quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Ritmos infantis


Há pouco lembrava dos relógios que desenhava no pulso esquerdo: chacoalhava o braço com insistência par sentir o barulho do ponteiro dos segundos. Era como se a tinta da caneta tivesse criado um verdadeiro relógio. Nessa época ainda não havia feito a primeira comunhão, ainda não tinha ganas de saber e de entender o transcurso da sua curta existência. O relógio de pulso recém criado era já o bastante para compreender o que eram as horas. O tempo, antes da comunhão, era ordenado pelas horas da comida: café da manhã, almoço, café da tarde, janta... para não falar dos entremeios. A fome era reguladora das estações da vida. Um dia podia parecer uma espécie de grande mesa a ser percorrida na ausência dos adultos. Correr para comer, comer para correr e os desenhos e jogos da infância lançavam-no no seu mundo das horas do relógio que acabara de desenhar.
Esgueirar-se por uma vida plena de refeições, sem a preocupação das horas, fazia da criança um ser altivo, esperto no desembaraçar de histórias, de imagens. Talvez os desenhos que todas as crianças insistem em fazer e com eles presentear adultos de que elas gostam sejam o reflexo da atmosfera de passagem, de movimento contínuo, pela qual a imaginação infantil transita sem meios termos. A hora das passagens, no entanto, acaba, num certo momento, sendo cooptada por certas manifestações hipócritas dos adultos. E, talvez, a regulamentação da voracidade alimentar através do ideário eucarístico possa ser um dos exemplos dessas estacas que freiam a imaginação infantil.
A convenção católica absorve o desregramento cronológico do mundo das crianças ao fundar em seu imaginário uma ideia de representação alimentar pautada numa antropofagia às avessas: come-se o pão como se fosse o corpo de alguém; bebe-se o vinho como se fosse o sangue de alguém. Aliás, na concepção católica come-se o próprio corpo e bebe-se o próprio sangue do cristo (não quero entrar no debate acerca da consubstanciação ou transubstanciação, pois acho que já se gastou muita saliva para tentar digerir esses conceitos...). A criança, ao se deparar com a seriedade da refeição, começa a prestar atenção nos tempos necessários para se comer: aliás, o alimento católico somente pode ser servido após um rito (uma coordenação do tempo) que intenta repetir o dar-se à morte do cristo. Apartadas da "magia" das horas pintadas no pulso, separadas dos espaços da grande mesa do infindável dia de fome, as crianças caem: param de desenhar, não mais reparam nos movimentos livres das horas e, por fim, deixam-se apreender pelo ritmo de uma cronologia salvífica que aguarda redenção num para além das fatias de tempo que lhe imprimiram ritmo à vida pós-infantil.
Claro que essa descrição da comunhão católica é apenas um exemplo da separação da criança do mundo de sua imaginação infantil. Tantas outras, ora menos ora mais perversas, hoje se instauram: o mundo da escola capitalista, a educação calcada na proteção imunitária contra tudo e todos, o mundo irrestrito das tecnologias que tolhe determinado aspecto da imaginação, o terrível mundo televisivo etc.. E é no cáustico ritmo impresso na "vida séria adulta" que talvez hoje seja possível assistir à morte da imaginação. As prescrições, os manuais e os modos de fazer impregnados da lógica da seriedade obscurecem qualquer chance de montagem de um saber imaginativo. (É bom lembrar que a imaginação não é um abandono às miragens e delírios de um reflexo, mas um limiar em que sensível e pensamento se tocam e, com isso, abrem um campo de possibilidades aos homens.)
Talvez, a nós, adultos, sejam tempos de tentar redesenhar relógios nos braços, de deixar fluir o ritmo do movimento da vida, de deleitar-se em tempos outros numa refeição, de animar os espaços ritualizados de uma vida "enojada" e, com isso, viver não uma vida sonhada séria e feliz (patética convenção capitalista), mas a banalidade ordinária (para não dizer quase cretina) de uma vida desperta e possível.

Imagem: Paul Gauguin. A refeição (As bananas). 1891. Musée d'Orsay, Paris.

Nenhum comentário: