Giorgio Agamben
Procurarei partilhar com vocês algumas reflexões sobre a resistência e sobre a guerra civil. Não estou aqui lembrando a vocês de que um direito de resistência existe já no mundo antigo – que conhece uma tradição de elogios do tiranicídio – e na idade média. Tomás compendiou a posição da teologia escolástica no princípio segundo o qual o regime tirânico, enquanto substitui o bem comum pelo interesse de uma parte, não pode ser iustum. A resistência – Tomás diz a pertubatio – contra esse regime não é, por isso, uma seditio.
É óbvio que a matéria comporta necessariamente um nível de ambiguidade quanto à definição do caráter tirânico de determinado regime, do qual dão testemunho as cautelas de Bartolo, que em seu Tratado sobre os guelfos e gibelinos, distingue um tirano ex defectu tituli de um tirano ex parte exercitti, mas depois tem dificuldades em identificar uma iusta causa resistendi.
Essa ambiguidade reaparece nas discussões de 1947 sobre a inscrição de um direito de resistência na constituição italiana. Dossetti havia proposto, como vocês sabem, que no texto figurasse um artigo assim: “A resistência individual e coletiva aos atos do poder público que violam as liberdades fundamentais e os direitos garantidos por esta constituição é um direito e um dever dos cidadãos”. O texto, que havia sido sustentado também por Aldo Moro, não foi incluído, e Meuccio Ruini, que presidia a chamada Comissão dos 75 que iria devia preparar o texto da constituição – e que, alguns anos depois, como presidente do Senado, iria distinguir-se pelo como com o qual procurou impedir a discussão parlamentar sobre a assim chamada lei-golpe –, preferiu adiar a decisão para o voto da assembleia, que ele sabia que seria negativo.
Não se pode negar, todavia, que as hesitações e objeções dos juristas – dentre os quais Costantino Mortati – não tinham argumentos, quando apontavam que não se pode regular juridicamente a relação entre direito positivo e revolução. É o problema que, a propósito da figura do partigiano, tão importante na modernidade, Schmitt definia como o problema da “regulamentação do irregular”. É curioso que os juristas falassem de relação entre direito positivo e “revolução”: teria sido mais correto falar de “guerra civil”. Como traçar, com efeito, um limite entre direito de resistência e guerra civil? Não seria talvez a guerra civil o êxito inevitável de um direito de resistência seriamente compreendido?
A hipótese que pretendo hoje lhes apresentar é a de que nesse modo de colocar o problema da resistência se deixa escapar o essencial, ou seja, uma mudança radical que diz respeito à própria natureza do estado moderno – isto é, por assim dizer, pós-napoleônico. Não se pode falar de resistência se não se refletir antes sobre essa transformação.
O direito público europeu é essencialmente um direito de guerra. O estado moderno se define não só, em geral, por meio de seu monopólio da violência, mas, de modo mais concreto, por meio de seu monopólio do jus belli. A este direito o estado não pode renunciar, mesmo com o custo, como vemos hoje, de se inventar novas formas de guerra. O jus belli não é apenas o direito de fazer e conduzir guerras, mas também o de regular juridicamente a conduta de guerra. Ele distinguia assim entre o estado de guerra e o estado de paz, entre o inimigo público e o delinquente, entre a população civil e o exército combatente, entre o soldado e o partigiano.
Agora, sabemos que justamente essas características essenciais do jus belli já há tempos acabaram, e minha hipótese é que isso implica uma mudança muito essencial na natureza do estado. Já ao longo da Segunda Guerra Mundial a distinção entre população civil e exército combatente foi progressivamente sendo obliterada. Um indicativo disso é que as convenções de Genebra de 1949 reconhecem um estatuto jurídico à população que participa da guerra sem pertencer ao exército regular, com a condição, porém, de que fosse possível identificar comandantes, que as armas fossem exibidas e houvesse alguma marca visível.
Mais uma vez, essas disposições não me interessam enquanto levam a um reconhecimento do direito de resistência – de resto, como vocês viram, muito limitado: um partigiano que exibe as armas não é um partigiano, é um partigiano inconsciente –, mas porque implicam uma transformação do próprio estado enquanto detentor do jus belli. Como vimos e continuamos a ver, o estado, que do ponto de vista estritamente jurídico já ingressou de forma estável no estado de exceção, não abole o jus belli, mas perde ipso facto a possibilidade de distinguir entre guerra regular e guerra civil. Hoje, temos diante de nós um estado que conduz uma espécie de guerra civil planetária, a qual não pode de modo algum reconhecer como tal.
Resistência e guerra civil são portanto rubricadas como atos de terrorismo e aqui não será inoportuno lembrar que a primeira aparição do terrorismo no pós-guerra foi obra de um general do exército francês, Raoul Salan, comandante supremo das forças armadas francesas na Argélia, que havia criado, em 1961, a OAS, que significa: Organisation armée secrète. Reflitam sobre a fórmula “exército secreto”: o exército regular se torna irregular, o soldado se confundo com o terrorista.
Parece-me evidente que diante desse estado não se pode falar de um “direito de resistência”, eventualmente codificável na constituição ou que pode ser obtido a partir desta. E isso ao menos por duas razões: a primeira, é que a guerra civil não pode ser regulada, como o estado por sua vez está procurando fazer por meio de uma série indefinida de decretos, que alteraram de cima a baixo o princípio de estabilidade da lei. Temos diante de nós um estado que conduz e procura codificar uma forma camuflada de guerra civil. A segunda, que constitui para mim uma tese irrenunciável, é que nas condições presentes a resistência não pode ser uma atividade separada: ela só pode se tornar uma forma de vida. Haverá verdadeiramente resistência apenas se e quando cada um souber extrair dessa tese as consequências que lhe dizem respeito.
Texto originalmente publicado em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-sul-diritto-di-resistenza
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko
Foto: Monumento ao partigiano, em Bergamo.
É óbvio que a matéria comporta necessariamente um nível de ambiguidade quanto à definição do caráter tirânico de determinado regime, do qual dão testemunho as cautelas de Bartolo, que em seu Tratado sobre os guelfos e gibelinos, distingue um tirano ex defectu tituli de um tirano ex parte exercitti, mas depois tem dificuldades em identificar uma iusta causa resistendi.
Essa ambiguidade reaparece nas discussões de 1947 sobre a inscrição de um direito de resistência na constituição italiana. Dossetti havia proposto, como vocês sabem, que no texto figurasse um artigo assim: “A resistência individual e coletiva aos atos do poder público que violam as liberdades fundamentais e os direitos garantidos por esta constituição é um direito e um dever dos cidadãos”. O texto, que havia sido sustentado também por Aldo Moro, não foi incluído, e Meuccio Ruini, que presidia a chamada Comissão dos 75 que iria devia preparar o texto da constituição – e que, alguns anos depois, como presidente do Senado, iria distinguir-se pelo como com o qual procurou impedir a discussão parlamentar sobre a assim chamada lei-golpe –, preferiu adiar a decisão para o voto da assembleia, que ele sabia que seria negativo.
Não se pode negar, todavia, que as hesitações e objeções dos juristas – dentre os quais Costantino Mortati – não tinham argumentos, quando apontavam que não se pode regular juridicamente a relação entre direito positivo e revolução. É o problema que, a propósito da figura do partigiano, tão importante na modernidade, Schmitt definia como o problema da “regulamentação do irregular”. É curioso que os juristas falassem de relação entre direito positivo e “revolução”: teria sido mais correto falar de “guerra civil”. Como traçar, com efeito, um limite entre direito de resistência e guerra civil? Não seria talvez a guerra civil o êxito inevitável de um direito de resistência seriamente compreendido?
A hipótese que pretendo hoje lhes apresentar é a de que nesse modo de colocar o problema da resistência se deixa escapar o essencial, ou seja, uma mudança radical que diz respeito à própria natureza do estado moderno – isto é, por assim dizer, pós-napoleônico. Não se pode falar de resistência se não se refletir antes sobre essa transformação.
O direito público europeu é essencialmente um direito de guerra. O estado moderno se define não só, em geral, por meio de seu monopólio da violência, mas, de modo mais concreto, por meio de seu monopólio do jus belli. A este direito o estado não pode renunciar, mesmo com o custo, como vemos hoje, de se inventar novas formas de guerra. O jus belli não é apenas o direito de fazer e conduzir guerras, mas também o de regular juridicamente a conduta de guerra. Ele distinguia assim entre o estado de guerra e o estado de paz, entre o inimigo público e o delinquente, entre a população civil e o exército combatente, entre o soldado e o partigiano.
Agora, sabemos que justamente essas características essenciais do jus belli já há tempos acabaram, e minha hipótese é que isso implica uma mudança muito essencial na natureza do estado. Já ao longo da Segunda Guerra Mundial a distinção entre população civil e exército combatente foi progressivamente sendo obliterada. Um indicativo disso é que as convenções de Genebra de 1949 reconhecem um estatuto jurídico à população que participa da guerra sem pertencer ao exército regular, com a condição, porém, de que fosse possível identificar comandantes, que as armas fossem exibidas e houvesse alguma marca visível.
Mais uma vez, essas disposições não me interessam enquanto levam a um reconhecimento do direito de resistência – de resto, como vocês viram, muito limitado: um partigiano que exibe as armas não é um partigiano, é um partigiano inconsciente –, mas porque implicam uma transformação do próprio estado enquanto detentor do jus belli. Como vimos e continuamos a ver, o estado, que do ponto de vista estritamente jurídico já ingressou de forma estável no estado de exceção, não abole o jus belli, mas perde ipso facto a possibilidade de distinguir entre guerra regular e guerra civil. Hoje, temos diante de nós um estado que conduz uma espécie de guerra civil planetária, a qual não pode de modo algum reconhecer como tal.
Resistência e guerra civil são portanto rubricadas como atos de terrorismo e aqui não será inoportuno lembrar que a primeira aparição do terrorismo no pós-guerra foi obra de um general do exército francês, Raoul Salan, comandante supremo das forças armadas francesas na Argélia, que havia criado, em 1961, a OAS, que significa: Organisation armée secrète. Reflitam sobre a fórmula “exército secreto”: o exército regular se torna irregular, o soldado se confundo com o terrorista.
Parece-me evidente que diante desse estado não se pode falar de um “direito de resistência”, eventualmente codificável na constituição ou que pode ser obtido a partir desta. E isso ao menos por duas razões: a primeira, é que a guerra civil não pode ser regulada, como o estado por sua vez está procurando fazer por meio de uma série indefinida de decretos, que alteraram de cima a baixo o princípio de estabilidade da lei. Temos diante de nós um estado que conduz e procura codificar uma forma camuflada de guerra civil. A segunda, que constitui para mim uma tese irrenunciável, é que nas condições presentes a resistência não pode ser uma atividade separada: ela só pode se tornar uma forma de vida. Haverá verdadeiramente resistência apenas se e quando cada um souber extrair dessa tese as consequências que lhe dizem respeito.
Texto originalmente publicado em: https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-sul-diritto-di-resistenza
Tradução: Vinícius Nicastro Honesko
Foto: Monumento ao partigiano, em Bergamo.
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