quinta-feira, 2 de junho de 2011

Nota sobre um estranhamento familiar



O lugar era-me completamente desconhecido; jamais passara por ali. Li, no frontispício de uma guarita (dessas por aqui tão comuns, cheias de seguranças engravatados que possivelmente pegam seus trens de final de expediente para dormir nas bordas insólitas desta cidade), o nome Highlands. A sensação de estranhamento se agravou quando, no instante mesmo em que lia, o perfume de uma dama da noite tomou meu pensamento. Corri os olhos por aquelas imagens estranhas para tentar encontrar com minha visão o que meu olfato já havia encontrado - e o descompasso entre os sentidos era mais um alento para meu sentimento de estranhamento: é o corpo nos dando mostras do descontínuo enquanto o pensamento, este tolo, inventa a continuidade.
As histórias são entrecortadas e o Highlands que acabava de ler já não era o mesmo das placas de sinalização naquele ônibus frio e abarrotado que, entretanto, era o portador de desconhecidos para rumos desconhecidos e desejados, para histórias em meio a uma terra ignota mas já vista e revista no imaginário. Agora eu também estava em um certo tipo de terras altas, mas estas eram de um outro tipo, de uma outra espécie: não palpável, não visível, não olfativa e silenciosa. Era um desarranjo, uma peripécia desta faculdade intelectiva-sensorial para a qual damos o nome de memória. A dama da noite, porém, continuava escondida. Deixei de procurá-la e continuei no meu trajeto por aquela rua de nome estranho no bairro montanhoso desta cidade estranha. A impressão do cheiro da dama da noite nada tinha a ver com a viagem para as proximidades das Highlands; tampouco a cidade estranha se assemelhava à cidade da viagem passada. Entretanto, as conexões estavam possíveis nos cruzamentos sensoriais e imaginativos.
A noite continuava a descer seu véu sobre os espaços por mim jamais percorridos, porém as imagens que via, os sons que ouvia e os cheiros que sentia encontravam suas histórias em mim: eram elas, as sensações, que me encontravam (que brotavam no meu corpo de maneira espontânea, sem que eu pudesse me dar minimamente conta do que eram e de como se arranjavam nesta conexão de corpo e palavra que é o sujeito), não eu (este espaço vazio da enunciação discursiva) que as encontrava em mim... e agora toda esta história me fez lembrar do espanto que Freud teve ao se dar conta de que o senhor de chapéu que, naquele vagão de trem, parecia fitar-lhe era seu próprio reflexo num espelho (e lembrei que foi a partir disso que o psicanalista desenvolve seu conceito de Unheimlich, isso é, o estranhamente familiar). E acho que o esquecimento de si - por mais ínfimo que seja seu tempo de duração - e os esquecimentos das situações pelas quais esse "si" passou (ou não, pois acho que esquecemos até mesmo o que não vivemos) são os pressupostos fundamentais desses desencontros de sensações e memórias.
Talvez a pequena caminhada de fim de tarde nesta cidade estranha seja um estranhamento familiar dos meus sentidos em relação ao meu corpo; talvez toda a desconexão entre os sentidos, o pensado e o enunciado seja uma estranha consequência de impressões outras, de lembranças de coisas que nunca aconteceram - e lembro inevitavelmente do tom sombrio da canção de Mark Sandman e também de outra canção sua em que pensa numa cura para toda dor. Delírio? Pode ser, mas, enfim, também estas palavras vãs podem não passar de delírios.
Talvez encontros e desencontros de pessoas e gestos, de sensações e sentimentos, de lembranças e esquecimentos, sejam apenas o movimento mais banal de qualquer caminhada de fim de tarde para o qual não damos atenção, mas que uma dama da noite qualquer pode, de repente, dar um toque perfumado.

Imagem: René Magritte. L'Empire des Lumières. 1954. Peggy Guggenheim Collection, Venezia.

Um comentário:

pancho disse...

hoje a "realidade" destas megalópoles é tão "consistente" quanto a de um sonho qualquer...no sonho tudo se reporta ao sujeito que sonha, ao "si"... a única coisa de real aí pode ser esta "dama da noite", mesmo que seja aqui uma tímida flor nascida no asfalto, flor trancafiada em condomínio.

belo texto!