domingo, 6 de janeiro de 2013

DEIXEM TUDO PARA TRÁS, NOVAMENTE




primeiro manifesto infra-realista


"Até os confins do sistema solar são quatro horas-luz, até a estrela mais próxima, quatro anos-luz. Um ilimitado oceano de vazio. Mas, temos realmente certeza de que há apenas um vazio? Sabemos apenas que neste espaço não existem estrelas luminosas; se existirem, seriam visíveis? E se existirem corpos não luminosos ou obscuros? Não poderia acontecer nos mapas celestes o mesmo que ocorre com os mapas da terra, que estejam indicadas as estrelas-cidades e omitidas as estrelas-povoados?"
  
Escritores soviéticos de ficção científica arranhando o rosto à meia noite.
-Os infrasóis[1] (Drummond diria os alegres meninos proletários).
                                     
-Peguero e Boris solitários em um quarto lumpen pressentindo a maravilha atrás da porta.

-Free Money

*

Quem atravessou a cidade e por apenas uma única música teve os assovios de seus semelhantes, suas próprias palavras de assombro e raiva?

                            O cara bonito que não sabia
                            que o orgasmo das minas[2] é clitorial

(Procurem, não apenas nos museus há merda) 
(Um processo de museificacão individual) 
(A certeza de que tudo está nomeado, desvelado)
(Medo de descobrir) 
(Medo dos desequilíbrios não previstos).
                                               *
Nossos parentes mais próximos:

os franco-atiradores, os caboclos[3] solitários que assolam cafés de chineses latino americanos, os massacrados em supermercados, em suas tremendas disjunções individuo-coletividade; a impotência da ação e a busca (em níveis individuais ou atolados em contradições estéticas) da ação poética.

*
  
Pequeninas estrelas luminosas guiando-nos eternamente um olho desde um lugar do universo chamado Os labirintos.

-Dancing-Club da miséria.
  
-Pepito Tequila soluçando seu amor por Lisa Underground.

-Chúpaselo, chúpatelo, chupémoselo.

-E o Horror
  
*
  
Cortinas de água, cimento ou lata, separam  uma maquinaria cultural, aquela que também pode servir  de consciência ou cu da classe dominante, de um acontecer cultural vivo, arruinado, em constante morte e nascimento, ignorante de grande parte da historia e das belas artes (criador cotidiano de sua louquíssima história e de sua alucinante “vellas hartes”), corpo que agora experimenta sensações novas, produto de uma época em que nos aproximamos a 200 kph da latrina ou da revolução.
  
“Novas formas, raras formas”, como dizia entre curioso e risonho o velho Bertolt.
  
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As sensações não surgem do nada (obviedade de obviedades), mas da realidade condicionada, de mil maneiras, a um constante fluir.

-Realidade múltipla, nos mareia!

É possível que por uma parte se nasça e por outra estejamos nos primeiros assentos dos estertores finais. Formas de vida e formas de morte passeiam cotidianamente pela retina. O choque constante da vida às formas infra-realistas: O OLHO DA TRANSIÇÃO
  
*
  
Botem toda cidade no manicômio. Doce irmã, uivos de tanques, canções hermafroditas, desertos de diamante, só viveremos uma vez e as visões cada dia mais grossas e escorregadias. Doce irmã, caronas para Monte Albán. Apertem os cintos porque os cadáveres são irrigados. Um movimento de menos.

*

E a boa cultura burguesa? E a academia e os incendiários? E as vanguardas e suas retaguardas? E certas concepções de amor, a boa paisagem, a Colt precisa e multinacional?
  
Como me disse Saint-Just em um sonho que tive faz um tempo: até as cabeças dos aristocratas nos podem servir de armas.
  
*
  
-Uma boa parte do mundo vai nascendo e outra boa parte morrendo, e todos sabemos que teremos de viver ou morrer: nisto não há termo médio.

Chirico disse: é necessário que o pensamento deixe de tudo que se chama lógica e bom sentido, que deixe de todas as travas humanas de modo tal que as coisas lhe apareçam sob um novo aspecto, como que iluminadas por uma constelação que surge pela primeira vez. Os infra-realistas dizem: vamos nos meter de cabeça em todas as travas humanas, de modo tal que as coisas comecem a mover-se dentro de si, uma visão alucinante do homem.

-A Constelação do Belo Pássaro.

-Os infra-realistas propõem ao mundo o indianismo: um índio louco e tímido.

-Um novo lirismo que começa a crescer na América Latina, a se sustentar em formas que não deixam de nos maravilhar.  O começo do assunto já o começo da aventura. O poema como uma viagem e o poeta como um herói que revela heróis. A ternura como um exercício de velocidade. Respiração e calor. A experiência disparatada, estruturas que devoram a si mesmas, contradições loucas.

 - Se o poeta está imiscuído, o leitor terá que se imiscuir.
  
“livros eróticos sem ortografia”
  
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Nos antecedem as MIL VANGUARDAS ESQUARTEJADAS nos anos SESsENTA

As 99 flores abertas como um cabeça aberta

As matanças, os novos campos de concentração

Os Brancos rios subterrâneos, os ventos violetas

São tempos duros para a poesia, dizem alguns, tomando chá, escutando música em seus apartamentos, falando (escutando) aos velhos mestres. São tempos duros para o homem, dizemos nós, voltando às barricadas depois de uma jornada cheia de merda e gazes lacrimogênios, descobrindo / criando música até nos apartamentos, vendo largamente os cemitérios-que-se-expandem, onde tomam desesperadamente uma taça de chá ou se embebedam de pura raiva ou inércia os velhos mestres.

Antecede-nos HORA ZERO

(Cria zambos e te picarão os calos)

Ainda estamos na era quaternária. Ainda estamos na era quaternária?

Pepito Tequila beija os mamilos fosforescentes de Lisa Underground e a vê se distanciar em uma praia onde brotam pirâmides negras.


*
Repito:

o poeta como herói revelador de heróis, como a árvore vermelha caída que anuncia o início do bosque.

-As tentativas de una ética-estética consequente estão pavimentadas de traições ou sobrevivências patéticas.

-E é que o indivíduo pode andar mil quilômetros, mas ao longo do caminho ele o come.   

-Nossa ética é a Revolução, nossa estética a Vida: uma-só-coisa.
  
*
   
O burgueses e os pequenos burgueses vivem em festa. Todos os finais de semana tem uma. O proletariado não tem festa. Apenas funerais com ritmo. Isso mudará. Os explorados terão uma grande festa. Memória e guilhotinas. Intui-la, atuá-la em certas noites, inventar-lhe arestas e cantos úmidos, é como acariciar os olhos ácidos do novo espírito.

*

Deslocamento do poema através das estações dos motins: a poesia produzindo poetas produzindo poemas produzindo poesia. Não um corredor elétrico / o poeta com os braços separados do corpo / o poema deslocando-se lentamente de sua Visão à sua Revolução. O corredor é um ponto múltiplo. “Vamos inventar para descobrir sua contradição, suas formas invisíveis de negar-se, até aclará-lo”. Deslocamento do ato de escrever por zonas nada propícias ao ato de escrever.

                   Rimbaud, volte para casa!

Subverter a realidade cotidiana da poesia atual. Os encadeamentos que conduzem a uma realidade circular do poema. Uma boa referência: o louco Kurt Schwitters. Lanke trr gll, o, upa kupa arggg, sucedem em linha oficial, investigadores fonéticos codificando o uivo. As pontes do Noba Express são anti-codificantes: deixem-no que grite, deixem-no que grite (por favor não vão pegar um lápis nem um papelzinho, nem o gravem, se querem participar gritem também), logo que o deixem gritar, vejam que cara está quando acabou, a que outra coisa incrível passamos.

Nossas pontes às estações ignoradas. O poema inter-relacionando realidade e irrealidade

                                                        *
  
Convulsivamente
  
                                                         *

Que posso pedir à atual pintura latino-americana? Que posso pedir ao teatro?

Mais revelador e plástico é parar em um parque destruído pela poluição e ver as pessoas cruzando em grupos (que se comprimem e se expandem) nas avenidas, quando tanto os automobilistas como os pedestres têm pressa para chegar a seus muquifos, e é a hora em que os assassinos saem e as vítimas os seguem.

Que histórias realmente me contam os pintores?

O vazio interessante, a forma e a cor fixas, no melhor dos casos a paródia do movimento. Telas que servirão apenas de anúncios luminosos nas salas dos engenheiros e médicos que as colecionam.

O pintor se acomoda uma sociedade que cada dia é mais “pintora” que ele mesmo, é aí onde ele se encontra desarmado e se coloca como palhaço.

Se um quadro de X é encontrado em alguma rua por Mara, este quadro adquire a categoria de coisa divertida e comunicante; é um espetáculo é tão decorativo como cadeiras de ferro do jardim do burguês / questão de retina? / sim e não / mas melhor seria encontrar (e por um tempo sistematizar aleatoriamente) o fator detonante, classista, cem por cento propositivo da obra, em justaposição aos valores de “obra” que a estão precedendo e condicionando.

-O pintor deixa do estúdio e QUALQUER status quo e mete a cabeça na maravilha / ou se  põe a jogar xadrez como Duchamp / Uma pintura didática para a mesma pintura / E uma pintura da pobreza, grátis ou bastante barata, inacabada, de participação, de questionamento na participação, de extensões físicas e espirituais ilimitadas.

A melhor pintura da América Latina é aquela que ainda se faz em níveis inconscientes, o jogo, a festa, o experimento que nos dá uma real visão daquilo que somos e nos abre ao que podemos será a melhor pintura de América Latina, é a que pintamos com verdes e vermelhos e azuis sobre nossos rostos, para nos reconhecer na criação incessante da tribo.

                                                *

Tentem deixar tudo para trás diariamente.

Que os arquitetos deixem de construir cenários para dentro e que abram as mãos (ou que as empunhem, dependendo do lugar) para o espaço exterior. Um muro e um teto adquirem utilidade quando não servem apenas para dormir ou evitar chuvas mas quando estabelecem, por exemplo, a partir de ato cotidiano do sonho, pontes conscientes entre o homem e suas criações, ou a impossibilidade momentânea destas.

Para arquitetura e  a escultura os infra-realistas partem de dois pontos: a barricada e a cama.
  
                                               *
A verdadeira imaginação é aquela que dinamita, elucida, injeta micróbios esmeraldas em outras imaginações. Na poesia ou no que seja, a entrada na matéria tem de ser já entrada na aventura. Criar as ferramentas para a subversão cotidiana. As estações subjetivas do ser humano, com suas belas árvores gigantescas e obscenas, como laboratórios de experimentação. Fixar, entrever situações paralelas e tão desgarradoras como um grande arranhão no peito, no rosto. Analogia sem fim dos gestos. São tantos que quando aparecem os novos nem nos damos conta, ainda os fazemos/ vendo frente a um espelho. Noites de tormenta. A percepção se abre mediante uma ética-estética levada ao limite.

                                                         *

 As galáxias do amor estão aparecendo na palma de nossas mãos.

-Poetas, soltem-se das amarras (se as têm)

-Queimem suas porcarias e comecem a amar até que cheguem aos poemas incalculáveis.

-Não queremos pinturas cinéticas, mas enormes entardeceres cinéticos

-Cavalos correndo a 500 quilômetros por hora

-Esquilos de fogo saltando por árvores de fogo

-Uma aposta para ver quem pisca primeiro, entre o  nervo e a pastilha sonífera

                                                         *

 O risco sempre está em outra parte. O verdadeiro poeta é aquele que sempre está abandonando-se. Não passa muito tempo em um mesmo lugar, como os guerrilheiros, como os OVNIS, como os olhos brancos dos presos à pena perpétua.
  
                                                        *

Fusão e explosão de duas margens: a criação como um graffiti firme feito por um menino louco.

Nada mecânico. As escalas do assombro. Alguém, talvez o Bosco, rompe o aquário do amor. Dinheiro grátis. Doce irmã. Visões levianas como cadáveres. Little boys tascando beijos em dezembro.
  
                                                       *

 Às duas da manhã, depois ter passado na casa de Mara, escutamos (Mario Santiago e alguns de nós) risadas que saíam do penthouse de um edifício de 9 andares. Não paravam, riam e riam enquanto nós embaixo dormíamos apoiados em várias cabines telefônicas. Chegou um momento em que apenas Mario prestava atenção às risadas (o penthouse era um bar gay ou algo parecido e Darío Galicia nos havia contado que sempre estava vigiado por policiais). Fazíamos chamadas telefônicas mas as moedas estavam feitas de água. As risadas continuavam. Depois que deixamos desta colônia, Mario me contou que realmente ninguém havia rido, eram risadas gravadas e mais acima, no penthouse, um grupo reduzido, ou talvez um só homossexual, escutava em silêncio seu disco e fez com que também o escutássemos.

-A morte do cisne, o último canto do cisne, o último canto do cisne negro, NÃO ESTÃO no Bolshoi mas na dor e beleza insuportáveis das ruas.

-Um arco íris que principia em um cinema de má morte e que termina em uma fábrica em greve.

-Que a amnésia nunca nos beije na boca. Que nunca nos beije.

-Sonhávamos com utopia e nos despertamos gritando.

-Um pobre vaqueiro solitário que regressa à sua casa, que é a maravilha.

                                                *

 Fazer aparecer  as novas sensações. Subverter a cotidianeidade
                          

O.K.

DEIXEM TUDO PARA TRÁS, NOVAMENTE

LANCEM-SE  AOS CAMINHOS


Roberto Bolaño, México, 1976


1. “O nome infrarrealista, segundo Ariel Idez y Osvaldo Baigorria (2008) foi proposto por Bolaño e sobre a sua origem existem diferentes versões. Uma delas sustenta que o termo vem do conto  La infra del Dagrón do escritor de ficção científica russo Georgij Gurevich (aparecido originalmente em 1959) e se refere ao ―sol negro‖ ou ―infrasol‖, corpo escuro que gera luz própria dentro do seu interior, mesmo que esta não seja vista na sua parte exterior. Já se percebe uma cumplicidade do movimento com os gêneros B, o romance policial, os filmes de ficção científica e pornôs, os gêneros tidos como bastardos e marginais.  Outra versão, sobre o nome,  diz que seu criador foi o artista plástico chileno Roberto Matta.  Por acaso um sol negro tinha inspirado Matta a cunhar o  prefixo ―infra‖logo depois que foi expulso por Breton do movimento surrealista. O pequeno movimento de Matta de apenas um membro, ele mesmo, é recuperado nos anos de 1970 no México. A terceira versão é a de Jorge Herralde que apresenta o termo infrarrealista como proveniente da França, ligado indiretamente ao surrealismo e ao dadaísta Philippe Soupault e que Bolaño e seus amigos tinham fundado um clube e uma literatura da desesperança.” ARCURI, Sylvia. Noturno do chile: literatura em tempos sombrios. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ, 2012. pp. 26-27. 

2. Chavas, no original. Gíria mexicana.  
3.“os llaneros solitarios que asolan los cafés de chinos de latinoamérica”, o llanero é uma espécie de gaucho da américa central, presente em países como El salvador, Colômbia, Venezuela e México. Os cafés ou bares chinos dizem respeito a algumas capitais da América hispânica, onde as colônias chinesas estabeleceram locais com misturas de comidas chinesas e pratos latinos típicos, como as Tifas, de Lima. 

http://manifiestos.infrarrealismo.com/primermanifiesto.html      
Imagem: Graffiti em Londres, mermaid99.


Um comentário:

marginário disse...

para contextualizar: este manifesto foi escrito quando Bolaño tinha 23 anos.