguardado por ordem da biopolítica, nesse momento, porque, idoso, ele é de grupo de risco.
2. O texto só menciona os índios para insinuar que eles acabaram, sequer cita um pensador indígena contemporâneo, desses como Krenak e Kopenawa que perfuraram a bolha perversa e colonizadora da nossa cultura escrita para nos fazer ver seu pensamento e formas de resistência. O texto não fala de diarista, por exemplo, essa categoria de trabalho que sempre foi uberizada na sociedade brasileira. Sequer fala de empregada doméstica (nossa herança escravocrata mais básica), ou da PEC das empregadas domésticas, que fez parte das classes média e alta racharem com os governos de esquerda - aquela PEC é biopolítica? Decerto, mas o que ela significa ante a presente herança escravocrata? E o que dizer do nosso trabalho análogo à escravidão, que sempre tivemos, e que não é marca apenas do neoliberalismo. Tudo parece generalizado como "América Latina", nossas questões são mais antigas, perversas e persistentes.
Oi, Elson, tudo certo?
Concordo que no texto faltam vários debates, afinal de contas, era só um texto que tinha como objetivo (não esgotável, inclusive; e aí discordo de você) justamente trazer à baila o que vc chama de "teoria ocidental" para mostrar, justamente, que todo esse referencial (inclua-se, e acho que isso ficou claro, os pensadores da biopolítica, os pensadores contemporâneos do neoliberalismo etc. etc.) não dá conta de pensar o que genericamente chamei de "problemas da AL, ou da África, ou do Sudeste Asiático". O que falta tinha mesmo de faltar para um texto curto e que queria chamar a atenção para a "compra de teoria e sua aplicação direta" em outro contexto (e não tem nada a ver com ideias fora do lugar... era só uma vontade de chamar a atenção para um debate teórico, afinal, necropolítica, estado de exceção e tantos outros viraram quase como que sinônimos de leitura direta da sociedade brasileira; aliás, em outro sentido, é exatamente o que Guedes está fazendo - inclusive, no ano passado, numa conferência com "agentes do mercado", ele disse que o "Norte" de seu ministério são Hayek e Wilhelm Erhard. Então, "a teoria ocidental" está muito mais tropicalizada do que gostaríamos...).
Os exemplos práticos para os quais vc chama a atenção poderiam se desdobrar muito e muito longamente (da doméstica ao camelô, ao(à) ambulante de praia, ao(às) carrinheiro(a) de papel, ao(à) boia-fria, ao(à) vendedor(a) precário(a) etc. etc.). Concorda que puxar o tema "empregada doméstica", assim, do nada, seria o gancho para "e por que não o(a) carrinheiro(a)?", "e por que não...". Enfim... Outros textos podem ser escritos, mas, para mim, primeiro foi preciso encarar certa "ordem teórica"...
Quanto à insinuação de desaparecimento dos indígenas, bem, acho que vc deu um peso talvez descontextualizado a uma frase que no texto aparece justamente para reforçar o argumento sobre a necessidade de se repensar o problema "de contexto", para, assim, enfrentar o bolsonarismo (que não pode simplesmente ser achatado num "bolsonarismo=fascismo", justamente porque temos, como vc me chama a atenção - e que eu esperava que o texto pudesse dar acesso a isso -, um contexto perverso e persistente e muito mais antigo nessa perversidade). Kopenawa, que acho ser fundamental, entra aí nas outras formas de organização do desespero...
Falar sobre o problema do SUS pode ser um outro texto por vir. De todo modo, como nem falei sobre o SUS também não disse que o SUS é "biopolítica nociva" (assim, de pronto, comprando teoria, justamente aquilo contra o que quero reforçar no texto) . De fato, o SUS é fundamental, necessário, vital etc., sobretudo num contexto como o nosso - perverso -, inequivocamente o SUS representa uma dessas "pequenas lufadas de social-democracia" que tivemos aqui e que, como pontuei no texto, não pode ser deixado ao léu... mas que, ainda assim, faz parte da máquina mitológica do "estado", com tudo o que isso implica (inclusive, por exemplo, na demanda por "formas de resistência "à la" Krenak e Kopenawa que vc me demanda). De todo modo, para trocarmos uma ideia, não acho que há um racha sobre o SUS tal como você diz. Na verdade, para "nossa sorte", essa epidemia veio, caso contrário, o processo de privatização do SUS - como todos os demais processos de privatização - estaria a toque de caixa.
É isso, Elson. Valeu pela leitura e pelos comentários. Acho que textos mais pontuas são necessários (e espero poder escrevê-los também, e, claro, também lê-los...)
Abraço,
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