domingo, 20 de abril de 2014

Da oração


A oração em voz alta, que tanta importância tem no culto religioso, prolonga e desenvolve a linguagem egocêntrica infantil. Desta herda certas funções salientes e retoma, descaradamente, mesmo que a complicando de modo desmesurado, as típicas modalidades: a massa dos fieis, que pretende louvar ou suplicar, dá lugar a uma sequência de "monólogos coletivos" nos quais predominam a ecolalia, a fabulação, o anúncio daquilo que se está fazendo ou se quer fazer.
Vimos antes (§10) que a linguagem egocêntrica da criança, de maneira contrária à hipótese de Vygotskij, não se transforma por inteiro no silencioso pensamento verbal do adulto. Muitos de seus traços cruciais - justo aqueles de que dependem a formação da autoconsciência e o princípio da individualização - são indissoluvelmente conexos, com efeito, à vocalização. Os estigmas do perceptível solilóquio infantil resurgem muito mais nos discursos de fato pronunciados, nos quais um falante experiente e astuto se limita a afirmar: "Eu falo". Ressurgem, portanto, nos jogos linguísticos marcados pela produção de um performativo absoluto. Desse ponto de vista, exemplares são os monólogos exteriores com que o adulto, falando consigo, exorta ou faz advertências a si mesmo: "Agiu mal, não pode continuar assim", "Pare!", "Senhor, piedade" etc.. Assim, exatamente essas erupções fonológicas, com as quais se infringe o silêncio do pensamento verbal, podem ser equiparadas a justo título à oração religiosa. 
A semelhança mais vistosa entre a oração proferida no templo e o monólogo ressoante de um adulto perturbado consiste no seu caráter supérfluo. Lembremo-nos das observações de Husserl (cfr. §10.2): já que quando fala a si mesmo o locutor por certo não se comunica aqueles "vividos psíquicos" que já conhece de cor, o monólogo é uma "expressão sem sinal" de todo inútil no que diz respeito à questão informativa. Também a oração é pleonástica; também no seu caso pode parecer que se fala apenas por fingimento. Como quem faz um monólogo não tem nenhuma necessidade de informar-se acerca dos próprios "vividos psíquicos", assim também quem ora não tem nenhuma necessidade de notificar Deus a respeito do que pensa e deseja, uma vez que Deus já está ciente disso. No De Magistro, Agostinho de Hipona debruça-se sobre o caráter redundante da oração verbalizada: "Agostinho - Não te parece, assim, que a linguagem tenha sido instituída apenas para ensinar ou para fazer lembrar? Adeodato - Poderia parecer para mim, se não me restasse dúvidas do fato de que para orar, não importa como, falamos. É absurdo pensar que nós ensinamos ou fazemos Deus lembrar de algo" (De Mag., I, 2). Poucas linhas depois, esclarece que a oração, estéril como é de mensagens comunicativas, é sonoramente pronunciada "não por que Deus escuta, mas por que os homens escutam e, por um comum acordo, por meio desse chamar à memória, elevam-se a Deus" (ibid.). Os dialogantes concordam, por fim, com o fato de que, "na oração a Deus, a respeito do qual não podemos pensar que receba um ensinamento ou que seja levado a lembrar, as palavras servem a exortar a nós mesmos" (ibid., 7, 19).
A oração, quanto ao resto supérflua, é proferida não obstante o objetivo de representar-se como falante. A elevação a Deus e a íntima exortação se apoiam de fato sobre essa representação autorreflexiva. O que conforta e purifica o locutor piedoso é justamente a exposição de si tal qual fonte de enunciação ou disparo da voz significante. Também nas "expressões da vida psíquica isolada" não se faz mais, segundo Husserl, que se reconhecer "como pessoas que falam e comunicam". Tanto quem diz a si mesmo "Agiu mal, não pode continuar a se comportar assim", quanto quem ora exclamando "Meu Deus, perdoai-me", limita-se a colocar em cena a própria faculdade de linguagem, a dar prova de poder falar. As duas formas de discurso são, na realidade, a mesma. A oração religiosa regula e potencia os solilóquios verbalizados do adulto, conferindo sua aparência cultual. Mas uma vez que esses solilóquios perpetuam muitas características peculiares da linguagem egocêntrica infantil, também seria possível dizer que a oração é uma linguagem egocêntrica de segundo grau.
13.1. A representação de si mesmo como falante, ônus e bônus da oração, constitui também o ponto do princípio de individualização. A criança se separa da vida pré-individual enquanto se manifesta, aos outros e a si mesma, como "portadora" singular da faculdade de linguagem, particular substrato da potência biológica de falar. A oração renova essa separação. Valoriza ou restaura, portanto, a individualização do falante. Todavia, é evidente que a necessidade de valorizar ou restaurar é sentida apenas quando se está lutando com uma crise. A oração religiosa é um excelente documento das crises periódicas às quais vai de encontro a individualização e, ao mesmo tempo, um modo eficaz de afrontá-las e superá-las. Pronunciar em voz alta palavras supérfluas, que nada comunicam, assinala o ofuscamento da singularidade do falante, mas, ao mesmo tempo, concorre para restabelecê-la. Enquanto mostra o desfazer-se da individualização, a oração é uma ontogênese invertida, ou melhor, uma marcha para trás, em direção à realidade pré-individual da qual se emancipou parcialmente durante a infância. Por outro lado, enquanto assegura uma redenção da crise, confirmando mais uma vez a individualização, esta é uma ontogênese ritualmente duplicada. 
13.2. Ora com abandono (ou, de modo mais servil, explode em uma exclamação dirigida a si mesmo, algo como "Não pode continuar assim") aquele que sente ameaçada a própria singularidade. A pressão da vida pré-individual parece, por um momento, insustentável. O "Eu" bem diferenciado não é mais uma certeza inquestionável: antes, tem-se a impressão de que ele flua ao mundo de todos e de ninguém (cfr. infra, cap. 3, § 3).
A oração reflete a situação ambígua em que vige uma fusão mais ou menos acentuada entre indivíduo e espécie, ou, ainda, entre Eu e Deus. Escreve Eugène Minkowski: "É falso começar dizendo que na oração há um Deus e um eu que àquele se dirige; isso já seria decompor o fenômeno a que nos propomos estudar" (Minkowski, 1968, p. 105). Primária e intransponível é a viscosa unidade dos dois polos, portanto, a indistinção entre emitente e destinatário. Paul Tillich nota o quão bizzaro e até mesmo estridente é "falar para alguém a quem não se pode falar porque não é 'alguém' [...]; dizer 'tu' a quem é mais próximo do Eu do que o Eu de si mesmo" (Tillich, 1952, pp. 134 sg.). Em uma direção, o Deus suplicado se coloca às antípodas da individualidade ("não é 'alguém'"); em outra, ele todavia é tão próximo que permanece ao máximo familiar ("mais próximo do Eu do que o Eu de si mesmo"). Quem ora registra com desânimo e maravilha a intimidade do pré-individual, ou melhor, a prevalência das características biológicas da espécie até os mais recônditos caminhos da sua psique. Há pois um caso extremo. Enquanto se dá conta da fugacidade do Eu, quem ora pode também decidir sair da incerteza radicalizando a crise da individualização. Tem-se, então, a resoluta conversão a uma existência impessoal: em vez de temê-la, anseia por ela e a bendiz. Simone Weil, que cultivou de modo tenaz tal perspectiva, escreve: "Não possuímos nada no mundo - uma vez que o acaso pode nos tirar tudo - a não ser o poder de dizer Eu. É isso que é preciso doar a Deus, isto é, destruir" (Weil, 1947, p. 35). E, ainda: "Uma vez que compreendemos ser nada, o escopo de todos os esforços é ser nada. É com esse fim [...] que se ora. Meu Deus, concedei-me tornar-se nada" (ibid., p. 44). Para Weil, a divindade entra em contato com o indivíduo humano apenas com a condição de que este cesse de ser tal; portanto, somente com a condição de que ele revogue, mediante a oração, a própria volumosa singularidade.
Se a oração religiosa (como a linguagem egocêntrica) é um falar a si mesmo, é preciso entretanto acrescentar que esse "si mesmo" assume, aqui, características instáveis e inseguras.
13.3. Quando parece que a nossa singularidade tenha sido sugada na informe vida pré-individual, tentamos, no máximo (com o risco de não partilhar a inclinação de Simone Weil, que fique claro), reativar o princípio da individualização. Com tal objetivo recorremos à própria linguagem egocêntrica de segundo grau, a oração, que, ao contrário, mostra a fragilidade e as fissuras da individualização. Essa reação apotropaica não consiste por certo em exprimir as características distintivas de um certo Eu: isso que agora parece duvidoso, e é salvaguardado, é, com efeito, o Eu como substrato unitário cuja ligação lembra bem incrustadas e incomparáveis notas biográficas. A oração ainda não é uma ação individual, uma vez que sua tarefa consiste em emancipar de modo ritual quem fala da experiência impessoal que o impregna. Ela é muito mais uma ação individualizante. Evoca mais uma vez e renova a passagem do anônimo pronome "si" ao "eu". A glossolalia, que então é um modo fervoroso de orar, esclarece bem o ponto: nada de menos individual do que uma sequência de sons insignificantes, mas, ao mesmo tempo, nada de mais individualizante do que a pura tomada de palavra com a qual o fiel exibe o caráter inerente do genérico poder-dizer ao seu único corpo vivente. De resto, não são individuais mas individualizantes todos os enunciados cujo sentido primeiro e último seja "Eu falo". 
Justo por que pleonástica e supérflua enquanto comunicativa (Deus já sabe o que lhe é dito), a oração religiosa consente ao falante representar mais uma vez a si mesmo como "portador" individual da faculdade de linguagem, como contingente e irrepetível personificação da potência biológica de falar. Na oração cultual se cumpre mais uma vez, depois de dela ter experimentado a provisória decadência, a encarnação do Verbo em um corpo efêmero. O núcleo deliciosamente naturalístico do princípio de individualização é condensado no versículo mais enigmático de João: Et verbum caro factum est.

Paolo Virno. Quando il verbo si fa carne. Linguaggio e natura umana. Torino: Bollati Boringhieri, 2003. pp. 68-72. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Giotto. Cenas da vida da Virgem. 1304-1306 Cappella Scrovegni, Padova.          

Nenhum comentário: