sexta-feira, 25 de março de 2022

[Quase um testamento] - trechos (Pier Paolo Pasolini)


 

Temas religiosos

 

Sou um marxista que escolhe temas religiosos. Que legal! Agora existe também um monopólio sobre a religião? Eis a conclusão de quarenta anos de propaganda horrenda e de macarthismo! Muitos dos homens mais profundamente religiosos deste século são comunistas. Penso, por exemplo, em Gramsci (o fundador do PCI). Eles lutaram pelo puro altruísmo e deram a sua vida apenas um alto ideal (que podemos definir, sem mais, acético), pelo qual desafiaram a prisão, torturas e a morte. Compreenda-se que quando digo religioso não pretendo dizer crente numa religião confessional.

Os comunistas são, com efeito (quase todos), laicos e positivistas. Mas eles herdaram o laicismo e o positivismo da civilização burguesa (a grande civilização burguesa que fez a revolução liberal antes, e, depois, a revolução industrial). Só que, depois, no burguês, o laicismo e positivismo permaneceram como tais (patrimônio, todavia, de uma elite burguesa), enquanto o nacionalismo e o imperialismo, nascidos como consequência direta do capitalismo, levaram o burguês médio, muito rapidamente, às velhas posições clericais: a cultivar uma religião de puro interesse, hipócrita, estatal e até mesmo feroz (veja-se o clero czarista e franquista). Portanto, quando muito, a pergunta legítima de fato não é “pode um comunista ser religioso?”, mas, antes, “pode um burguês ser religioso?”.

 

Creio em Deus?

 

Sempre, desde os quatorze anos, me defini como não crente. Nos últimos meses, pela primeira vez concebi, de algum modo, uma ideia, mesmo que imanentista e científica, de Deus.

Como cheguei a ela é algo muito curioso. Sempre me interessei por problemas linguísticos, ainda que no campo estritamente italianístico, e na Itália acabo considerado como um linguista interessante, mesmo que mal informado e estranho. Recentemente, me apaixonei pelas pesquisas linguísticas sobre o cinema. E, é natural, não podia deixar de recorrer à semiologia, ciência para a qual os sistemas de signos são infinitos e não apenas linguísticos.

Cheguei à conclusão de que o “cinema”, ao reproduzir tal ciência, faz uma perfeita descrição semiológica da realidade; e de que o sistema de signos do cinema é, na prática, o mesmo sistema de signos da realidade. Portanto, a realidade é uma linguagem! É preciso fazer a semiologia da realidade mais do que a do cinema! Mas se a realidade fala, quem é que fala e com quem fala? A realidade fala com si mesma: é um sistema de signos por meio do qual a realidade fala com a realidade. Tudo isso não é spinoziano? Essa ideia da realidade não se assemelha à de Deus?

 

Golpes de Estado

 

Tanto a tentativa de golpe de estado na Itália de 1964 quanto a de golpe, bem sucedida, na Grécia são acontecimentos no âmbito da OTAN. Na Itália, teve início um processo contra os jornalistas do “Espresso” que denunciaram à opinião pública alguns dos responsáveis pela tentativa de golpe de Estado. A investigação parlamentar, no entanto, foi parada pelo partido católico (democrata cristão) com o apoio dos socialistas. Evidentemente, não se quer chegar à responsabilidade internacional.

Nós, intelectuais (nesse acontecimento muito grave), brilhamos por nossa ausência. É verdade que nos jantares, nos bares, falamos a torto e a direito contra a classe política dirigente, contra a burguesia italiana que a exprime, e, em geral, contra este pequeno, marginal, provinciano, indiferente e miserável país que é a Itália. Mas, e nós? O que fazemos? Talvez somos melhores? O que é que nos faz ser ausentes e mudos? O medo? A prudência? A desconfiança? A preguiça? A ignorância? Sim, tudo isso. 

 

Trecho de [Quasi un testamento], publicado em Pier Paolo Pasolini, Saggi sulla politica e sulla società, org. de Walter Sitti e Silvia De Laude, Milão, Mondadori, 1999, pp. 866-869. Originalmente, [Quasi un testamento] foi fruto de uma série de encontros entre Pasolini e o jornalista inglês Peter Dragadze. O texto foi publicado em 17/11/1975 em "Gente". Trad.: Vinícius N. Honesko

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