terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O relógio

No Palazzo d'Accursio um relógio parado me dizia uma hora eterna: 9:16. Era estranho entrar naquele quarto todo decorado, com papel de parede verde, com cerâmicas italianas de motivos árabes (aquelas que, de outra maneira, ainda hoje podemos encontrar em lojinhas de Taormina), mobília nobiliárquica de fins de século XVIII e começo de século XIX, quando existiram as então repúblicas Cispadana e Cisalpina, criadas pela invasão napoleônica. A hora, 9:16, era eterna e não poderia eu saber nada além da colocação dos ponteiros imóveis. Teria aquele relógio estado por ali durante os eventos da conquista de Napoleão, quando ele observou Bolonha do alto das colinas (onde depois seu subalterno Aldini mandaria construir uma Villa, na qual o Imperador jamais botou os pés) e disse: "C'est superbe!"? A história tinha me pegado a contrapelo. Eu não sabia de nada e de nada adiantava saber naquele momento. A hora do Vander Cruse de Paris era um fosso no qual eu caia: 9:16. Será mesmo que o ponteiro estava já na casa dos dezesseis minutos? Será que eu tinha entrado na coleção comunal de arte preparado para encontrar a minha hora?
Os dias se passaram e o quarto verde era algo de que não conseguia me esquecer. Era muito similar aos outros, onde também existiam cerâmicas, pequenas estatuetas, mobílias riquíssimas em madeira nobre e veludo, quadros de natureza-morta e relógios parados. Mas alguma razão existia para que eu me concentrasse, mesmo hoje (não sei quanto tempo depois), no quarto verde e, principalmente, no Vander Cruse que marcava 9:16. Razões podem ser inventadas de mil e uma formas diferentes, com variantes infindáveis, com causas quase que óbvias (porque fora o primeiro a visitar, porque fora ali que decidira fazer as anotações do que estava sentindo... enfim); mas de modo algum a passagem da impressão daquele momento à esta alegoria de um sentimento passado pode ser desvendada. Talvez eu até possa "saber inconscientemente" (sem o saber doloroso da consciência), mas o porquê permanece obscuro. Quis pensar a respeito das histórias que poderiam ter sido inventadas a partir das horas marcadas naquele relógio, quis inventariar algo para aquele quarto. Pensei na dama da alta sociedade bolonhesa que poderia estar agoniada pelas 9:20 enquanto uma serviçal lhe apertava o espartilho; também pensei nas senhoras que esperavam a hora certa para tomar seu chá; pensei nos militares prontos e à espera da próxima incursão... tudo o que a partir daquele relógio pode ter sido criado como mito e ficção de outros tentei minimamente imaginar. Claro que a pretensão era imensa e maior que a minha capacidade de cruzar o mundo e os tempos imaginados. Mas a hora estava marcada: 9:16.
Talvez eu tinha algum compromisso marcado para uma outra hora. Conferi o meu relógio - do celular, digital e sem o mínimo de pompa - e vi que era tarde, talvez demais para o momento. A interrupção, o corte no tempo acontece. Parei, deixei o texto que estava escrevendo sobre o relógio para encontrar-me com as horas. Tarde demais. Já passava das 9:16 e o canto do galo que tinha alertado Pedro não chegou a mim; nem as onomatopeias mais perfeitas eram capazes de me despertar do sonho com a hora exata. Por que deixei de estar na hora marcada onde eu queria ter estado? Ou talvez, por que estive nas horas marcadas e não faltei?
O relógio da parede do quarto verde do Palazzo d'Accursio era um indício que não poderia mais desprezar: paro o tempo, paro a vida, interrompo o fluxo circular que não indica senão o infortúnio de vidas que se cruzam sem se olharem e, como os ponteiros a girar, vagueiam vazias e impotentes diante do triunfo da morte (este quadro de Brueghel que sempre me fez pensar sobre a vida). As histórias que imaginei terem sido guiadas pelo tique-taque do relógio não sobreviveram, as damas da sociedade e os militares sucumbiram e, à beira da miséria humana, pareço sentir, à distância de horas, o meu momento presente. Tique-taque, tique-taque... e a proximidade é destronada, o giro dos ponteiros remove as pétalas das rosas que outrora ocupavam o caminho, o vazio se mostra... olho para o relógio... tento esquecê-lo...

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