quinta-feira, 17 de abril de 2014

Intimidade



A unidade em si, a intimidade sem fora: levando-se ao seu máximo de concentração, de penetração, de recolhimento e de meditação (ruminação, retorno interminável à única fundamental impossibilidade de "se" apreender), ela torna a si mesma fora e torna-se então abertura, e, em seguida, saída, excesso, generosidade ou heroísmo, mas, ainda mais longe, abandono, fuga, isto é, alienação, exclusão, exílio.

Mas, segundo uma persistência incessante, no seio desses valores demasiado e com frequência colocados de maneira unilateral, do absolutamente um e íntimo: esse absolutamente um e íntimo como aquilo que não cessa de se afirmar e de se intensificar nesse pôr fora, fora de si, fora de tudo.

E, para começar: a intimidade é sempre, de início e talvez sempre, absolutamente, intimidade com um outro, intimidade entre intimidades, e não intimidade de alguém só em relação a si mesmo. O íntimo, superlativo do "interior" (já citamos Agostinho dirigindo-se a Deus: "Interior intimo meo"), é um superlativo que, por si mesmo, refere-se sempre a um comparativo: porque estou no máximo da interioridade, o mais próximo de "mim mesmo", ou, ainda, o mais próximo e também no mais secreto, "desse mundo", "da terra", toco ainda mais: aquilo que, desde tal momento, toca-me a partir de um fora [ailleurs] que posso de modo indiferente considerar como "em" mim ou "fora" de mim, como neste mundo ou fora dele, uma vez que toco o limite. Ora, tocar o limite é também passá-lo, inevitavelmente. E só o passo tocando em um outro outra pessoa, outro ente, outro vivente, e mesmo a pedra dura, cuja resistência opaca leva-me para mais longe fora de mim.

Toda intimidade é "interior intimo meo". Sendo o mais profundo, ela é também aquilo que, por sua vez, é sem fundo. Em Agostinho e, a partir dele, para uma tradição muito longa, "Deus" terá sido o nome do sem-fundo. Tocar o sem fundo é tocar aquilo que não se deixa tocar senão fugindo para mais longe - numa hipérbole, em suma, da lei do tocar que quer que só toquemos através de uma abertura; caso contrário, penetramos, mas se penetramos, é por que há aí alguma substância: ora, aqui não há nada disso, há o incomensurável dessa fuga infinita do fundo no fora, o fora [ailleurs] absoluto.

É esse tocar que nomeamos "espiritual": o sopro que vem aflorar "o heterogêneo na origem[1]". O espírito vem tocar esse fora que é mais “fora” do que toda reunião acoplada de “dentro/fora”: ele está mesmo fora do fora. Ele é fora de tudo: nada, isto é, a realidade de toda coisa considerada em si, absolutamente, isto é, destacada de tudo. Mas a coisa considerada absolutamente – como o pode ser um acorde musical, uma nuance de cor, uma inflexão de voz, um rosto, um seixo, uma árvore – absorve nesse “nada” a totalidade da consideração, transporta o espírito em si, muda-o em som, em cor, em olhar ou em opacidade suave. Tal é a adoração: intimidade desse transporte.  




[1] J. Derrida, De l’esprit, Paris, Galilée, 1987, p. 176.

Jean-Luc Nancy. L'Adoration. (Déconstruction du christianisme, 2). Paris: Galilée, 2010. pp. 110-111. (Trad.: Vinícius N. Honesko)

Imagem: Francesco del Cairo. Maria Madalena em êxtase. 1650. 
 

Nenhum comentário: