terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Respirar


Impecavelmente mal dormida! Essa poderia ser a definição da última noite. Habitada por fantasmas, novos e velhos, a madrugada se alongava nas trilhas duma quase falta de ar. Mas quase queria dizer muito a respeito do intervalo entre a inspiração e a expiração. Acordo para reexaminar antigas notas e percebo minha letra ilegível, o azul quase ofuscante daquela caneta de tinta molhada, certas dobras nas orelhas das páginas, vejo que havia uma vontade de escrever que era similar à vontade de respirar de hoje cedo. Engraçado como olhar para estas notas no começo da manhã fez sacudir impressões que já tinham se dado no tempo; parece estranho reviver uma visão no instante mesmo em que o objeto olhado já não está mais à disposição dos olhos, já não é matéria sensível, mas puro delay, pura matéria-memória.
Uma longa conversa à distância com Chico me vem à mente. Lembro-me que o assunto sobre o qual falávamos era justamente a memória. Conversávamos sobre os antigos, sobre os que se foram, sobre os corpos dos nossos que agora eram pura imaginação. A certa altura eu faço um comentário - ingênuo, digamos - a respeito de como a ausência dessas pessoas às vezes parece não ser tão dura em virtude das lembranças. Chico, com seu calmo e peculiar tom de voz, adverte-me: "Pois é, meu caro, mas a morte chega até mesmo para essa matéria que compõe nossas lembranças individuais." A conversa continuou mas essa frase me atingiu o peito e, agora que a releio gravada na tinta azul, vejo que até mesmo ela pareceu morrer nos últimos tempos.
O jogo desta manhã estava se formando em tons nada cordiais e os paradoxos das idas e vindas, dos aparecimentos e sumiços eram agora irreversíveis. Os fantasmas da noite não poderiam ficar de fora da nova conversa imaginária com Chico. Eu poderia lhe dizer: "Olha, Chico, eles estão aqui!". Ao que ele poderia responder, talvez citando Furio Jesi: "Do passado o que importa é o que se esquece...". É, talvez a experiência do presente vivente seja a curiosa forma de fazer o passado falar sem ameaças, sem interromper nossa respiração. Respirar é preciso! E talvez ficar ofegante não seja uma maneira de enfrentar as interrupções do balé da inspiração/expiração.
Depois do diálogo com Chico acabei por me lembrar de que quando vi as "Tentações de Santo Antônio" de Bosch tive como um alento para meu cansaço (cheguei ao Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa exausto e já ofegante depois de horas de caminhada), ainda que tenha ficado um tanto quanto conturbado por aquelas imagens. A primeira impressão era de reversão: criaturas aladas com formas de peixe nos céus, cidades a queimar, seres demoníacos de todas as ordens. Era o mal que invadia o mundo, era uma visão pessimista da história e da vida humana. No centro do tríptico o Santo Antônio sereno, ajoelhado diante de uma imagem do Cristo, olha para os espectadores e, numa espécie de tentativa extrema de saída da destruição, parece dizer: "O centro da minha vida está no Cristo, na renúncia à minha vida para - como diz São Paulo - poder dizer que não sou mais eu quem vivo, mas Cristo que vive em mim. E essa é minha esperança e por isso resisto às tentações." Ora, renunciar a vida em prol da vida. O paradoxo do cristianismo oficial sacode a beleza do quadro. Entretanto, a visão do santo não me aliviou em nada a tensão das imagens circundantes (talvez minha sensação fosse fruto da minha tentativa de rejeição à "esperança oficial" cristã). Aliás, bastou-me dar alguns passos para ver que atrás dos painéis haviam outros dois esboços do pintor: o caminho para o Calvário e o encontro de Cristo com Verônica. Aqui, nada além de um vazio desértico e uma desolação quase que irremediável. Os rascunhos, que estão atrás dos painéis laterais do tríptico, são as sombras constantes (literais, poderia dizer) da esperança esboçada na imagem central de Santo Antônio.
As lembranças continuam, mas a vida parece estar numa pausa. Talvez lembrar do pessimismo de Bosch possa ser uma pedra de toque para seu reverso: tentar encontrar a matéria experimentada na vida presente. Não digo uma "vontade de otimismo", não digo um voo para os céus das contemplações de uma vida outra (como as que estão presentes na face do santo diante da imagem do cristo no painel central), mas talvez apenas uma vontade de respirar.

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