sábado, 13 de outubro de 2007

Sobre trapeiros, poetas e restos


Os poetas encontraram o lixo das sociedades nas ruas e no próprio lixo seu assunto heróico. Com isso, no tipo ilustre do poeta aparece a cópia de um tipo comum. Trespassam-no os traços do trapeiro que ocupou Baudelaire tão assiduamente. Um ano antes de “O Vinho dos Trapeiros”[Le Vin des chiffoniers – Fleurs du Mal] foi publicada uma descrição em prosa dessa figura: “Aqui temos um homem - ele tem de recolher os restos de um dia da capital. Tudo o que a grande cidade jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que quebrou, ele o cataloga, ele o coleciona. Compila os arquivos da devassidão, o cafarnaum da escória; ele procede a uma separação, a uma escolha inteligente; recolhe, com um avarento um tesouro, o lixo que, mastigado pela Deusa da Indústria, tornar-se-á objeto de utilidade ou de gozo.” Essa descrição é uma única metáfora ampliada do comportamento do poeta segundo o coração de Baudelaire. Trapeiro e poeta, os dejetos dizem respeito a ambos; solitários, ambos realizam seus negócios nas horas em que os burgueses se entregam ao sono; o próprio gesto é o mesmo em ambos. Nadar fala do pas saccadé [passo intermitente] de Baudelaire; é o passo do poeta que erra pela cidade procurando a presa das rimas; deve ser também o passo do trapeiro que, a todo instante, se detém no seu caminho para recolher o lixo em que tropeça.


BENJAMIN, Walter. Fragmento de Paris do Segundo Império. Extraído de Obras Escolhidas III. (Trad. de José Carlos Martins Barbosa com alterações de J. M. Gagnebin). São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 78-79.


Foto: Eugene Atget, “Ragpicker,” 1901, photograph, 8 3/4 x 7 1/8.

Um comentário:

Anônimo disse...

nos dias de hoje, o pensamento de Benjamin são o que temos de mais original para descrever nossas cidades