Os anúncios de Guy Debord se colam com tremenda facilidade ao mundo contemporâneo. Sua leitura de mundo é extremamente pertinente e perspicaz. Nada, simplesmente nada, escapa às garras do espetáculo. Ele é o poder que nos quer visíveis, custe o que custar.
Esta semana entramos numa época de "alegrias para o povo brasileiro". Trata-se de mais um acontecimento esportivo: os jogos Pan-americanos.
Como em qualquer competição esportiva internacional, o digladiar entre os atletas parece representar a luta pela demarcação de fronteiras num conflito bélico: "Vence a equipe brasileira!!!"; "Para nossa alegria os argentinos foram derrotados!!!" Um patético sentimento de pertença a uma "nação", a um país, que gera uma repulsa aos demais. Somos brasileiros! Somos uma comunidade, uma nação, fundada no nosso próprio, no nosso sentimento de ser brasileiro.
Em pleno século XXI somos muito fundamentalmente marcados por um sentimento romântico, oitocentista. Aliás, é exatamente em momentos como estes - de jogos olímpicos, copa do mundo, enfim, competições desportivas de todo gênero - que o nervo estrutural de nossas frágeis e débeis concepções aparece: patéticos! somos patéticos! Cobertura 24 horas de todas as competições, quantos canais forem necessários para exibição de todos os jogos, enfim... o que se faz necessário para que possamos acompanhar nossos atletas, que suam suas camisas para defender o Brasil...
Na verdade vejo uma coisa extremamente significante nisso tudo. Uma mistura hi-tech fundamentalmente combustiva: a ideologia do Estado-nação oitocentista com a dissiminação das imagens típicas da sociedade do espetáculo. Em tempos de discursos sobre os "cidadãos do mundo", sobre a "aldeia global", assistimos (gozando) batalhas tribais televisionadas, nas quais os defensores de cada tribo - com suas vestimentas típicas - lutam pelo prestígio dos seus.Numa armação descomunal o espetáculo captura a ideologia romântica do Estado-nação e a transforma em mais uma encenação. Teatro que tem sempre o mesmo fim glorioso: a "ode" hino nacional, o içamento da bandeira e a distribuição de medalhas.
Aparentemente problemático ao espetáculo se torna qualquer elemento novo que venha a tumultuar a encenação. No caso dos jogos que acontecem no Rio de Janeiro o trágico evento que aconteceu no aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Não quero discutir nenhuma das supostas causas, dos problemas do caos da aviação civil brasileira, do "apagão aéreo" etc... Não, nada disso... Também não quero me colocar como o cretino que se julga superior a todos e a tudo, capaz de se julgar dono de uma sabedoria nietzscheana. Não, nada disso. Não sou um insensível idiota que despreza a dor do luto daqueles amigos e familiares das vítimas do acidente. Não. Também não quero me colocar na posição de um engajado intelectual militante de esquerda que, logo depois do acidente, já levanta a questão: "Neste acidente morreram tantas pessoas, mas este número não representa nem tantos porcento do número daqueles que morrem de fome em tal país africano." Não. Também não quero ser aquela metralhadora ambulante, que gira disparando contra todos, dizendo que no governo tem uma cambada de filhos da puta etc etc etc... Não. Não vou fazer um discurso posicionado contra as mídias, dizendo que estas exploram as imagens de dor e sofrimento dos parentes e amigos da vítimas. Não. Quero apenas tentar ver o que se passa.
À encenação que estava acontecendo no Rio um novo elemento se juntou, justamente o acidente com o avião da TAM. A transmissão ao vivo da tragédia interrompe a exibição dos jogos Pan-americanos. Porém, a indistinção do tratamento das imagens ("imagens, ora, são só imagens...") trouxe-me uma sensação desconfortável, incômoda, vertiginosa. Por vezes, o choro de atletas que acabaram de receber uma medalha; outras vezes o choro desesperado dos parentes das vítimas; por vezes, o brilho da medalha de ouro; outras vezes o brilho dourado das chamas do acidente; por vezes, o brilho prata de uma nova medalha; outras vezes, o prateado do saco em que os corpos daqueles que morreram no acidente eram colocados... Do grito organizado das torcidas, aos gritos angustiados dos que sofrem a dor de uma perda. Tudo isso como pura exposição, como puro espetáculo (aos desavisados lembro: não faço aqui nenhum tipo de chacota, nenhum tipo de piada de mau gosto com o sofrimento alheio).
Eis a sociedade espetacular, na qual a verdade é apenas um momento do falso. Vertiginosa é a sensação de se vagar neste lugar pleno de espectros. Somos espectros; fantasmas para quem a certeza simbólica se desfez completamente na pluralidade dos sentidos alegóricos. Aqui existem todos os sentidos possíveis e, exatamente por isso, não há mais sentido algum. Saída? Não há uma porta de saída, senão tentar apreender o próprio não-sentido. Não há mais a certeza de uma construção, mas apenas a apavorante visão de suas ruínas. Entretanto, é nelas que vivemos; elas são nós mesmos...
"Le spectacle se présente à la fois comme la société même, comme une partie de la société, et comme instrument d´unification. En tant que partie de la société, il est expressément le secteur qui concentre tout regard e toute conscience. Du fait même que ce secteur est séparé, il est le lieu du regard abusé et de la fausse conscience; et l´unification qu´il accomplit n´est rien d´autre qu´un langage officiel de la séparation généralisée."
"À mesure que la nécessité se trouve socialement rêvée, le rêve devient nécessaire. Le spectacle est le mauvais rêve de la société moderne enchaînée, qui n´exprime finalement que son désir de dormir. Le spectacle est le gardien de ce sommeil."
Um comentário:
Caro Khôra, seu texto me fez refletir um bocadinho sobre os dias e imagens atuais. É difícil NÃO fazer discursos posicionados sobre o que quer que seja. O seu texto, entretanto, é (quase) imparcial: parabéns!
Acabei, depois de ler vc e outros textos, por escrever também sobre o Pan, não com muita elegância, mas acho que serve para alimentar outras reflexões: se tiver tempo, dê um pulo lá - http://www.dedalus-atlas.blogspot.com/
Um abraço!
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