domingo, 27 de fevereiro de 2011

Democracia Finita e infinita - Partes VI e VII

6.

Antes de prosseguir, paremos um instante sobre considerações linguísticas. Que se trate de processos etimológicos dotados de sentido ou ainda de acasos históricos (no mais, as duas ordens se separam mal na formação e evolução das línguas), o presente estado do nosso léxico político oferece uma forte fonte de pensamento: "democracia" é formada por um sufixo que remete à força, à imposição violenta, diferentemente do sufixo -arquia que remete ao poder fundado, legitimado num princípio. A coisa é clara quando se considera a série: plutocracia, aristocracia, teocracia, tecnocracia, autocracia, ou burocracia (ou ainda oclocracia, "poder da massa") - tal como ela se distingue desta outra: monarquia, anarquia, hierarquia, oligarquia. Sem procurar entrar numa análise precisa das histórias desses termos (o que implicaria a de alguns outros como nomarquia, tetrarquia, ou ainda, fisiocracia ou mediocracia, com consideração de diferenças de épocas, de níveis, de registros de língua), discerne-se como a designação de um princípio fundador se distingue claramente da imputação de uma força dominadora (o que implica, naturalmente, que "teocracia" seja um termo pensado de um ponto de vista oposto à ideia de uma legítima soberania divina e que mesmo "aristocracia" possa implicar uma contradição entre a ideia de "melhores" e aquela de sua dominação mais ou menos arbitrária).

Ainda que sejam, mais uma vez, fenômenos estritamente linguísticos, é certo que a palavra "democracia" parece manter a coisa longe da possibilidade de um princípio fundador. E, de fato, é preciso dizer que a democracia implica por essência algo de uma anarquia, que poderia ser dita quase de princípio, se por isso não podia autorizar-se justamente essa contraditio in adjecto.

Não há "demarquia": o "povo" não faz princípio. Ele faz no máximo oximoro ou paradoxo de princípio sem principado. É também porque o direito ao qual remete a instituição democrática só pode viver em verdade numa relação sempre ativa e renovada em face de sua própria falta de fundação. Que a primeira modernidade tenha forjado a expressão "direito do homem" e que a implicação filosófica dessa expressão continue a ser ativa, mas sobre um modo implícito e confuso, na expressão "direitos do homem" (ou do animal, da criança, do feto, do meio ambiente, da própria natureza etc.)

É mais que tempo de reafirmar e trabalhar essa afirmação cujo conteúdo e alcance são, no entanto, teoricamente, bem estabelecidos: não somente não há "natureza humana", mas o "homem", querendo confrontá-lo à ideia de uma "natureza" (de uma ordem autônoma e auto-finalizada), não tem outras características do que a de um sujeito em falta de "natureza" ou em excesso sobre toda espécie de "natureza": o sujeito de uma desnaturação no sentido, pior ou melhor, em que se pretenda tomar essa palavra.

A democracia enquanto política, não podendo ser fundada sobre um princípio transcendente, é necessariamente fundada, ou infundada, sobre a ausência de uma natureza humana.

7.

Segue, no plano da política, de suas ações e de suas instituições, duas consequências maiores.

A primeira consequência diz respeito ao poder. A democracia implica o direito, ou parece implicar - é precisamente sobre o semblante ou a realidade que é preciso aqui se pronunciar - uma desaparição ao menos tendencial da instância específica e separada do poder. Ora, já vimos, é precisamente a anulação de uma tal separação que se torna o problema. É para "um povo de deuses" que uma tal anulação poderia ser efetiva. O modelo dos "conselhos" (ou sovietes) cuja forma ideal é, em suma, o povo em assembleia permanente e a designação de delegados para tarefas determinadas, de acordo com a revogabilidade permanente desses mesmos delegados. Que seja possível e desejável, em vários tipos de níveis ou de escalas sociais, praticar fórmulas de co-gestão ou de participação que tendem mais ou menos para esse modelo não impede que à escala de uma sociedade inteira ele não seja praticável. Mas não é simplesmente um problema de escala: é um problema de essência. A sociedade, por si, existe na exterioridade de relações. Nesse sentido, uma "sociedade" começa somente onde cessa a integração em interioridade de um grupo que solidifica seu sistema de parentesco e sua relação aos mitos, figuras ou totens do próprio grupo. Pode-se mesmo dizer que a distinção, isto é, a oposição, entre "sociedade" e "comunidade", tal qual formulada desde o fim do século XIX e tal como está implícita em todas as considerações da idade clássica sobre a "insociável sociabilidade" dos homens (Kant) não é por acaso contemporânea da democracia - assim como a dissolução das comunidades de vida rural não era estranha ao nascimento das cidades. A cidade - a polis - representava já uma forma de ligação à exterioridade, em relação a qual a democracia devia resolver o problema.

É claro que não se trata de tomar esses termos - "interioridade, exterioridade" - ao pé da letra, nem sob o registro do grupo ou sob o do indivíduo. Mas é preciso ter em conta que o fato de as representações que eles induzem sejam ou não recebidas e implementadas. A sociedade moderna (não temos senão tal termo genérico para a matéria) se representa segundo a exterioridade de seus membros (supostos indivíduos) e de suas relações (supostas de interesses e de forças). Uma antropologia inteira - para não dizer uma metafísica - está subentendida desde que se fala de "sociedade" e de socialidade, de sociabilidade, de associação. Associa-se a partir de uma exterioridade e a dissociação é sempre o corolário possível de uma associação.

É também porque o poder, em sociedade, parece apenas manter os traços da "violência legítima" e mais nada de uma função simbólica que seria ligada à verdade "interna" do grupo.

A democracia tem dificuldade em assumir um poder que trai a ausência de um tal simbolismo no sentido mais forte da palavra (digamos, no sentido em que uma vez a religião, civil ou não, outra vez a aliança feudal, outra a unidade nacional puderam parecer ao garantir a força). Nesse sentido, o verdadeiro nome que a democracia deseja, e aquele que ela tem, de fato, engendrado e levado durante cento e cinquenta anos como seu horizonte, é o comunismo. Esse nome tem sido o do desejo de criação de uma verdade simbólica da comunidade em face a qual a sociedade sabia-se totalmente em falta. Esse nome está talvez caduco, mas não é isso que discutirei aqui. Ele tem sido o nome portador de uma ideia - somente uma ideia, de modo algum um conceito no sentido estrito, um pensamento, uma direção de pensamento segundo a qual a democracia, de fato, se interrogava sobre sua própria essência e sobre sua própria destinação.

Não é mais suficiente hoje - longe disso! - denunciar tal ou qual "traição" do ideal comunista. É preciso muito mais levar em conta isto: a ideia comunista não tinha que ser um ideal - utópico ou racional - pois ela não operava sobre a dialética da exterioridade social e de uma interioridade (ou simbolicidade, ou consistência ontológica: é tudo um) comum ou comunitária. Ela tinha como tarefa abrir a questão do quê a sociedade, como tal, deixa em suspenso: precisamente o simbólico, ou o ontológico, ou ainda, banalmente, o sentido ou a verdade do ser-junto.

O comunismo não era político e não tinha que ser. A denúncia de que ele engajava a separação da política não era ela mesma política. O comunismo não o soube, nós devemos agora saber.

Mas é importante, nessas condições, não se seduzir pelo poder. Este não é somente o expediente exterior destinado a sustentar bem ou mal a insocial sociedade e do qual se aprende por predileção os próprios apetites mais exteriores, ou os mais friamente estrangeiros ou mesmo os mais hostis ao corpo da sociedade. Pois, precisamente, trata-se desse "corpo" e de saber se ele é um em interioridade orgânica ou se ele é um agregado suscetível aos meios de organização.

Que o poder organize, gira e governe não torna condenável a separação de sua esfera própria. É justo porque nós encontramos hoje, quão "comunistas" que podemos nos imaginar, o sentido de uma necessidade do Estado (com a qual, e não contra a qual, se colocam outras questões para além do Estado: as questões do direito internacional e dos limites da soberania clássica).

Mas é preciso não se contentar em decidir-se em relação ao que seria inevitável. No poder, há mais do que uma necessidade de governo. Há um desejo próprio, uma pulsão de dominação e uma pulsão correlativa de subordinação. Não se pode reduzir todos os fenômenos de poder - político assim como simbólico, cultural, intelectual, de palavra ou de imagem etc. - a uma mecânica de forças rebelde à moral ou a um ideal de uma comunidade de justiça e de fraternidade (pois é sempre, no fim das contas, uma condenação desse gênero que está sob nossas análises do ou dos poder[es]). Uma tal redução ignora aquilo que a pulsão em questão pode ter de distinta do simples desejo de destruir ou de morte. No impulso para a maestria, à influência ou à dominação, ao comando e ao governo, não é interdito (mesmo que justamente o seja para a psicanálise) considerar ao mesmo tempo o furor da sujeição, do aviltamento ou da destruição e o ardor da tomada em mãos, da potência de manter, conter e trabalhar em vista de uma forma e daquilo que uma forma pode expor. A conjunção, ou a mistura desses dois aspectos não é evitável e não se pode contentar-se em desejar uma polícia de pulsões que classifique entre as más e as boas domesticações. Barbárie e civilização se tocam aqui perigosamente, mas esse perigo é o índice da indeterminação e da abertura do movimento que impulsiona a comandar e a possuir.

Esse movimento é tanto de vida como de morte, de sujeito em expansão como de objeto de sujeição, é tanto o fato de um crescimento do ser no seu desejo quanto aquele de seu afundamento na satisfação plena. Esse é o desafio profundo do conatus de Spinoza ou da vontade de potência de Nietzsche, para tomar as figuras mais visíveis daquilo que em toda parte no pensamento indica esse impulso - o qual só pode ser ambivalente se não é pré-formado nem predestinado a tal ou qual fim.

O poder político é certamente destinado a garantir a socialidade, até na possibilidade de lhe contestar e refundar suas relações estabelecidas. Mas é pela destinação ao que a socialidade pode encontrar de acesso a fins indeterminados sobre os quais o poder como tal é sem poder: os fins sem fim do sentido, dos sentidos, das formas, das intensidades de desejo. O impulso do poder ultrapassa o poder ainda que ao mesmo tempo persiga o poder por ele mesmo. A democracia coloca, em princípio, uma ultrapassagem do poder - mas como sua verdade e sua grandeza (ou seja, majestade!) e não como sua anulação.


Jean-Luc Nancy. La Démocratie finie et infinie. In.: Démocratie dans quel état? Paris: La Fabrique, 2009. pp. 84-90. (Trad. Vinícius Nicastro Honesko). Posto a tradução das últimas 3 partes nos próximos dias.

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