quarta-feira, 23 de abril de 2014

Alguns poemas de Antonio Gamoneda


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Teve um tempo em que minhas únicas paixões eram a pobreza e a chuva.

Agora sinto a pureza dos limites e minha paixão não existiria se dissesse seu nome.

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Lembro do frio do amanhecer, os círculos dos insetos sobre os copos imóveis, a possibilidade de um abismo cheio de luz sob as janelas abertas para a ventilação da enfermidade, o odor triste da soda cáustica.

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Alguém entrou na memória branca, na imobilidade do coração.

Vejo uma luz debaixo da neblina e a doçura do erro me faz cerrar os olhos.

É a ebriedade da melancolia; como aproximar o rosto de uma rosa enferma, indecisa entre o perfume e a morte.

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Não tenho medo nem esperança. Em um hotel fora do destino, vejo uma praia negra e, distante, as grandes pálpebras de uma cidade cuja dor não me concerne.

Venho do metileno e do amor; tive frio sob os tubos da morte.

Agora contemplo o mar. Não tenho medo nem esperança.

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Eras sábio e covarde, estás ferido entre as mulheres úmidas, teu pensamento é apenas lembrança da ira.

Vejo as rosas temíveis.

Ah caminhante, ah confusão de pálpebras.

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Pousa teus lábios nas cânulas como faz o deus que chora em teus armários, o que fala entre unhas amarelas; silvo do sofrimento nas cânulas e, na pureza das horas vazias, lembras da zaragatoa de teu pai, a solidão das pombas extraviadas na eternidade.

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Lençol negro na misericórdia:
tua língua em um idioma ensanguentado.

Lençol ainda na substância inferma,
a que chora em tua boca e na minha
e, atravessando docemente feridas,
ata meus ossos a teus ossos humanos.

Não morras mais em mim, sal de minha língua.

Dá-me a mão para entrar na neve.

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Ame todas as perdas.

Ainda retumba o rouxinol no jardim invisível.

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Todas as árvores puseram-se a gemer dentro de meu espírito ao lembrar de tuas calcinhas na penumbra, a luz debaixo de tua pele, tuas pétalas viventes.

Atravessando aniversários, às vezes viajam as pombas ébrias.

Venha desnuda tua misericórdia, ah pomba mortal, filha do campo

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Nossos corpos se penetram com cada vez mais tristeza, mas eu amo essa púrpura desolada.

Ah a flor negra dos dormitórios, ah os comprimidos do amanhecer.

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Veio tua língua; está em minha boca
como uma fruta na melancolia.

Tem piedade em minha boca: suga, lambe,
meu amor, a sombra.

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Na umidade me amas

e eras azul em teus mamilos. Falas

suavemente em meus lábios e regressas

à tua prisão na melancolia.

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Teus cabelos embranquecem entre minhas mãos e, como águas silenciosas, nos abandonam as lembranças. Sinto a frieza da existência mas teu odor se espalha pelos quartos e tua lascívia vive em meu coração e entra meu pensamento em tuas feridas.

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Poemas de "Aún" e "Pavana Impura", presentes no volume Antonio Gamoneda. Lengua y herida. Selección y prólogo de Vicente Muleiro. Buenos Aires: Ediciones Colihue, 2004. pp. 145-159. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko).