domingo, 12 de abril de 2020

Para além dos atos e dos silêncios: gestos de resistência no olhar



Vinícius Nicastro Honesko



Em março 2000, após a leitura de um relatório que apontava para a série de fracassos das missões de paz da ONU – a UNPROFOR (UN Protection force), na ex-Iugoslávia em 1995, as UNOSOM (UN in Somalia) I e II, na Somália em 1992 e 1993 e, principalmente, a UNAMIR (UN Assistence Mission for Ruanda) em Ruanda em 1995 – o então secretário geral da ONU, Kofi Annan, solicita a realização de uma comissão, com a participação de especialistas em prevenção de conflitos, que deveria sugerir novos modos de atuação das forças de paz. Como resultado dessa comissão surge, em agosto de 2000, o relatório Brahimi (em referência ao então ministro das relações exteriores da Argélia, Lakhdar Brahimi, que esteve à frente dos trabalhos da comissão), que, apresentado em setembro de 2000 na Cúpula do Milênio, trouxe vinte recomendações para as missões de paz da ONU,[1] dentre elas a possibilidade de, diante de violências presenciadas contra civis, a necessidade de intervir. Essas recomendações foram aplicadas às missões de paz que, àquela época, já estavam em curso, dentre elas a UNTAET (UN Transitional Administration in East Timor; missão seguinte à a UNAMET (UN mission in East Timor)[2]), da qual o Brasil, que desde 1994 declarava suas intenções para uma cadeira efetiva no Conselho de Segurança da ONU, foi participante, com a notória participação, como observador do secretário geral da ONU, do diplomata Sérgio Vieira de Mello, além de diversos chefes militares, como o então general de brigada Walter Braga Netto.

As missões da ONU no Timor Leste tinham como fundamental componente a garantia das possibilidades da construção de um país com as pilastras fundamentadas em um Estado de Direito (isto é, a garantia de um processo de constituição legislativa – por meio de Assembleia constituinte –, de eleições livres de representantes etc.) e surgiram diante da necessidade de intervenção da ONU quando da intensificação da violência propiciada pela atuação do governo indonésio que, desde a revolução dos cravos em 1974 e o fim do domínio português, ocupava o território do Timor-Leste. Tal ocupação, grosso modo, acontece quando no Timor-Leste surge a FRETELIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente), capitaneada por José Ramos Horta (que ganharia, com o bispo Carlos Ximenes Belo, o Nobel da Paz em 1996) e com claros ideais socialistas. Suharto, o presidente da Indonésia entre 1968 e 1998, vê na ascensão do FRETELIN o perigo comunista – que anos antes ele próprio se encarregara de eliminar na Indonésia – e, por meio de forças especiais do exército[3], ocupa o Timor-Leste. Dentre as táticas de ocupação – considerada um genocídio[4] –, estava o uso ostensivo de napalm, massacres que não discriminavam mulheres, crianças idosos etc. e, por fim, já nos anos 90, mesmo com uma suposta política de controle dos atos do exército, o uso da tortura e a prisão arbitrária de independentistas (denunciados com ênfase pela Anistia Internacional). O fim da ocupação Indonésia no Timor foi propiciado em certa medida pela intervenção da ONU (UNAMET) e, sobretudo, a partir da renúncia de Suharto após a grave crise financeira que abalou o país (a crise dos Tigres Asiáticos) e as revoltas estudantis de maio de 1996, ocorridas após o assassinato de quatro estudantes (o comandante das ações contra os estudantes foi, justamente, Probowo Subianto).

O sofrimento e a violência, a destruição e a subjugação, de fato, foram frequentes nas ações do governo de Suharto no Timor Leste. Todavia, como é uma constante no século XX, essa história não teria sido possível sem que, no contexto geopolítico global, ao menos em alguma medida e por um período Suharto tenha tido, senão apoio direto, ao menos suporte internacional para o cumprimento de seu papel nos jogos de poder globais (ainda que este tenha sido um papel minoritário e setorizado). Ou seja, o mesmo sujeito que subjuga e destrói pode ser, a depender de quem subjuga e destrói, aliado ou inimigo, pode estar à mesa de discussões de estratégias na política econômica ou pode estar no famoso banco dos réus da história.

Se a intervenção e ocupação do Timor Leste pelo governo indonésio – sob a justificação do perigo comunista – foi caracterizada como genocida por boa parte da comunidade política internacional, o mesmo não se pode dizer da eliminação do partido comunista indonésio (PKI) por meio da dizimação de seus membros e supostos simpatizantes, entre 1965 e 1966, sob o comando do então general Suharto. Nesses anos, a Indonésia, que se tornara independente da Holanda entre os anos de 1945 e 1949, ainda passava por um processo de estabilização política. O presidente, Sukarno, líder na revolução de independência e desde então na chefia do governo, equilibrava-se com o que denominava de Democracia Guiada, um modo de gerir as tensões entre os três pilares da jovem república indonésia, o Nas-A-Kom (nacionalismo, agama – religião – e comunismo), representados pelo exército, o islã e os comunistas (a Indonésia tinha então o terceiro maior partido comunista do mundo). Com o acirramento da Guerra Fria, os Estados Unidos passam a dar suporte para setores à direita do exército indonésio, que, por outro lado, contava também com um crescimento de membros ligados ao comunismo. Além disso, com sua aproximação dos soviéticos e sua política externa intervencionista na região (p.ex.: em Brunei), Sukarno passa a ser visto com certa cautela pelos governos ocidentais.

Nesse contexto de fragilidades, em primeiro de outubro de 1965, um grupo de oficiais de patente mediana sequestra e mata seis generais do exército numa espécie de tentativa de golpe de estado. Ainda no mesmo dia, as tropas do exército, comandadas pelo general Suharto, sufocam a tentativa de golpe com certa facilidade, haja vista que, como se revelou adiante, os supostos golpistas tinham uma articulação bastante frágil. Até hoje as explicações sobre os motivos e as origens desse golpe são nebulosas, mas que, naquele momento, ele foi imediatamente ligado ao Partido Comunista Indonésio[5]. Logo após o incidente, inicia-se na Indonésia uma perseguição aos comunistas, estendida a supostos simpatizantes, que, além da extinção do PKI, causaria a morte de aproximadamente um milhão de pessoas sem que até hoje por estas ninguém tenha sido responsabilizado. Além disso, é nesse contexto que Suharto dará início a seu programa de governo denominado New Order, a nova ordem para o povo indonésio: tratava-se de um governo baseado no Pancasila (os cinco princípios que deveriam reger a nação: 1- Um Deus; 2- Uma humanidade justa e civilizada; 3- A Indonésia unificada; 4- Democracia guiada pelos sábios representantes do povo e 5- Justiça social) e na inclusão da Indonésia no contexto global do capitalismo (lembro que, desde 1962, a Indonésia fazia parte da OPEP; entre 1968 e 1981, sua economia teve uma média de crescimento de 7%, sobretudo por conta do petróleo e da abertura, com incentivos fiscais, às empresas transnacionais – aliás, a partir dessas circunstâncias, a Indonésia passa a ser enquadrada no rol dos novos tigres asiáticos).

Em 2012, o diretor de cinema Joshua Oppenheimer produz aquele que seria um aclamado documentário de denúncia do genocídio indonésio de 65-66 contra os comunistas: The Act of Killing. A ideia do filme surge, conforme relata o próprio diretor, durante a produção, feita por ele e por Christine Cynn, de The Globalization tapes, documentário de 2003 dirigido em colaboração entre vários diretores indonésios (todos trabalhadores ligados aos movimentos de trabalhadores rurais) que retrata os impactos da globalização no contexto dos países pobres bem como o modo como as instituições financeiras detêm um importante papel na forja do atual contexto global. Durante a produção, Oppenheimer acaba se inteirando da história dos massacres de 1965-1966, sobretudo por parte dos trabalhadores rurais que a ele relatavam que, para além da versão oficial do governo (que diz que os assassinatos dos comunistas e supostos comunistas foram obra do povo, que de modo espontâneo reagiu à ameaça comunista), os assassinatos foram, sim, arquitetados pelos militares como modo de destruir as organizações anticoloniais de trabalhadores existentes até 1965. Muitos desses trabalhadores rurais, participantes da produção de The Globalization tapes, eram eles mesmos sobreviventes e, além disso, sabiam apontar quem eram os perpetradores que ainda moravam nos vilarejos de suas regiões.

Foi seguindo essa pista que Oppenheimer passou à produção de The Act of Killing. O diretor, ao entrevistar os sobreviventes em 2004, na região de Medan, acabou sendo levado aos perpetradores, dentre eles Amir Hasan, o líder do esquadrão da morte atuante na região das plantações onde foram feitas as filmagens de Globalization tapes. Hasan, por sua vez, apresenta outros líderes da região com os quais Oppenheimer também passa a se encontrar para entrevistas e, assim, entendendo melhor a maneira como os esquadrões eram organizados, o diretor passa, paralelamente, a contatar e a entrevistar outros líderes dos assassinatos de 1965 e 1966. Oppenheimer relata que durante as gravações dessas entrevistas passou a se sentir incomodado com uma alegria que transparecia no relato dos perpetradores. Assim, ele acabou se colocando a pergunta que daria origem ao projeto de The Act of Killing (e, como desdobramento deste, ao projeto de The look of silence, filme de 2014 que, por sua vez, expõe não apenas as entrevistas com os carrascos, mas também exibe como os sobreviventes – em específico, um irmão de uma vítima – se sentem em relação ao massacre): "como essa sociedade se desenvolveu até o ponto em que seus líderes poderiam – e desejariam – falar de seus próprios crimes contra a humanidade com um gesto vitorioso que ao mesmo tempo era celebrativo e também expunha-se como uma ameaça?"[6]

A partir dessa pergunta, o diretor modela sua filmagem: traz para o centro do filme alguns perpetradores, dentre eles Anwar Congo, um dos principais líderes do esquadrão de extermínio Pelotão do sapo, atuante no norte de Sumatra. O filme mostra como esses sujeitos, que se auto-intitulavam gangsters, em referência aos filmes norte-americanos (filmes estes que eram rejeitados pelos comunistas; aliás, no filme, os próprios gangsters afirmam que já odiavam os comunistas por isso), e que foram recrutados pelo exército para matar os “esquerdistas", atuavam. Oppenheimer filma de modo a fazer com que o espectador se defronte com a maneira como o perpetrador gostaria de ser visto. Aos perpetradores, ele propõe que encenem e, enquanto são filmados, expliquem como praticavam os assassinatos. Após essas encenações, o diretor mostrava aos atores-assassinos as filmagens, e assim o fazia numa tentativa de despertar algum tipo de reflexão moral. Entretanto, Oppenheimer se surpreende com resultado (surpresa esta que é também a de quem assiste ao filme). Diz ele:

Para entender como eles se sentiram sobre os assassinatos e sua maneira impenitente de representá-los no filme, eu lhes exibia as imagens não editadas dessas primeiras reconstituições e filmava suas respostas. Em primeiro lugar, pensei que eles se sentiriam mal quando vissem as encenações dos assassinatos, e que talvez pudessem chegar a um lugar moral e emocionalmente mais complexo.
Fiquei assustado com o que realmente aconteceu. Ao menos de modo superficial, Anwar estava sobretudo ansioso para parecer jovem e elegante. Em vez de qualquer reflexão moral explícita, a exibição levou tanto ele quanto Herman [outro perpetrador] espontaneamente a sugerir uma dramatização melhor e mais elaborada.[7]



A partir de então, o diretor passa a explorar essa imaginação cinematográfica dos perpetradores, dando a eles uma liberdade para reencenar os assassinatos e também alguns de seus sonhos, que, por vezes, revelavam certa fixação traumática nos perpetradores (lembro das diversas vezes em que, em The look of silence, um dos perpetradores relata como era apavorado pelos mortos em seus sonhos; ou mesmo Anwar falando sobre seus diversos pesadelos; é importante ressaltar que um dos sonhos filmados por Oppenheimer e que faz parte de The Act of killing, mostra Anwar se reconciliando com os mortos debaixo de uma cachoeira e com uma tentativa de encontro com certa paz de espírito). A liberdade para encenação que o diretor propunha de modo inteligente, incluía um set de filmagens no qual os perpetradores poderiam utilizar-se de recursos de maquiagem, som, efeitos e, até mesmo, poderiam dirigir a cena questionando um ao outro se aquilo efetivamente conseguiria representar o que viveram. Nesse processo, Oppenheimer se dá conta de que, para além de uma tentativa de encenação cinematográfica para o filme que estava sendo feito (e do qual tinham ciência os perpetradores), o que o gesto dos gangsters expunha é que já à época dos assassinatos os filmes sobre gangster eram a inspiração para como eles iriam matar os “comunistas”. Então, nessas encenações dos assassinatos outrora praticados por eles mesmos, mais do que encenar suas lembranças, agora, diante das câmeras de um diretor de cinema (isto é, sabendo que iriam ingressar na tela, a mesma que em 1965-66 era a inspiração para como matar), os perpetradores estavam elaborando imageticamente suas memórias para exibi-las de modo que pudessem se tornar, no filme, uma espécie de exposição de si tal como gostariam de ser lembrados (uma esperança de lembrança futura que, portanto, seria construída a partir do filme do qual, agora, eles eram os atores e personagens principais).

Oppenheimer relata que já durante a produção de The Globalization tapes tinha a impressão de que os modos como os perpetradores falavam sobre as mortes trazia em si algo de performático. Assim, quando da realização de The Act of killing, a opção por dar aos gangsters a liberdade imaginativa e a sensação de que controlavam o material que estavam produzindo era uma tentativa do diretor de captar essa dimensão performática. Oppenheimer diz ainda que percebia esses gestos carregavam a ideia de certa garantia impunidade, e, com isso, os gangsters almejavam dar a suas imagens uma força ameaçadora que expõe o fortalecimento e continuidade do regime político que tem início com esses massacres e perdura em certa medida até hoje.[8]

Nesse sentido, as performances livres que os gangsters passaram a realizar começaram a produzir efeitos rememorativos: eles agora atuavam da mesma forma quando estavam atuando, inspirados nos filmes que viam, durante os assassinatos. Ainda que a falta de uma reflexão moral seja sentida de imediato, é preciso anotar que há também aí certa ambiguidade; isto é, a potência dessa revitalização das próprias imagens acabou, como vemos no filme, trazendo para o protagonista Anwar um mal-estar incomensurável, sobretudo quando ele encena uma vítima e não o carrasco que ele fora. Nesse momento, ele pergunta: “será que as vítimas sentiam-se tão mal, assim como eu, Joshua?” E, em uma de suas poucas intromissões, o diretor diz: “eles se sentiam muito pior, Anwar. Eles estavam efetivamente sendo mortos." E em outra cena, a do massacre de Kampung Kolam (quando todos os moradores de uma vila foram mortos e, na sequência, a vila foi queimada), o mal-estar dos diversos participantes (filhos, companheiras e membros da juventude Pancasila, um grupo paramilitar ainda hoje ativo na Indonésia) após as filmagens revela, segundo o diretor, "a terrificante história sobre a qual todos na Indonésia estão de algum modo conscientes e sobre a qual os perpetradores construíram suas rarefeitas bolhas de shoppings com ar condicionado, condomínios fechados e ‘muito, muito exclusivos’ objetos de cristal”.[9]

Essa história que aparentemente permanece numa espécie de penumbra da consciência, e que a esta retorna nas imagens capturadas dessas performances (imagens essas que passam a fazer parte de um importante arquivo – Genocide and Genre –, o qual serviu de base a uma pesquisa de quatro anos do United Kingdom Arts and Humanities Research Council), são, como poderíamos lembrar com Georges Didi-Huberman, as lacunas dos eventos.[10] Ou seja, elas não são um arquivo, que por mais proliferante que possa ser nos dá apenas os vestígios dos fatos – e, nesse caso, os vestígios são insistentemente apagados pela narrativa oficial e tampouco conformam apenas uma representação dos massacres –, isto é, as imagens dos perpetradores repetindo mimeticamente como farsa seus atos de outrora. Em outras palavras, as imagens não se confundem com os assassinatos, mas, nessa performance dos perpetradores vivos, elas surgem como uma forma de vestígio dos atos que pretendiam não deixar vestígios. Ou seja, as imagens de Oppenheimer forjam, portanto, os vestígios: os perpetradores, na ânsia por firmar suas posições de dominadores e vencedores na história, entregam para os vencidos as memórias que eles não poderiam ter, a visão da morte desde o ponto de vista daqueles que causaram a morte. Assim, The Act of killing produz, na figura dos perpetradores, uma espécie de testemunhas invertidas.

Trazendo os termos de Furio Jesi – quando da análise das relações entre classe explorada e classe exploradora – para a leitura de The Act of killing, é possível dizer que o filme carrega uma eventual cognoscibilidade da história que se arma a partir não de uma desmitificação, mas de desmitologização[11] das narrativas que compõem a história oficial da Indonésia, lembrando que essas narrativas são as garantidoras da estrutura política que, celebrando a derrota e o massacre dos comunistas, continua a repetir-se ainda no presente nas estruturas de dominação. De fato, o filme não é uma tentativa, que seria vã, de suprimir o mito dos perpetradores, qual seja: a história oficial dos vencedores, ainda no poder, na Indonésia, segundo a qual os massacres foram espontaneamente concebidos pelo povo. Pelo contrário, com suas imagens críticas, o filme exibe o uso político do mito da espontaneidade do massacre pelo povo e, nessa exibição, produz a possibilidade de interrupção da repetição dessa história – desse mito tecnicizado ou desses materiais mitológicos, para usar os termos de Jesi – de subjugação, violência e destruição. Ainda nos termos do teórico italiano, podemos dizer que The Act of killing (e também The look of silence), funciona como um modo de exposição da máquina mitológica que produz a mitologia da espontaneidade do massacre: as narrativas oficiais são desditas – ou mostradas em sua falsidade – por meio da performance dos perpetradores, esta que pretende dar a imagem verdadeira dos verdadeiros agentes históricos. Com isso, o filme faz com que as imagens dos perpetradores, tal como eles próprios queriam que elas fossem produzidas, funcionem como um modo denunciar a falsidade da história oficial da Indonésia, isto é, seu caráter meramente narrativo, mitológico, no sentido de Jesi, operado como instrumento de legitimação política. Assim, podemos dizer que The Act of killing carrega a potência de uma dupla negação: nega de plano, com a própria imagem dos perpetradores, a história oficial das narrativas do governo e, ao mesmo tempo, ao dar aos atores-assassinos a liberdade imaginativa por meio da qual eles pretendiam exibir-se como heróis, nega aos perpetradores o direito, que na prática política daquele país ainda lhes é consentido (inclusive pelas mais altas instâncias políticas do país: vemos, no filme, o vice-presidente da Indonésia falando sobre a função necessária dos gangsters na política do país), de se colocarem nessa condição de heróis. O filme funciona, portanto, como um mecanismo que pode emperrar a máquina mitológica do governo indonésio.

Em The look of silence, por sua vez, podemos dizer que Oppenheimer arma um diagrama de sinal trocado. O filme é montado a partir da exibição das imagens dos perpetradores feitas pelo diretor entre 2004 e 2005 a Adi, irmão de uma das vítimas de 1965-66, que trabalha como uma espécie de oculista em um vilarejo de Sumatra. As imagens dos carrascos relatando como dilaceravam os corpos dos “comunistas”, como os faziam sofrer e, por fim, como os matavam, são exibidas a Adi que sempre se mostra reflexivo diante dessas imagens da barbárie. Além disso, o filme também traz os encontros de Adi com os perpetradores durante seu trabalho de oculista e, em tais encontros, por vezes o irmão da vítima questiona, dentre outras coisas, sobre o porquê de tais mortes, sobre como o exército estava por trás do recrutamento dos perpetradores. Nos embates, há sempre uma tensão entre carrasco e vítima que é exposta em termos de um eventual conflito ainda possível, pois os carrascos, considerando-se como vencedores e garantidores da possibilidade de algo como a Indonésia (lembro que sempre os ideais do Pancasila se fazem presentes), ainda se arrogam o direito da ameaça. Em uma das conversas, Adi pergunta: "Se eu tivesse vindo falar com você durante a ditadura militar, o que você teria feito?" Ao que o carrasco responde: "Não dá para imaginar o que teria acontecido. Sob a ditadura? Quanto tudo estava tenso? Não dá para imaginar o que teria acontecido.” Os filmes de Oppenheimer, no entanto, mostram que essa impossibilidade de imaginação faz parte do mecanismo da máquina mitológica oficial indonésia, que opera sublimando, por meio das narrativas, o massacre como uma espécie de única possibilidade de fundação de uma nova ordem (justamente o termo com o qual Suharto designa seu governo) para a Indonésia. Ou seja, os filmes exibem a impossibilidade narrada de imaginação com a própria imaginação dos perpetradores (seja na performaticidade de The act of killing seja na minúcia de detalhes – e há também o esboço do performatismo já nessas cenas – nas explicações sobre a morte do irmão de Adi em The Look of silence), em outras palavras, mais uma vez, os filmes, ao mostrar a máquina mitológica em funcionamento, apontam para as condições de possibilidade de desativação dessa máquina.

Um dos resultados dessa desativação é a demanda por justiça que desde as primeiras exibições dos filmes aparece com mais força no contexto internacional (tal como as petições junto à Anistia Internacional que estão disponíveis nos sites, mantidos por Oppenheimer, de divulgação dos filmes). Além disso, dessa necessária implicação jurídica dos responsáveis por massacres de seres humanos (digamos, uma implicação dentro do âmbito da petição por direitos na esfera das relações geopolíticas internacionais), os filmes nos possibilitam perceber, de modo paradoxal à demanda por justiça (posto que como crítica radical), que a violência perpassa, como um rizoma, esse inconsciente da história contemporânea. Isto é, em certa medida, os filmes nos dão condições de perceber como a lógica do estado é produtora de morte. Mas, em que sentido eles nos possibilitam isso?

Retomando a pequena digressão sobre a história indonésia, podemos perceber que diante da ameaça comunista de 1965-66, levantada e agitada como pandemônio ao ser conectada ao fracassado golpe de estado de primeiro de outubro de 1966, as Nações Unidas, naquele contexto, pouco se moveram, assim como pouco se moveram quando da ocupação, em 1975, e pelo mesmo governo Indonésio, do Timor Leste. Nesses contextos, a salvaguarda da paz estava no apoio daqueles que, então, tomavam o partido da nova ordem que pelo planeta se espalhava: a democracia nos moldes do capitalismo de mercado (ou, para dizer com Guy Debord, a sociedade espetacularizada). Naquelas ocasiões, a Indonésia de Suharto – a Indonésia que exibia filmes de gangsters – estava do lado da defesa das condições necessárias à implementação da almejada liberdade e, talvez por isso, a máquina mitológica indonésia tenha sido aceita no plano internacional com certa facilidade (e é preciso lembrar que esse valor, liberdade – free world – é aquele que ainda é apregoado como única possibilidade para um mundo melhor; e, em The act of killing, os perpetradores diziam, numa etimologia delirante, que gangster quer dizer justamente free man).

Quando da crise dos Tigres Asiáticos, em 1997-98, quando os mercados estavam em franco processo de desregulamentação, quando Suharto não é mais visto como um parceiro capaz de implementar as mudanças necessárias para que os valores da democracia – que, como lembra Jean-Luc Nancy, é uma palavra vazia que, em grande medida, se confunde com capitalismo – sejam implementados, a máquina mitológica do governo indonésio torna-se vulnerável (talvez pelos próprios interesses que são produzidos no âmbito da grande máquina mitológica da Democracia, do Capital, global). Nesse sentido, as intervenções no Timor Leste do final do século XX, ainda que importantes para o fim da violência do governo indonésio naquele país, também carregam, de modo ambivalente, elementos dessa mesma rizomática da violência. Melhor dizendo, nessa constituição da autodeterminação dos povos (um direito humano por excelência), ainda vislumbramos uma violência que sempre está do lado dos dominadores, ao lado da soberania (uma violência que põe o direito, para dizer com Walter Benjamin).

Na missão da ONU no Timor Leste, como disse, o Brasil esteve presente na pessoa de Sergio Vieira de Mello (como observador do Secretário Geral Kofi Annan) e do general de brigada Walter Braga Netto. Este último, cujo nome poderia soar como sendo o de um completo desconhecido até pouco tempo, aparece nos últimos três anos e sobremaneira nos mais recentes noticiários brasileiros: trata-se do general responsável pelas operações de segurança durante os jogos olímpicos do Rio de Janeiro e, em 2018, designado por Michel Temer para chefiar a intervenção federal no mesmo estado. Além disso, Braga Netto acaba de ser nomeado Ministro Chefe da Casa Civil do governo de Jair Bolsonaro.

Creio que não seja preciso me alongar nos detalhes das operações para a realização dos jogos olímpicos ou sobre o que aconteceu no Rio de Janeiro durante a intervenção militar do governo Temer (neste caso, porém, é preciso ressaltar que a letalidade policial atingiu o maior nível na história do RJ). Além disso, também não pretendo examinar o contexto da exoneração do agora ex-ministro da Casa Civil, Onix Lorenzoni, e os prognósticos de como será a atuação de Braga Netto. Lembro apenas que a máquina mitológica da política ocidental sempre se forjou (e isso já desde Hobbes) com base numa necessária salvaguarda da segurança dos cidadãos –a tão sonhada paz concordada no interior e entre os estados. Que esse modelo esteja se mostrando o que ele verdadeiramente é, um capitalismo de crise, uma stasis, uma guerra civil que se espraia pelo mundo, também parece ser evidente. O que gostaria de frisar é que essa máquina lubrifica suas engrenagens com sangue, que cada vez mais é demandado em volumes cada vez maiores (e é preciso salientar que, durante a intervenção militar no RJ, em 12/03/18, Braga Netto afirmou que a operação na Vila Kennedy[12], onde os moradores – obviamente todos pobres – passaram a ser fichados para chegarem a suas casas, funcionou como uma espécie de laboratório para a intervenção; ademais, durante a pandemia de Covid-19, Braga Netto tem sido chamado – sobretudo no noticiário econômico[13] – de bombeiro e gestor, alguém para diminuir o alarde, em meio às apostas de denegação do potencial mortífero da doença, obviamente, a alta aposta do atual governo na já secular dinâmica de violência da sociedade em que quem morre, sobretudo, são os que sempre vêm morrendo e cujas mortes já estão há muito naturalizadas – aos que engrossarão as estatísticas desses que sempre morrem, a máquina mitológica sacrificial se encarregará de legitimar). Em outras palavras, a deglutição de uma máquina por outra parece dar a tônica da constituição de nossas mitologias políticas – e talvez hoje estamos assistindo à mais devastadora das máquinas mitológicas em funcionamento: o neoliberalismo da era do capitalismo informacional, o qual nos convence, com suas sedutoras narrativas de segurança, empreendedorismo e liberdade, de que nada pode fazer sentido fora dele. Nesse sentido, e pode parecer até mesmo sórdido o que digo, uma vez que a máquina mitológica da narrativa histórica oficial da Indonésia já pode ser absorvida pela máquina mitológica do capitalismo global em sua inteireza, torna-se possível revolvê-la sem maiores danos à legitimação da nova ordem que hoje, mais do que nunca, se faz global (e, no caso brasileiro, nosso novo normal está na cotidiana quantidade de absurdos bradados pelos governantes e replicados, em rede, por sujeitos que, como baratas adoradoras de inseticida, são eles mesmos as vítimas daqueles absurdos).

Diante desse cenário em que parece não haver – e não há – nenhuma saída, nenhum fora possível, os filmes de Oppenheimer nos colocam a pergunta: como ainda resistir? No caso do diretor, diante da brutalidade do apagamento de vidas e de suas memórias chancelado por uma narrativa oficial, a exposição brutal do mecanismo da maneira como esse apagamento e chancela funcionaram e funcionam. O gesto é apelativo, mas ainda assim é um modo, ainda que pequeno, não de tentar uma melhora do mundo, mas, como diria Pasolini, de tentar, com todas as forças, impedir que ele piore.


[1] Sobre o relatório Brahimi cf. http://www.un.org/en/events/pastevents/brahimi_report.shtml

[2] Cf.: BRACEY, Djuan. O Brasil e as Operações de Manutenção da Paz da ONU: os casos do Timor Leste e do Haiti. In.: Contexto Internacional. v. 33, n. 2. Julho/dezembro de 2011. Rio de Janeiro: Puc-Rio. pp.: 316-331.

[3] Um dos comandos das Forças Especiais era chefiado por Probowo Subianto, filho do ex-ministro da economia de Suharto (Sumitro Djojohadikusumo: responsável pela formação da "Berkeley mafia", a formação de economistas nos EUA, estes que, durante os anos do New Order, seriam os responsáveis pela implementação de uma política econômica de abertura aos mercados internacionais), que, em 1985, fora treinado pelo Exército Norte-Americano em Fort Benning. Cf.: https://www.washingtonpost.com/wp-srv/inatl/longterm/indonesia/stories/rights052398.htm Em 2014, Probowo se candidata a presidente da Indonésia, tendo perdido a eleição para o atual presidente Joko Widodo; ele também foi responsável pela operação do exército que causou a morte de 4 estudantes universitários em 1996, fato que levou à queda de Suharto.

[4] Tanto que em Oxford encontra-se arrolado no plano de estudos de "Genocídios no século XX” – http://www.oxfordbibliographies.com/view/document/obo-9780199743292/obo-9780199743292-0105.xml –, assim como na Yale University: https://www.washingtonpost.com/wp-srv/inatl/longterm/indonesia/stories/rights052398.htm

[5] Benedict Anderson e Ruth T. McVey escrevem o que ficaria conhecido como Cornell Paper, no qual questionam as explicações para o golpe dadas pelas autoridades oficiais bem como pela CIA. Cf.: ANDERSON, Benedict; MCVEY, Ruth T. (with the assistence of Frederick T. Bunnell) A preliminary analysis of the October, 1, 1965, Coup In Indonesia. Ithaca, New York: Cornell University, 1971.

[6] OPPENHEIMER, Joshua. Backgroud of "The act of killing”, disponível em: http://theactofkilling.com/background/ (acesso: 10/03/2018)

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem queima. Curitiba: Medusa, 2018. Trad.: Helano Ribeiro. p. 28.

[11] JESI, Furio. Spartakus. Simbologia da revolta. São Paulo: N-1. 2018. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko

[12] Cf.: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/03/so-acao-da-policia-nao-basta-contra-violencia-afirma-interventor-no-rj.shtml e https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/02/moradores-deixam-comunidades-apos-serem-fotografados-em-acao-do-exercito.shtml

[13] Cf.: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/04/06/discreto-braga-netto-atua-como-bombeiro-e-gestor.ghtml
 
*** Este texto é uma versão modificada do texto que foi apresentado no 1º Colóquio Imagens de traumas, em 2018 (fruto do projeto de mesmo nome entre a UFPR e a Universidade de Valência). A primeira versão, de 2018, deverá compor o livro "Artes & Violências" [org.] Rosane Kaminski, Vinícius Honesko e Luiz Carlos Sereza (São Paulo: Intermeios, 2020 - prelo). 
 
Imagem: Cena de The Act of Killing. 

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Sobre a liberdade de ser escravo: algumas notas sobre o neoliberalismo e o bolsonarismo




Vinícius Nicastro Honesko


Para analisar e pensar a respeito do que parece ser um movimento que poderíamos denominar como niilismo de Estado – aflorado já quase sem pudores cínicos em terras brasileiras –, é preciso o resgate das denúncias que, no século XX, foram cruciais para a formatação do mundo político posterior à, como diria Guy Debord, integração da Sociedade do Espetáculo: o diagnóstico de esgotamento do projeto iluminista. Cabe ressaltar, no entanto, que este não fora apenas algo sinalizado por Adorno e Horkheimer, mas também por um dos pensadores cruciais da chamada nova liberdade que deveria sobrevir às "sevícias" e "tiranias" do poder organizador do Estado: Friedrich Hayek, autor cujas análises do esgotamento do projeto de um estado de direito liberal – sobretudo na sua vertente de então: o estado de bem-estar social – começam nos mesmos anos da "Dialética do Esclarecimento".

Enquanto a partir dos frankfurtianos surgem vertentes do pensamento crítico às democracias liberais e diversas apostas na dimensão do comum (toda a discussão sobre a comunidade: Maurice Blanchot, Jean-Luc Nancy, Giorgio Agamben e mesmo Georges Bataille – já que estamos, por ora, em solo Europeu), em Hayek e em seus leitores a aposta se dá numa radicalização da dimensão concorrencial do capitalismo. Em outros termos, uma libertação do capital das amarras do modelo organizacional keynesiano do Estado de Bem-Estar para que a liberdade, a verdadeira liberdade (que surge apenas à medida em que não se submeta a nenhum tipo de coação por parte de quem quer que seja, sobretudo dos governos), pudesse irromper tal como é, isto é, de forma imprevisível, posto que, se a liberdade fosse da ordem do previsível sequer poderia dizer-se liberdade. Nesse sentido, Hayek – apoiando-se em certa leitura que faz da escola histórica alemã – teoriza que as instituições se formam e evoluem sempre de modo competitivo entre si e a despeito do voluntarismo das ações humanas. Em linhas gerais, à medida em que não haja construtivismo social (intervenção, coação) e o campo da competição esteja dado à espontaneidade, apenas as instituições que efetivamente estimulam a liberdade acabariam por se sobrepor às demais na história da organização social. Ao final desse processo, uma ordem espontânea, absolutamente livre e equilibrada fulguraria, de modo que, contra os planejamentos compactuados na ordem estatal – cerceadores da liberdade e que põem os povos no “caminho da servidão" –, o modelo concorrencial das instituições seria o ponto de irrupção da verdadeira liberdade.

Da proposta hayekiana para compreender a nova liberdade, obviamente ecoam os temas-chaves do chamado liberalismo clássico. Dentre estes, e talvez o mais pujante em Hayek, podemos ressaltar a repulsa a qualquer tipo de ingerência de um poder governamental capaz de conduzir e cercear os poderes decisórios dos governados. No entanto, há uma diferença crucial no como refrear essa ingerência: para o neo-liberal o freio não passaria mais por um pacto, um contrato, fundacional (para Hayek, esse modelo, de inspiração em certa racionalidade emancipadora e construtivista, acabara de mostrar sua falência com a barbárie das grandes guerras), mas pelo respeito à concorrência, que seria o fundo naturalmente constitutivo do mundo e a porta de acesso à verdadeira liberdade. Mas talvez o rastro mais importante do liberalismo clássico a permanecer no neoliberalismo seja a reserva de discricionariedade ao indivíduo, a condição sine qua non para que todo indivíduo possa agir em concorrência com os demais e, nesse sentido, aprimorar – mesmo que de forma inconsciente – a evolução das instituições e o caminho para a liberdade.

Domenico Losurdo chama a atenção para o fato de que esse poder discricionário, cujo ápice de funcionamento está exemplificado no modo como se exerce sobre a propriedade privada, foi a bandeira levantada, por exemplo, pelos federalistas estadunidenses contra as tiranias do governo metropolitano inglês. Foi essa forma de proteção da discricionariedade absoluta sobre a propriedade que também engendrou o paradoxo seminal dos princípios do liberalismo clássico: a convivência entre escravidão mercantil-negreira e a emancipação do jugo das tiranias. Enquanto rechaçavam e lutavam contra as ingerências do poder do soberano inglês – as quais seriam a expressão máxima do cerceamento de liberdade –, os revolucionários estadunidenses podiam, ao mesmo tempo, manter um regime de escravidão que reduzia o ser humano negro e indígena à condição de coisa, de mercadoria. Losurdo mostra como essa consciência do paradoxo já se encontra em diversos protagonistas da revolução estadunidense, como, p.ex., em James Madison, que, não obstante a condição de revolucionário e contrário aos atos anti-liberdade da tirania, era um proprietário de escravos; e mesmo John Locke, o "campeão na luta contra o absolutismo monárquico", era acionista da Royal African Company, que em 1675 – justamente após o período em que Locke havia sido secretário do Conselho de Comércio e Plantations, entre 1673-1674 – havia desbancado o domínio holandês no comércio transatlântico de escravos. (Sobre essa coisificação do negro e do indígena remeto aos trabalhos de Susan Buck-Morss – que em Hegel e o Haiti mostra como mesmo ciente do Code Noir francês em vigor nos anos em que escreve, Rousseau, no discurso sobre o contrato, em momento algum faz referência ao código e nem mesmo à mercantilização da vida – e a Achille Mbembe, que em diversos textos, sobretudo Crítica da Razão Negra, escreve sobre as formas de consolidação da escravidão mercantil negreira. E é preciso salientar que toda a aposta no mito dos valores da civilização ocidental – presente como pano de fundo em vários discursos contemporâneos que têm fundamentado os novos nacionalismos e protecionismos mercantis – tem como lubrificante de suas engrenagens históricas o sangue de escravos).

Em Hayek e no neoliberalismo que a ele se segue, esse paradoxo dos liberais é recoberto com um mito: o da concorrência como pano de fundo universal, o qual, escamoteando a dimensão colonial escravocrata, elide o pacto social e naturaliza, torna espontânea, uma ordem que adviria da concorrência (a título de exemplo, lembro que em O caminho da servidão, no momento em que pretende demonstrar que a concorrência não necessariamente leva aos monopólios, Hayek analisa a dinâmica concorrencial interna à Inglaterra no final do século XIX e início do século XX: não há sequer uma menção à estrutura imperial-colonial inglesa). Nesse modelo, há a previsão de desigualdades iniciais, já que os indivíduos não estariam em condições de igualdade no início da concorrência: há, naturalmente, os mais livres e os menos livres; todavia, à medida que os mais livres fossem ampliando o campo da liberdade, essa ampliação não seria apenas uma conquista individual, mas para todos, inclusive para os menos livres, posto que estaria espontaneamente ordenando a vida dos indivíduos entre si e garantindo também para os menos livres mais condições de alcance da verdadeira liberdade ("não há algo como a sociedade, apenas indivíduos", dizia Margareth Thatcher; isto é, a melhor ordem é sempre aquela que se dá entre indivíduos em livre concorrência).

Ao desconsiderar o paradoxo (evidente no século XVIII, mas não menos sensível ao longo da história recente do capitalismo) entre libertação do jugo tirânico absolutista e a legalização da escravização mercantil sob o argumento da total discricionariedade do direito à propriedade, o modelo de liberdade de Hayek acaba por potencializar regimes de servidão travestidos de livre-concorrência: no funcionamento do capitalismo contemporâneo, p.ex., a economia de plataformas (na qual nenhuma garantia é dada aos trabalhadores diante de seus empregadores) seria o modo de implementação de novos regimes escravocratas sob o mote da liberdade absoluta de empreendimento (tanto os donos das plataformas quanto os empregados estariam, à medida de suas desigualdades – lembremos, previstas –, implementando a ordenação espontânea; assim como no liberalismo clássico a escravidão mercantil negreira foi o mecanismo fundamental para a emancipação dos jugos absolutistas, os novos registros de funcionamento nas relações laborais – flexibilização, barateamento de mão-de-obra etc. – são a evolução de instituições que ampliariam ainda mais a liberdade dos mais livres e garantiriam aos menos livres a chance de aumentarem sua liberdade à medida de seu esforço empreendedor).

As leituras já consolidadas do modo de funcionamento do neoliberalismo nos países onde o bem-estar social teve certa força precisariam, em um país com dinâmica colonial como o Brasil, de certos ajustes. Isto é, é preciso uma leitura que dê conta das nuanças que o neoliberalismo adquire uma vez em funcionamento no registro colonial. As análises de Michel Foucault e as recentes e pertinentes leituras de Wendy Brown, e também de Dardot e Laval, são muito interessantes no que diz respeito às formas do neoliberalismo em países onde a consolidação de certo estado de bem-estar se deu, mas talvez em regiões como a América Latina e a África, onde qualquer afirmação de um estado de bem-estar é no mínimo falaciosa, é preciso refinar o instrumento, sob pena de incorrermos em generalizações que por vezes podem nos induzir ao equívoco.

Pensemos, então, o caso brasileiro contemporâneo. A figura do bolsonarismo – algo que vai para além da persona Bolsonaro – pode ser lida como uma radicalização do modelo do neoliberalismo. As denúncias que o bolsonarismo faz do pacto social como o “conluio de um modelo de organização da velha política” funcionam como tônica de um discurso libertador: é preciso eliminar os tiranos que, contra a população brasileira, monopolizaram as riquezas e instrumentalizaram o poder em proveito próprio, usando para isso toda e qualquer forma de direito e de poder que estavam em suas mãos. Mecanismo facilitador para essa tirania teria sido, justamente, o sistema político baseado no pacto organizador e direcionista da liberdade. Não à toa, no discurso bolsonarista toda e qualquer ação estatal de sentido inclusivo – de bem-estar social, digamos – é qualificada como “comunista” ou “de esquerda", sem qualquer nuance (lembremos que em algumas palestras que ministrou em 2018, o "príncipe" Luiz Philippe de Orleans e Bragança, um dos porta-vozes do bolsonarismo durante as últimas eleições presidenciais, apresentava um degradê político em que à exceção de PSL e NOVO todos os demais partidos políticos brasileiros eram taxados como sendo de esquerda, logo, com um viés comunista).

A “revolução conservadora", que no Brasil é capitaneada pelo bolsonarismo, procura achatar as democracias liberais, os comunismos, os totalitarismos e tudo o mais sob o argumento de que todos são modos de cercear a verdadeira liberdade – não ser coagido por ninguém sob nenhuma circunstância. Para isso, reivindica um "mito" fundador como hipótese para o início de uma "nova era" da política. Podemos ler essa nova era como uma espécie de estado de exceção, nos moldes schimittianos, que funcione tal qual uma mola propulsora para que os indivíduos se desvencilhem das instituições que, em nome de um pacto social que estaria nos conduzindo ao caminho para a servidão, cerceiam a verdadeira liberdade: é nesse sentido que os recentes ataques às estruturas fundamentais do Estado, o STF e o Congresso Nacional, ganham inteligibilidade). O niilismo de Estado – uma forma de não-governo que instrumentaliza o bolsonarismo – é, no limite, a postulação de um acompanhamento, uma gestão (ou seja, no fundo ainda um governo), das condições de concorrência. Entretanto, é preciso dar à concorrência seu nome: stasis, a guerra civil, na qual – sob o argumento do não-direcionismo e do não-intervencionismo que garantiriam o afloramento espontâneo e natural da verdadeira liberdade e da verdadeira ordem natural das instituições – a intervenção da violência do governo se dá, nos rincões coloniais do planeta, não mais na forma-polícia mas na forma-milícia (o recente caso das insurgências polícia-milicianas no Ceará com o apoio do governo federal é emblemático; e os exemplos mundo afora poderiam ser muitos).

À diferença dos países onde o bem-estar social teve alguma força, no Brasil (e também nos territórios de ocupação: América Latina, África, Sudeste Asiático etc.) as postulações neoliberais tendem a encontrar um horizonte de recepção ainda mais naturalizado: a luta diária por condições elementares de subsistência já é uma constante secular e, portanto, o velho ditado “cada um por si, Deus para todos” pode se transformar facilmente em “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Esse jogo do “salve-se quem puder”, cujo fundo universal é a guerra civil – renomeada eufemisticamente com o termo concorrência –, tem, no tabuleiro chamado Brasil, os requintes da crueldade de todo senhor diante de seu escravo (o todos contra todos do suposto estado de natureza hobbesiano sempre foi consubstancial ao estado civil, lembra-nos Andrea Cavalletti).

Se na dinâmica das democracias liberais – do pacto social – a política estatal tem seu outro nome no “monopólio do uso da violência”, é importante notar que no modelo concorrencial há a disseminação capilarizada da violência justamente nas figuras da milícia e dos agentes financeiros. Uma das críticas mais contumazes ao sistema eleitoral de qualquer democracia liberal está no modelo de financiamento de campanhas, o qual mascara forças que, dando suporte para seus representantes na estrutura do Estado, angariam modos de praticamente alcançar o estatuto de fora-da-lei (o outro nome da soberania; e lembremos de Brecht: "Assalto a banco é um negócio de diletantes. Os verdadeiros profissionais fundam um banco."). Com uma legislação praticamente inexistente na tributação de lucros e dividendos de acionistas majoritários de grandes conglomerados financeiros, com o controle da vida do cidadão comum por meio da dívida, além da componente propagandística (mitológica, para dizer com Furio Jesi) do sacrifício necessário para impedir que a economia pare e com isso todos sejam sacrificados, os agentes financeiros atuam em nível institucional-global tal como as milícias em nível social-local: estes, os empreendedores locais bem sucedidos de regiões depauperadas que à medida que monopolizam a violência local fundam sua lei; aqueles, os empreendedores globais que vampirizam economias inteiras de estados ao ajudar a eleger – ou a sustentar pequenos tiranos locais, como fazem as empresas de tecnologia no Sudão e, desde 2005, no Sudão do Sul – seus representantes nas estruturas desses mesmos estados (de fato, o fundamento místico da autoridade para o qual Jacques Derrida quer chamar a atenção nada mais é do que uma arma na mão diante de alguém sem meios de defesa).

"A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção' no qual vivemos é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que dê conta disso. Então surgirá diante de nós nossa tarefa, a de instaurar o real estado de exceção; e graças a isso, nossa posição na luta contra o fascismo tornar-se-á melhor. A chance deste consiste, não por último, em que seus adversários o afrontem em nome do progresso como se este fosse uma norma histórica." Ao reler a famosa tese benjaminiana parece-nos claro que as atuais apostas contra o bolsonarismo insistem numa volta a um pacto social. Volta impossível para os estados em que um bem-estar social pôde ter certa consistência, mas volta sequer pensável num contexto como o brasileiro, onde apenas sopros frágeis de bem-estar foram sensíveis ao longo da história e onde a nova norma histórica, o naturalismo da concorrência, já é uma constante dos modos de relações sociais desde a dizimação das populações originárias.

Hoje, com o acontecimento provocado pela pandemia global da COVID-19, as entranhas do bolsonarismo e também das práticas biopolíticas espetaculares nos países do Atlântico Norte (basta pensarmos que Emmanuel Macron, até então um agente de especulações financeiras e que vinha lidando com as insurgências locais – “os coletes amarelos", p.ex. – com declarações que procuravam instar terror diante de um colapso econômico, de repente passou a ter um discurso alinhado ao dos “grandes estatistas" de outrora) fazem-se visíveis com mais clareza. Deleuze nos diz que os acontecimentos são sempre moleculares e, a partir disso, Jonnefer Barbosa lembra que os inframundos – tais como o do vírus que hoje, invisível, muda todo o campo do visível – desconhecem os complôs e destituem-nos de nossa pretensa soberania, lançando-nos à sorte de forças que nunca controlaremos, mas diante das quais podemos agir com virtú ou covardia. Assim, no mundo humano, estamos em um tempo de abertura de possíveis – mesmo que muitas vezes pareçam apontar a desfechos terrificantes – e no qual nos é dado ver o funcionamento do mito da concorrência universal como instância de legitimação da realidade/verdade se desfazendo a olhos nus (ou seja, vemos que o mito é apenas o produto de uma máquina mitológica: um aparelho discursivo que quer nos convencer da realidade daquilo sobre o qual é impossível asseverar qualquer juízo de existência ou não-existência, isto é, o mito). 
 
Agora, em meio à excepcionalidade efetiva causada pelo vírus – que, como argumenta Emanuele Coccia, inclusive coloca em xeque os narcisismos das sociedades humanas –, ouvimos os clamores desesperados de economistas neoliberais que, diante desse acontecimento que desmonta o mito da verdade da concorrência, agarram-se àquilo que antes, na normalidade neoliberal, repudiavam, mas que, como último aliado, ainda pode fazer com que esse mito continue a funcionar sob quaisquer circunstâncias: o monopólio do uso da violência. Entretanto, num contexto como o brasileiro, onde essa máquina mitológica produziu um mito cuja potência é desconhecida nos países onde o bem-estar social teve, mesmo que apenas alguma vez, certa força, o estupor diante do acontecimento ganha um tom mais cáustico, e, hoje, não poderíamos descartar ouvir do presidente ou de seu ministro da economia algo como: "o vírus é só mais um inimigo na sua guerra diária por sobrevivência. Virem-se como têm se virado até aqui. 'Cada um por si, deus para todos!'." (Nesse sentido, no contexto da expansão da epidemia de Covid-19 no Brasil sob a égide do bolsonarismo, por vezes mesmo um apelo paradoxal – como uma forma imediata para lidar com a irrupção da pandemia – a um funcionamento mínimo da máquina mitológica do bem-estar pode, sim, ser um modo de ao menos refrear o alastramento da morte sobretudo entre aqueles já largados à própria sorte na stasis secular brasileira. Ainda assim, no limite, é necessário não crer que uma máquina como esta poderia agora passar a operar contra o bolsonarismo, como tampouco foi capaz de impedir, onde funcionou de forma mais acentuada, o renascimento dos fascismos. Todavia – e lembremos da advertência benjaminiana –, mesmo que momentaneamente útil como um dos modos de salvaguardar a vida de humanos, também ela deve ser questionada em sua sanha de controle e vigilância, e, por fim, voltada contra si mesma.)

A frequência com a qual o neoliberalismo se modula no Brasil tem ainda muitas ondas por irradiar. Todavia, hoje, essa máquina mitológica operativa e fundacional, que se travestia, ao sabor das circunstâncias, para assegurar mais liberdade aos que por aqui desde sempre foram mais livres, agora já não consegue apresentar o mito sobre cuja veracidade gostaria de nos convencer. Com isso, dá-se a ver abertamente em toda sua feiura e compleição; resta, assim, aos cada vez menos livres o desafio de emperrar essa máquina e organizar o desespero de modo a criar outras formas de solidariedade e vida em comum.
Imagem: Marc Ferrez. Acervo Instituto Moreira Salles.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Terra brazilis 2019: a fábula da educação no livre-mercado




Vinícius Nicastro Honesko


Em 26 de abril deste ano, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, publica em sua conta no Twitter o seguinte:

O Ministro da Educação @abrahamWeinT estuda descentralizar investimento em faculdades de filosofia e sociologia (humanas). Alunos já matriculados não serão afetados. O objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina. A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta.[1]


No dia anterior, o presidente havia feito uma transmissão ao vivo em sua conta na rede social com a participação do ministro da Educação Abraham Weintraub. Nessa ocasião, o ministro, antecipando o twitter de Bolsonaro no dia seguinte, diz que é preciso respeito pelo dinheiro do contribuinte, de modo que os investimentos públicos em educação seriam direcionados às faculdades que trouxessem retorno social. Citando como exemplo o Japão, o ministro diz o seguinte:

O Japão, que é um país muito mais rico que o Brasil, ele tá tirando dinheiro público do pagador de imposto de faculdades que são tidas como faculdades para uma pessoa que já é muito rica ou de elite, como Filosofia. Pode estudar filosofia? Pode, com dinheiro próprio. E o Japão reforça. O que? Esse dinheiro que vai para faculdades como de filosofia, sociologia, ele coloca em faculdades que geram retorno de fato: enfermagem, veterinária, engenharia, medicina...[2]


Quatro dias após essa transmissão, e depois de uma intensa controvérsia suscitada pela declaração (dada sua patente ilegalidade e, por isso, impossibilidade de ser implementa) o Ministério da Educação anunciou um contingenciamento de aproximadamente 30% no orçamento de três universidades que, segundo Weintraub, apresentaram, além de desempenho abaixo da média, uma série de problemas internos. Nas palavras do ministro: “as universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão verbas reduzidas. (...) A universidade deve estar com sobra de dinheiro para fazer bagunça e evento ridículo. (...) Sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus."[3] Sem especificar que eventos ridículos seriam esses e sem dar nenhum exemplo concreto da balbúrdia e da gente pelada, o ministro continua: "A lição de casa precisa ser feita: publicação científica, avaliações em dia, estar bem no ranking."[4] A princípio, o corte das verbas iriam acontecer em três universidades federais: Universidade de Brasília, Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal da Bahia e, além disso, mais uma estava sob avaliação para um possível corte, a Universidade Federal de Juiz de Fora.

A polêmica declaração do ministro gerou, no mesmo dia, uma imensa repercussão: obviamente, pelas insinuações e disparates infundados, mas também pelo fato de que a medida sugerida – o corte por suposto baixo desempenho e por balbúrdia e gente pelada nos campi – obviamente não encontrava nenhum embasamento legal de ordem orçamentária: a mera afirmação do ministro de que as universidades eram lugares de “eventos ridículos", de "gente pelada" e de “balbúrdia" não provava nada e a alegação de baixo desempenho dentro dos parâmetros das avaliações e ranqueamentos era mentirosa, haja vista que de acordo com o Times Higher Education deste ano as três universidades nominalmente citadas pelo ministro haviam melhorado suas posições no ranking internacional.[5] Diante disso, doze horas após o anúncio de corte nessas três universidades, o Ministério da Educação declara que o contingenciamento de 30% seria para todas as universidades (e é preciso lembrar que, na verdade, o corte foi para toda a pasta[6]). Do anúncio do dia 25/04 em que alegava cortes estratégicos nas humanidades em prol de cursos que gerassem mais retorno para os pagadores de impostos, passando pelo ataque concentrado nas três universidades federais citadas, chegou-se a um corte geral no orçamento do Ministério da Educação.[7] Em um governo que tem como palavra de ordem a liquidação dos inimigos[8] e o discurso de armamento da população, é como se, diante da impossibilidade de colocar um sniper para atacar especificamente as humanidades, tivesse decidido, primeiro, lançar umas granadas em três trincheiras e, vendo que a estratégia continuava equivocada, optasse, por fim, por lançar uma bomba que liquidasse todos e cujos efeitos colaterais seriam geridos. No caso específico das propostas para as universidades públicas (e para o ensino público em geral), o modo de gestão desses efeitos colaterais seria anunciado dois meses depois com o seguinte nome: "Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – FUTURE-SE”, um projeto de lei para mudar toda a estrutura de funcionamento das universidades públicas brasileiras. Logo na abertura da proposta, lemos em seus objetivos gerais:

O Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras (FUTURE-SE) tem por finalidade o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), por meio de parceria com organizações sociais e do fomento à captação de recursos próprios.[9]

A proposta destinada aos institutos de ensino superior públicos brasileiros foi submetida a uma consulta pública[10] e, até o momento, ainda está em trâmites legislativos e sendo submetida, no âmbito dos conselhos universitários, a análise, uma vez que cabe às universidades aderir ao programa (e dado o caráter genérico e pouco circunstanciado do projeto, o clima é de apreensão por parte da comunidade acadêmica). Sem me deter num exame mais longo da proposta, gostaria apenas de ressaltar o tom e alguns termos-chaves que constam no texto de modo que possamos refletir sobre o núcleo duro dessa proposta. Os termos são: empreendedoras, inovadoras, gestão, parcerias, organizações sociais, captação de recursos próprios. Só com a menção a tais palavras que aparecem logo no início do texto, um vocabulário emprestado dos mais banais manuais de economia (do chavão neoliberal), já é possível perceber que esse projeto, sob a alegação de maior autonomia e de gestão (que aqui chamo de gestão dos efeitos colaterais da destruição), se constituiria como uma nova estratégia de ataque tanto da própria concepção de ensino público em geral quanto das áreas que, em certo sentido, funcionam como os lugares em que justamente se questiona e se submete a análises críticas os problemas e compreensões da vida em comum (da vida em coletivo, da vida pública, por assim dizer): as humanidades. Isto é, ao usar como argumento e fundamento absoluto uma visão utilitarista, segundo a qual o conhecimento produzido na universidade deve ter uma aplicação prática direta, todos os saberes produzidos pelas assim chamadas humanidades, por não se enquadrarem nessa visão restrita do princípio utilitarista[11], são relegados, na visão do governo Bolsonaro, à condição de "gasto inapropriado”, “luxo a ser bancado pelo próprio agente beneficiado" e “como desrespeito ao pagador de impostos”.

Um projeto nos moldes do “Future-se” não é de todo novo no contexto do ensino superior. A partir dos dois termos da gramática neoliberal que estão no título do projeto, empreender e inovar, e das declarações tanto de Bolsonaro quanto de seu ministro da educação (repito: "A função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta"), é possível perceber de modo muito claro qual é a compreensão da vida em comum que está em jogo para o atual governo brasileiro: uma sobrevivência dos sujeitos que, sendo treinados para a execução de algum ofício, não questionem os pressupostos e fundamentos da vida em comum, mas apenas se esforcem para pagar suas contas mediante qualquer trabalho que seja[12]. Isto é, os cidadãos seriam reduzidos a indivíduos que na universidade – estas que funcionariam mediante parcerias com entes privados que visam ao lucro e que captariam seus recursos justamente nesses entes – buscariam apenas agregar valor a si ao aprender a inovar e a empreender. Assim, aqueles que tomam posse dessas habilidades oferecidas como saber na área de treinamento de nome universidade teriam mais chances de vencer no campo da concorrência geral, um eufemismo para a stasis (a guerra civil), que se tornou a vida em coletividade. Nesse campo de virtualidades entre vencedores e vencidos, poderíamos parodiar Hobbes em termos contemporâneos: o homem é o virtual motorista de uber do homem.

Que essa compreensão da vida em coletividade por parte dos membros do governo Bolsonaro encontre suas raízes em Friedrich Hayek é algo que vem ficando cada vez mais claro sobretudo pelas declarações do ministro da Economia, o autoproclamado Chicago Boy Paulo Guedes. Em recente declaração, Guedes afirma que toda a organização de seu ministério estaria baseada em dois livros: Prosperidade através da competição, de Ludwig Erhard, e Caminho da servidão, de Hayek. Lembrando de uma pergunta retórica constante nos discursos de Bolsonaro ("Como pode um país tão rico em recursos naturais assistir ao empobrecimento de seu povo?”), Guedes, apoiado na apresentação dos dois livros que faz para os jornalistas, diz:

Nós não despertamos, ainda, as forças de mercado. Jamais despertamos as forças de mercado. O Brasil é um gigante acorrentado. O Brasil é um país amarrado por todos os lados. (...) São 200 milhões de brasileiros atendidos por quatro empreiteiras, quatro bancos, uma produtora e distribuidora de gás, por acaso, pública, mas é uma. Não há surpresa em por que o povo brasileiro segue empobrecido. São poucos produtores, mercados cartelizados, preços caros, e, ainda por cima, uma chuva de impostos. Sobra o quê? Sobra pouco. Então, despertar as forças competitivas é o que nós estamos fazendo desde o início.[13]

Para Guedes, qualquer política econômica que preveja planejamento coletivo e não apenas a garantia para o bom funcionamento do livre-mercado é, como para seu mestre Hayek, uma amarra e um caminho da servidão. No livro citado pelo ministro da economia brasileiro (publicado em 1944), Hayek aponta suas críticas ao nazi-fascismo, ao comunismo, mas também à nova política das democracias do Ocidente, qual seja, a dinâmica do welfare state de matriz keynesiana. No prefácio escrito em 1975 para a edição americana, Hayek afirma que o socialismo radical – o termo é do autor – contra o qual o livro foi escrito já era coisa do passado, mas que suas concepções haviam a tal ponto penetrado nas estruturas sociais que qualquer complacência em relação a seus rastros deveria ser eliminada. Diz ele:

Se poucos, no Ocidente, querem reconstruir a sociedade a partir de seus alicerces com base em algum plano ideal, são entretanto numerosos os que ainda acreditam em medidas que, embora não visem a uma reforma completa da economia, podem no entanto produzir involuntariamente esse mesmo resultado, por efeito de conjunto. E, mais ainda do que quando escrevi este livro, a defesa de uma política que a longo termo seja inconciliável com a preservação da sociedade livre já não é assunto a ser decidido por um partido. Essa mistura de ideais contraditórios e com freqüência inconsistentes que, sob o rótulo de Estado previdenciário, em grande parte substituiu o socialismo como objetivo dos reformadores, precisa ser analisada com discernimento, se não quisermos que seus resultados sejam semelhantes aos do socialismo extremado.[14]

Os resultados semelhantes entre o welfare e o que chama de socialismo extremado, estavam, após os ciclos de revoltas e greve entre 1966 e 1969, naquele momento, 1975, começando a apontar para as sucessivas crises no âmbito do capitalismo.[15] Anos antes desse prefácio, em 1960, Hayek, então em um intenso momento de atividades às vésperas de sua primeira década na Universidade de Chicago[16], publica A constituição da liberdade. E é do capítulo intitulado Os poderes criativos de uma civilização livre (quaisquer ecos nas noções de inovação e empreendedorismo não é mera coincidência) que retiro um pequeno fragmento a partir do qual se torna possível perceber certa postulação de fundamento – isto é, uma espécie de sustentáculo – do pensamento de Hayek:

Nunca teremos os benefícios da liberdade e nunca obteremos os imprevisíveis novos desenvolvimentos para os quais ela dá oportunidade se ela também não for garantida na medida em que for utilizada de forma que não pareça desejável. Assim, já não se sustenta o argumento de que a liberdade individual seja frequentemente abusiva. Liberdade necessariamente significa que muitas coisas de que não gostamos serão feitas. Nossa fé na liberdade não se baseia nos resultados previsíveis em circunstâncias particulares, mas na crença de que ela acabará, em equilíbrio, liberando mais forças para o bem do que para o mal.[17]

O que seria essa crença numa liberdade imprevisível e que – como numa espécie de embate maniqueísta – liberaria forças para o bem? Trata-se de algo que, de fato, está ligado diretamente à compreensão que Hayek tem do que seria uma ação livre, esta que, em um ambiente de concorrência, realiza a liberdade de forma imprevisível e espontânea. Para tanto, é preciso que as condições da concorrência (que acontecerão no livre-mercado) devam ser estabelecidas como condição a priori para a equalização (que ele chamará de ordem espontânea) de um sistema social complexo. Assim, temos que uma ação livre é sempre fruto não de um cálculo racional, mas é o próprio fundamento do imprevisível frente a tais cálculos. Hayek indica que é na renúncia ao controle direto sobre os esforços individuais que uma sociedade livre poderá usufruir de um conhecimento que ultrapassa em muito as possibilidades de sua previsão (mesmo do mais sábio legislador, diz ele[18]). Aliás, ele chega a dizer que uma liberdade cujos efeitos sejam apenas benéficos não seria liberdade: “Se soubéssemos de que forma a liberdade seria usada, nosso argumento para justificá-la desapareceria."[19]

Diante disso, para Hayek, não haveria como prever uma ação livre, mas ela só poderia ser estimulada em um imperioso ambiente de concorrência. No fundo, isso se deve à antropologia hayekeana, que em certa medida apresenta-se em Direito Legislação Liberdade, de 1973. Aí ele afirma:

na mesma medida em que é um animal que persegue objetivos, o homem é um animal que segue normas. E alcança seus objetivos não por conhecer as razões pelas quais deve observar as normas que observa, nem por ser capaz de dar expressão verbal a todas elas, mas porque seu pensamento e ação são orientados por normas que, por um processo de seleção, evoluíram na sociedade em que ele vive e que, assim, são produto da experiência de gerações.[20]

A liberdade de perseguir seus objetivos individuais, portanto, funciona como uma base da compreensão antropológica de Hayek. Além disso, esse estímulo à liberdade é o propulsor do que ele chama de ordem espontânea. Inspirado em Michael Polanyi e Carl Menger, Hayek diz que a livre concorrência é que dá ensejo a ações que promovem mais liberdade, de tal modo que quanto mais liberdade uma ação promove, melhor se dá a organização da sociedade. Ou seja, numa sociedade onde a livre concorrência se organiza tendo como fundamento apenas normas gerais, e que tenha ciência da imprevisibilidade das ações que se darão nesse espaço concorrencial, espontaneamente haveria uma seleção das ações que implementariam mais liberdade.[21]

Nessa espécie de conto de fadas new age – que no Brasil é hoje a tônica –, o questionamento dos princípios espontâneos – e, portanto, místicos – da regulação econômica não pode ter espaço. Não é à toa que há algum tempo também a universidade tem introjetado critérios de concorrência como parâmetro de funcionamento e, sobretudo, de financiamentos. Ainda que essa compreensão esteja já há um tempo paulatinamente ingressando também no horizonte das universidades públicas brasileiras, agora a aposta do governo Bolsonaro está em radicalizar: também no âmbito da educação o estado tem que dar as condições de concorrência (aliás, só essa seria sua função), mesmo que, para isso, use do monopólio da violência (e lembremos aqui a famosa entrevista de Hayek para o El Mercúrio: "A veces es necesario que un país tenga, por un tiempo, una u otra forma de poder dictatorial. Como usted comprenderá, es posible que un dictador pueda gobernar de manera liberal. Y también es posible para una democracia el gobernar con una total falta de liberalismo. Mi preferencia personal se inclina a una dictadura liberal y no a un gobierno democrático donde todo liberalismo esté ausente."). Mas, tendo como referência o caso do Brasil que aqui trouxe, o que essa ingerência forçada de um governo para a implementação de uma doutrina da liberdade representa para a educação e para as humanidades em específico?

Num primeiro momento, podemos dizer que frente à métrica do mercado, que vê o governo apenas como um agente alternativo do capital, as perguntas fundamentais sobre as dimensões da vida em coletividade são deslocadas ou apagadas: o sujeito crítico dá lugar ao consumidor de saberes (aprende-se habilidades) e ao investidor de si mesmo que visa a vencer no campo concorrencial. Dessa maneira, os chamados estados democráticos de direito não necessitam mais de sujeitos que dele possam e queiram participar ativamente, mas de capital humano com habilidades técnicas (e o twitter de Bolsonaro nesse sentido é exemplar) para competir e sobreviver em meio a outros competidores. O capital humano, assim, seria um autoinvestidor que, não preocupado em colocar-se na vida pública e em adquirir conhecimentos necessários para atuar na vida em coletividade, procuraria apenas agregar valor às suas práticas de sobrevivência. Ou seja, o conhecimento é buscado somente como uma melhora ao capital humano, de tal modo que, como diz Wendy Brown

el conocimiento no se busca por propósitos disímiles al mejoramiento del capital, sin importar si es capital humano, corporativo o financiero. No se busca para desarrollar las capacidades de los ciudadanos, mantener la cultura, conocer el mundo o imaginar y crear diferentes maneras de vida común. Por el contrario, se busca por su “ROI positivo” —rendimiento sobre inversión—, una de las mediciones cuyo uso propone la presidencia de Obama para calificar universidades para futuros consumidores de educación superior.[22]

Um conhecimento como arma – um rendimento – para consumidores de educação que se preparam para competir, enquanto capitais vivos, no livre mercado. Como horizonte de fundo, portanto, não faz mais sentido pensar em laços de solidariedade ou qualquer coisa que o valha e, com isso, a universidade passa justamente a ter o papel de lugar onde se aprende as melhores técnicas para sobreviver no campo concorrencial (na guerra civil). Porém, é possível ir ainda mais adiante na compreensão dessa dinâmica implícita no capitalismo contemporâneo. Para a filósofa Marina Garcés, o capitalismo atual tem um marco epistemológico que transcende a mera mercantilização do conhecimento. Trata-se muito mais de uma

revolução que já não depende de uma só linguagem científica, mas que mobiliza todos os saberes de que dispomos para um só fim: fazer da inteligência como tal, além e aquém do ser humano, uma força produtiva. O projeto educativo que o capitalismo atual está desenvolvendo se situa nesse marco epistemológico. A escola do futuro já começou a se construir e não são os Estados ou as comunidades que a estão pensando, mas as grandes empresas de comunicação e os bancos. Ela não tem muros nem cercas, mas plataformas on-line e professores vinte e quatro horas. Não irá fazer falta o fato de ser excludente, porque será individualizadora de talentos e de trajetos vitais de aprendizagem.[23]

Na constituição do novo mundo 4.0, pouco importam[24] as chamadas humanidades, porque nele as soluções para toda problemática da vida em coletividade já estarão todas dadas de antemão pelos dispositivos tecnológicos desenvolvidos, obviamente, no âmbito das inovações proporcionadas dentro da própria universidade e apropriadas pelas empresas nas quais os recursos para tais pesquisas de inovação são captados. Pouco importa que poucos tenham acesso à escola no agora, porque no projeto de equilíbrio espontâneo que tem a liberdade como marco, isso há de acontecer à medida em que mais ações livres (inovações, criatividades etc.) vão sendo produzidas pelos indivíduos mais livres, de modo a proporcionar a liberdade vindoura para aqueles que agora padecem. Portanto, para que esse processo se acelere, é preciso focar nos saberes úteis e que tragam inovações para uso prático no campo da concorrência onde vivemos.

Por fim, gostaria de me ater a um pequeno detalhe do texto de Garcés: o fato de que são as grandes empresas de comunicação e os bancos que estão pensando a escola do futuro. Ora, o ministro da Educação do Brasil, Abraham Weintraub, tem, como professor, uma carreira medíocre: não fez um doutorado e nunca trabalhou com problemas ligados à educação (em seu currículo constam apenas 4 artigos em toda a carreira). Weintraub, no entanto, é conhecido pelos seus mais de 20 anos como agente no mercado financeiro.[25] Já o ministro da Economia, Paulo Guedes, até pouco antes de assumir o posto no governo, era presidente da Bozano Investimentos (agora Crescera), uma gestora de recursos que administra alguns bilhões em fundos e investimentos tradicionais e private equity. Dentre os recursos administrados, encontram-se aplicações ligadas a pelo menos oito empresas do setor educacional[26] (a título de exemplo: ao longo de 2019, o fundo obteve de uma dessas empresas nas quais aporta recursos, a Afya – voltada a cursos de medicina –, uma retorno de 600%, tendo ingressado com uma participação de R$600 milhões que, em novembro de 2019, estava avaliada em R$3,6 bilhões[27]). Além disso, é preciso lembrar de uma coincidência: a irmã de Guedes, Elizabeth Guedes, é a atual vice-presidente da Associação Nacional das Escolas Particulares.[28] Bem, na fábula da liberdade que não prevê personagens como asnos falantes, mas ditadores liberais, vemos que o livre mercado não é tão livre quanto se diz.


[1] UOL – Educação. 26 de abril 2019. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/04/26/bolsonaro-faculdades-humanas-investimento.htm (acesso: 05/11/2019)

[2] Idem.

[3] O Estado de São Paulo. 30 de abril 2019. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,mec-cortara-verba-de-universidade-por-balburdia-e-ja-mira-unb-uff-e-ufba,70002809579 (acesso: 05/11/2019)

[4] Idem.

[5] Cf.: O Estado de São Paulo. 30 de abril 2019. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,universidades-acusadas-de-balburdia-tiveram-melhora-de-avaliacao-em-ranking-internacional,70002810148 (acesso: 05/11/2019)

[6] O Globo. 30 de abril 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/ministro-da-educacao-vai-cortar-30-das-verbas-de-todas-as-universidades-federais-23634159 (acesso: 05/11/2019)

[7] Folha de São Paulo. 05 de maio 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/05/bloqueios-no-mec-vao-do-ensino-infantil-a-pos-graduacao.shtml (acesso: 05/11/2019) É importante lembrar que o dinheiro contingenciado foi, por fim, liberado no final do mês de outubro, pouco mais de dez dias antes do prazo final de empenho do dinheiro. Na prática, portanto, boa parte desses recursos não foram utilizados pelas instituições e o contingenciamento revelou-se, de fato, um corte (ainda que, para o público em geral, o governo tenha, por meio dessa estratégia – de guerra –, liberado todo o dinheiro previsto no orçamento de 2019). Cf.: Portal G1. 18 de outubro 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/10/18/ministro-da-educacao-afirma-que-vai-descontingenciar-todo-o-orcamento-de-universidades-federais.ghtml (acesso: 05/11/2019)

[8] Uma semana antes do segundo turno das eleições, Bolsonaro faz um discurso na avenida Paulista em que diz: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos", numa clara alusão a seus antagonistas do Partido dos Trabalhadores. Cf.: El País. 22 de outubro 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/22/actualidad/1540162319_752998.html (acesso: 05/11/2019)

[9] Portal G1. 17 de julho 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/07/17/future-se-leia-a-integra-da-proposta-do-mec-sobre-mudancas-na-gestao-das-universidades-federais.ghtml (acesso: 05/11/2019)

[10] Friso que a consulta pública não seguiu minimamente os requisitos legais de uma consulta pública no âmbito da administração pública federal: sem ampla divulgação, sem estudos fundamentados, sem uma linguagem acessível. Há suspeitas, inclusive, de irregularidade na contratação da empresa que elaborou a consulta. O Ministério Público Federal ingressou com uma ação pedindo a suspensão da consulta e, também, a elaboração de uma nova consulta. Cf.: Portal G1 09 de outubro 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/10/09/mpf-entra-na-justica-para-que-mec-refaca-a-consulta-publica-sobre-o-future-se.ghtml (acesso: 05/11/2019) cf.: Folha de São Paulo. 09 de outubro 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/10/mpf-pede-a-justica-que-mec-refaca-consulta-publica-sobre-o-future-se.shtml (acesso: 05/11/2019)

[11] Poderíamos, inclusive, contra-argumentar mesmo dentro do espectro do princípio utilitarista. É nesses termos, por exemplo, que a Universidade Federal do Paraná, em documento aprovado pelo Conselho Universitário, propõe uma "linha de defesa das humanidades". Cf.: UFPR. Análise, Reflexões e Questões acerca do projeto de lei do Programa Future-se. Ago/2019. Disponível em: https://www.ufpr.br/portalufpr/wp-content/uploads/2019/08/UFPR-FUTURE-SE.pdf Cito aqui um trecho do item 4.2. do documento, A atenção às áreas acadêmicas sem conexão imediata com as necessidades do mercado: "Mesmo sem desprezar a visão utilitarista, segundo a qual o conhecimento gerado na universidade deve ter aplicação prática direta, isso não pode se tornar um princípio absoluto. Ademais, ainda que aparentemente as humanidades não tenham impacto mercadológico direto sobre a sociedade, não se pode negar que as ideias de filósofos, educadores, historiadores, linguistas, sociólogos, cientistas políticos, antropólogos e outros profissionais desse ramo do conhecimento também impactam na história e nas vidas dos cidadãos, inclusive daqueles que atuam nas áreas técnicas, para as quais o mercado valoriza uma série de atributos relacionados às humanidades. Por exemplo, um dos ramos mais nobres da filosofia é a ética, uma área do conhecimento que se pode tomar como uma das mais importantes para se construir uma sociedade livre, coesa e justa. Alguns estudiosos têm argumentado, inclusive, que as humanidades são essenciais porque nos ensinam a ser e a nos tornarmos mais criativos, empáticos e curioso. Omitir uma discussão clara sobre uma eventual excessiva mercantilização do conhecimento universitário, que leve a desprezar áreas como as humanidades, bem como à infinidade de cursos de licenciaturas que integram as IFES e que são essenciais para os outros níveis de ensino, vai de encontro à construção da universidade como instituição crucial da história da civilização."

[12] É fundamental lembrar que, mesmo depois da reforma trabalhista de Michel Temer em 2017 – que já fragilizou em muito as relações de trabalho no Brasil –, o governo Bolsonaro já aprovou uma Medida Provisória com o nome “Liberdade econômica" (também denominada “minirreforma trabalhista”), que prevê, dentre outras coisas, que “as partes de um negócio poderão definir livremente a interpretação de acordo entre eles, mesmo que diferentes das regras previstas em lei”. Além disso, o governo também prevê uma nova reforma ainda mais radical, sobretudo no que diz respeito às relações sindicais, de acordo com declarações de agentes do governo. Cf.: UOL Economia. 20 de setembro 2019. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/09/20/entenda-as-principais-mudancas-da-mp-da-liberdade-economica.htm (acesso em: 05/11/2019)

[13] Seu Dinheiro. 28 de jul. 2019. Disponível em: https://www.seudinheiro.com/dois-livros-de-guedes-para-desvendar-o-enigma-de-bolsonaro/ (acesso em: 05/11/2019)

[14] HAYEK, Friedrich. O Caminho da Servidão. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990. Trad.: Anna Maria Capovilla, José Italo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. p. 12.

[15] A esse respeito, são absolutamente fundamentais as análises desenvolvidas por Wolfgang Streeck e sua teoria da compra de tempo, esta que, segundo o autor, teria começado, a partir do início dos anos 1970, a ser o ponto de sustentação do capitalismo. Ainda que Streeck denomine isso de adiamento da crise, penso que se trata de uma forma de implementação do capitalismo que se estabelece justamente como uma manutenção e constância da crise enquanto novo modus operandi. Cf. STREECK, Wolfgang. Tempo Comprado. A crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2019. Trad.: Marian Toldy e Teresa Toldy.

[16] Hayek trabalhou no programa de estudos avançados (graduate studies) denominado Committee on Social Thought e teve seu salário financiado, por dez anos, pelo William Volker Found, uma fundação ligada às empresas de William Volker e que, após a morte de seu criador, em 1947, teve como presidente Harold W. Luhnow, o qual, a partir de então, imprime à fundação também uma agenda de financiamentos à divulgação do pensamento econômico ligado ao livre-mercado. Em 1948, Luhnow escreve para Hayek, então professor na London School of Economics, com a proposta de trabalho na Universidade de Chicago. Dois anos depois, em 1950, Hayek começa seu trabalho na Universidade de Chicago. Cf.: MITCH, David. Morality versus Money: Hayek's move to the University of Chicago. In.: LEESON, Robert (org.). Hayek: a collaborative biography. Part IV. England, The Ordinal Revolution and The Road to Serfdom (1931-1950). Hampshiere; New York: Palgrave Macmillan, 2015. p. 243. DOHERTY, Brian. Radicals for Capitalism. A freewheeling history of the modern american libertarian movement. New York: PublicAffairs, 2007.

[17] HAYEK, Friedrich. The Constitution of Freedom. The definitive edition. (org. Ronald Hamowy). Chicago: The University of Chicago Press, 2011. p. 83. (tradução nossa)

[18] Idem. p. 82.

[19] Idem. p. 83.

[20] HAYEK, Friedrich. Direito Legislação Liberdade. Uma nova formulação dos princípios liberais de justiça e de economia política. São Paulo: Visão, 1985. Trad.: Henry Maksoud. p. 6.

[21] No que diz respeito à concorrência, Hayek é ciente do problema do monopólio. Para ele, no entanto, este não é um problema inexorável do laissez faire, mas tem também sua origem na dimensão da intervenção do Estado. Como exemplo disso, Hayek utiliza a Grã-Bretanha, onde, antes de 1930, num ambiente ainda sem tanta intervenção estatal, a formação de monopólios era muito difícil. Cf.: HAYEK, Friedrich. O Caminho da Servidão... pp. 65-69. Em nenhum momento, no entanto, Hayek toca na dimensão colonial da Grã-Bretanha. Isto é, todo seu argumento remove do horizonte a produção e extração (espoliação!) de riquezas que os ingleses auferiam de suas colônias. Aliás, o horizonte da liberdade hayekiano se limita ao circuito do Atlântico Norte. Para uma compreensão das implicações coloniais nas compreensões de liberdade: BUCK-MORSS, Susan. Hegel e o Haiti. São Paulo: N-1, 2017. Trad.: Sebastião Nascimento; LOSURDO, Domenico. Contra-História do Liberalismo. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006. Trad.: Giovanni Semeraro; MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: N-1, 2018. Trad.: Sebastião Nascimento.

[22] BROWN, Wendy. El Pueblo sin atributos. La secreta revolución del neoliberalismo. Barcelona: Malpaso Ediciones, 2016. Trad.: Víctor Altamirano. p. 335.

[23] GARCÉS, Marina. Novo esclarecimento radical. Belo Horizonte; Veneza: Ayiné, 2019. Trad.: Vinícius Nicastro Honesko. p.

[24] Eric Alterman chama atenção para a diminuição geral da procura pelos cursos de História nos Estados Unidos. No entanto, lembra também que há, de modo paradoxal, um aumento na busca desses cursos nas chamadas instituições de prestígio. Isto é, os saberes relacionados às humanidades estão cada vez mais postos como um incremento de valor para mercados de ponta da elite econômica. P.ex.: é preciso que historiadores, críticos de arte etc. forneçam saberes para o mercado da arte, o mercado de turismo (com saberes históricos especificamente construídos para tal fim) etc. Cf.: ALTERMAN, Eric. The decline of Historical Thinking. In.: The New Yorker. 04 de fevereiro 2019. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/news-desk/the-decline-of-historical-thinking?fbclid=IwAR3TZKaUGyOikahozuffCLR08LnUQiLZwJZy5Tqj4pf9AogkF1fzL2SCP3I (acesso em: 05/11/2019)

[25] UOL Educação. 08 de março 2019. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/04/08/novo-ministro-da-educacao-tem-20-anos-de-atuacao-no-setor-financeiro.htm

[26] Cf.: Revista Exame. 16 de dezembro 2018. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/plano-para-a-educacao-deve-enfraquecer-professor-e-beneficiar-guedes/ UOL. 04 de outubro 2018. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/04/propostas-de-bolsonaro-favorecem-investimentos-de-empresa-de-paulo-guedes.htm (acesso em: 05/11/2019)

[27] Seu dinheiro. 02 de agosto 2019. Disponível em: https://www.seudinheiro.com/fundo-paulo-guedes-afya/ (acesso em: 05/11/2019)

[28] O GLOBO. 1º de novembro de 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/irma-de-paulo-guedes-defende-migracao-do-ensino-superior-para-pasta-de-ciencia-tecnologia-23204313 (acesso em: 05/11/2019)

sábado, 4 de janeiro de 2020

Curiosos Fios

 
 
Saulo Mattos

Até das fibras mortas não se pode cuidar com tranquilidade. A corporeidade crespa nasce mais morta nessas cabeças negras. O trançado ficava escondido nos cantos da cidade, como se fosse conhecimento de poucos, como se fosse da ordem da proibição, e, só depois de muito tempo, começa aparecer nos colégios particulares, nas representações redundantes de uma África sempre colorida, como se houvesse tido pouco derramamento de sangue no continente, como se tudo fosse dança agitada e de tambor, como se a foto da criança esquálida cercada pelo urubu não fosse conhecida de todos. Apenas para que pudesse haver uma interpretação de sociabilidade com os que compunham a tarja preta escolar que enfurecia a razão particular dos donos dos boletos. O destino predestinado de todo cabelo é nascer morto, não se enganar com a vida. Seu reino é o dos fios mortos, que podem ser cortados em qualquer dia. Desprezivelmente belo: estar morto para ser livre, originalmente sem estética, cobrir a cabeça, protegê-la do sol. Até das fibras mortas o grito capitalista se aproveitou.

Serve para muita coisa. Para dizer quem é negro, quem não é. Quem pode ser da televisão ou de determinada profissão. Quem pode ter cabelo grande ou não. Quem pode estar na cozinha. Quem pode cuidar de seu filho, ser segurança. Quem pode ser galã ou beldade model. Quem pode tudo. Quem estará na prisão. O cabelo identifica. Rotula. Criminaliza. Mata estando morto, porque escolhemos valorá-lo como distintivo social. O cabelo não. Nós fazemos tudo isso a partir dessa textura que pode ser, paradoxalmente a todo esse modo de viver apartado, a nossa parte mais alegre, a autodefinição, a terra viva do ser. Cabelo que pode ser a alegria suada, de muitas lutas individuais e coletivas, representatividade de uma coletividade marcada pela chibatada, pela nudez exposta ao meio dia com suor queimando os vincos profundos da carne negra intergeracional. As dores ultrapassaram o futuro para que se soubesse o valor da celebração, que se despertasse a consciência negra da negritude (Mbembe). Que não se pode ficar só, sozinho, na clausura do corpo negro sofrido. Deve-se correr para o abraço sereno, celebrar o frescor da liberdade dos nossos cabelos, das nossas cabeças. Celebrar do nosso jeito para que os sentimentos sejam um adubo de bons pensamentos.

A senhora-menina está entre as pernas dela, encostada no sofá, sentada no chão, sentiu as mãos dela, da antiga que pôde chamar de vó, do que sobrou de carinho da família, do tempo quase integralmente dedicado à feira, da reduzida oportunidade de conversa graciosamente dada por aquele momento de trançar o cabelo - isso marca, de modo geral, os usos e costumes da negritude, tempo afetivamente estreito e despedaçado, aos solavancos e encontrões.

Não tê-lo era ritualístico. Dentre os que escolheram o Axé havia os que optaram em ir mais adiante para despir-se do cabelo como ato de entrega energética sagrada, escolhida nos caminhos de dentro da especial religiosidade afro. Outra vez o cabelo a emprestar a liberdade de sua natureza morta ao religare humano.

Nem sempre foi assim. Ainda hoje não se sabe se está a se experimentar a liberdade afrocapilar. As lembranças de um passado recente desenham as mulheres negras que se automutilavam alisando seus cabelos, os homens negros que raspavam suas cabeças com vergonha da realidade crespa que os destacava como sujeito racial negro, por mais impossível que fosse escondê-lo. O imperialismo da branquitude fez-se nas cabeças negras, ainda que alguns cantassem que eram “black power”. Por isso, antes de se falar das dores que “cancerinizam” os corpos negros, elevam suas pressões arteriais e diabeticamente amputam suas pernas, que tal pensar no pânico estético que sempre aprisionou nossos extremos corpóreos roubando as cenas originais da existência afro, que podem não ser originais porque estamos cindidos (Fanon) pela segregação trucidante desde a concepção raivosa e insana que nos coloca no mundo, porque boa parte da negritude tem sido filha dessa insanidade disfarçada de amor, anestesiada de carnaval, e com pouquíssimas chances de se autoproclamar humanamente existente. Fétidos, largados pela cidade, são os muitos negros que sobrevivem psicologicamente devastados tanto quanto aqueles que conseguiram a compensação material da carreira bem-sucedida, que querem patrocinar o mito do negro heroico, excepcional.

Para que disputar dores? Somos um texto só de diversas partituras, com múltiplos ecos, tons e silêncios, poesia e prosa corrida se misturam nessa complexa existência que é o viver negro, que busca significar a liberdade nunca sentida.

Quer saber? As cabeças raspadas são suspeitas cláusulas de aceitabilidade social. Os cabelos alisados também. São pré-condições para a empregabilidade subalterna, escravizada, do negro. Alguns mais livres. No geral, muitos negros matáveis (a indistinta autorização socioestatal para matá-los) com seus fios mortos na cabeça, os quais ainda eletrocutam sua sanidade. Existir para ser subalternizado é linguagem contemporânea. A liquidez do mundo não desperdiça uma gota só desse comando arquétipo multissecular de espoliação pungente do negro.

A pergunta volta: por que há quatro ou cinco décadas raspávamos e alisávamos os cabelos com tanta frequência? Antes de sugerir alguma resposta, aparece Conceição Evaristo (Histórias de leves enganos e parecenças, p. 50) para lembrar a história dos fios de ouro da negra africana Halima, que pertencia a um clã em que “um dos signos da beleza de um corpo era o cabelo” e que “a arte de tecer cabelos era exercida por mulheres mais velhas que imprimiam aos penteados as regras sociais do grupo”. A negra Halima, em 1852, com 12 anos apenas, foi escravizada para trabalhar em plantios e colheitas brasileiros, ser brinquedo das crianças da casa-grande, mas, antes, “a sua cabeça foi raspada, indicando sua nova condição: a de peça para ser vendida no comércio da escravidão.”

Raspávamos e alisávamos porque era o “corte” da aceitação, mostrávamo-nos limpos em concordância com a assepsia social e estética da branquitude, que desde sempre confortável em suas poltronas de privilégios imprimiu nota dolorosa na alma negra: “só te aceitarão assim”. Despersonificação, cabelo de negro não serve. Raspávamos as cabeças como se presidiários fôssemos. Continuamos nas prisões. Atados as essas cordas meladas de sangue que arrastam nossos corpos nas construções dos bairros luxuosos, zerados de lixo pelas mãos negras das cabeças zeradas de cabelo. Sob o céu, onde dizem morar Deus, suávamos higienizados da nossa própria beleza. Alisava-se para ser a impossível Barbie. Não queremos generalizar as potencialidades do existir negro. Eles é que nos apontam os dedos querendo desautorizar as nossas falas e interpretá-las de forma sádica, o que demonstra enquanto continuam organizada e difusamente senhores de um “crime perfeito”: o racismo (Kabengele Munanga). Querem generalizar as nossas falas para desautorizar os pensamentos afrocentrados que se desenvolveram enquanto nossas cabeças sofriam de uma ausência capilar imposta, de um alisamento capilar resultante de uma autopercepção desviante do espelho afro que deu espaço para a imposição de um referencial feminino europeu.

Lutamos pelos nossos cabelos. Lutaremos muito mais. Já sabemos que eles são o húmus de grande ideias. Sabedores da idade do universo, fundamos a universidade na nossa pequena casa, nas paredes dos conjuntos habitacionais, nos quartos de despejo de Carolina de Jesus, e a estendemos para muitos lugares que desconheciam a luminosidade do saber compartilhado. Contaremos a nossa história. Interessam-nos os porquês dessa viva História.

Curiosos esses fios, que dizem muito sobre a vida indigesta de nossa sociedade superencarcerada em ilusões de democracia racial

15/10/2019 
 
 
Imagem: Carolina de Jesus.