sábado, 26 de janeiro de 2013

A descida


Às vezes a sensação de que passamos a vida apenas aguardando uma morte digna causava-lhe repulsa. Por que esperar o inevitável? Qual os motivos das perguntas sobre a noite escura do nada? Tudo isso o confundia, fazia com que tivesse desejos de viver enclausurado, despido do contato com outros seres vivos. Roçando a própria barba com seus dedos, passava a manhã ainda deitado no seu quarto, observando através dos primeiros fachos de luz da manhã como as células mortas de seu rosto saltavam a cada passada de dedos. Por que pensar em esperar algo que já nos acompanha desde sempre? Por que crer em algo como a dignidade se esta era tão somente a máscara de cera que substituia o corpo já morto do rei nas pompas fúnebres? Como passar a vida sem esperar o inevitável?
Naquela manhã as angústias estavam ainda mais grosseiras do que de costume. Era como se estivesse pressentindo justamente a sua morte iminente, mas não queria se preocupar com isso. Queria era a possibilidade de perder-se das formas de espera, do encontro inevitável. Ora, pensava, se não há outra saída senão essa, porque os homens querem ser dignos diante dessa passagem pela qual tudo passa? E, se tudo por ali passa, como os homens não se envergonham por uma espera tão vil? Levantou-se da cama caminhando em direção à cozinha, onde pretendia cumprir seus ritos e entregar-se ao vício do café. Não tinha esperanças e, portanto, cumpria os ritos não como as destrezas de um sacerdote, o responsável - justamente por meio do rito - pela delimitação dos espaços sagrados e profanos, mas como um craqueiro coloca mais uma pedra no fundo de uma lata suja (e, pensando nisso, lembrou que toda manhã não lhe ocorria nada mais do que se deixar guiar por essas sevícias da consciência subjetiva - esse quase monstro do ocidente). Enquanto passava o café, lembrou de uma das epígrafes de um dos capítulos do livro que na noite anterior não o tinha deixado dormir: "A descida seduz/ como seduziu a subida./ Nunca a derrota é só derrota, pois/ o mundo que ela abre é sempre uma parada / antes/ insuspeitada".
O mundo da derrota, das perdas, era sim insuspeitado. Não que a derrota lhe interditasse a felicidade. Pelo contrário, não pensava na banalidade das vitórias cantadas, como se fosse possível vencer algo nesta vida, mas no ocaso das perenes esperanças. Era no fosso, onde a vida decorre, que pensava a abertura do mundo que cada derrota diária lhe proporcionava. E o cheiro do café lhe trazia a certeza da banalidade da vida, da visceralidade disso que, tolos, pensamos ser a dignidade. Ao sentar-se, tomando o café amargo, deu-se conta de que toda sua reflexão matinal era uma pantomima dos pensamentos do dr. Fausto. A manhã, portanto, resumia-se a um diálogo.
"Fausto: Primeiro irei interrogá-lo sobre o inferno. Digam-me onde é o lugar que os homens chamam de inferno?
Mefistófeles: Debaixo do firmamento.
Fausto: Está bem, mas onde?
Mefistófeles: Nas entranhas desses elementos, onde somos torturados e ficamos para sempre: o inferno não tem limites, não se localiza num só lugar; porque o inferno é onde estamos, e onde for o inferno, lá estaremos para sempre..."

Imagem: Eugène Delacroix. Fausto com Margarete na prisão (detalhe). 1828. Musée Eugène Delacroix, Paris. 

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