quinta-feira, 21 de junho de 2012

Ideia do despertar


a Italo Calvino
I.

Nargajuna viajava por todas as partes do reino de Andhra e, onde quer que parasse, ensinava àqueles que desejavam instruir-se com a doutrina da vacuidade. Acontecia, às vezes, que em meio aos discípulos e curiosos misturavam-se os adversários, e Nagarjuna devia então, ainda que a contragosto, refutar suas objeções e desmontar-lhes os argumentos. Dessas discussões nos átrios perfumados dos templos ou na balbúrdia dos mercados, restava-lhe certa amargura. A atormentar-lhe não eram, no entanto, as censuras dos monges ortodoxos que o chamavam de niilista e acusavam-no de destruir as quatro verdades (seu ensinamento -  se bem compreendido - não era nada mais que o sentido das quatro verdades). Nem mesmo o perturbavam as ironias dos solitários que, símiles a rinocerontes, cultivavam a iluminação apenas para si (não tinha sido e ainda não era ele mesmo um tal rinoceronte?). Afligiam-no mais os argumentos daqueles lógicos que não se apresentavam nem mesmo como adversários e que até declaravam professar a mesma doutrina que a sua. A diferença entre o ensinamento destes e o seu era tão sutil que, às vezes, ele mesmo não conseguia apreendê-la. E, no entanto, não se podia imaginar nada de mais distante. Porque era exatamente a mesma doutrina da vacuidade, mas tratada nos limites da representação. Eles se serviam da produção condicionada e do princípio de razão para mostrar a vacuidade de todas as coisas, mas não alcançavam o ponto em que também esses princípios mostravam a sua vacuidade. Mantinham, em suma, os argumentos dos princípios que mostravam o vazio de todos os argumentos! Desse modo, ensinavam o conhecimento sem o despertar, a verdade sem a sua invenção. 
Naqueles tempos, tal doutrina imperfeita havia penetrado também entre os seus discípulos. Nagarjuna remoía esses pensamentos enquanto viajava sobre um burro em direção do Vidarbha. O caminho estreito corria entre uma alta montanha cor-de-rosa e um prado imensurável, interrompido por pequenos lagos nos quais se espelhavam as nuvens. Também Candrakirti, o seu aluno mais estimado, tinha caído nesse erro. Mas como se podia refutá-lo sem recorrer a uma representação? Agarrado com os joelhos sobre sua cinza cavalgadura, com o olhar perdido entre as pedras e os musgos do caminho, Nagarjuna começou a esboçar mentalmente as Estâncias do caminho do meio:
"Aqueles que professam a verdade como uma doutrina, como uma representação da verdade. Aqueles tratam o vazio como uma coisa, fazem para si uma representação da vacuidade da representação. Mas a cognição da vacuidade da representação não é, por sua vez, uma representação: é, simplesmente, o fim da representação... Tu queres usar o vazio como um abrigo contra a dor: mas como poderia uma vacuidade abrigar-te? Se o vazio não permanece ele mesmo vazio, se lhe é atribuído o ser ou o não ser, isto e apenas isto é o niilismo: ter apreendido o próprio nada como uma presa, como um abrigo contra a vacuidade. Mas o sábio está na dor sem encontrar nela nenhum abrigo, nenhuma razão: está na vacuidade da dor. Por isso escreve, ó Candrakirti: aquele para quem também a vacuidade é uma opinião e até mesmo o irrepresentável uma representação, aquele para quem o indizível é uma coisa sem nome - com razão a este os Vitoriosos chamarão incurável. Ele é como um comprador demasiado ávido que ao vendedor que diz: 'não te darei nenhuma mercadoria', responde: 'dá-me ao menos a mercadoria chamada nenhuma'... Quem vê o absoluto nada mais vê do que a vacuidade do relativo. Mas precisamente essa é a prova mais difícil: se, a esta altura, não compreendes a natureza da vacuidade e continuas a fazer dela uma representação, então cais na heresia dos gramáticos e dos niilistas: és como um mago mordido pela serpente que não soube aprisionar. Se, ao contrário, pacientemente demoras na vacuidade da representação, se dela não te fazes nenhuma representação, então, ó beato, estás no caminho que chamamos do meio. O relativo vácuo não é mais relativo a um absoluto. A imagem vazia não é mais imagem de nada. A palavra é, pelo seu ser vã, perfeitamente plena. Essa trégua da representação é o despertar. Aquele que desperta sabe apenas que sonhou, sabe apenas a vacuidade da sua representação, sabe apenas sobre aquele que dorme. Mas o sonho, que agora lembra, não representa, não sonha mais nada."

II.

"Redeo de Perusio et de nocte profunda venio huc et est tempus hiemis lutosum et adeo frigidum, quod dondoli aquae frigidae congelatae fiunt ad extremitates tunicae et percutiunt super crura et sanguis emanat ex vulneribus talibus. Et totus in luto et frigore et glacie venio ad ostium, et postquam diu pulsavi et vocavi, venit frater et quaerit: Qui est? Ego respondeo: Frater Franciscus. Et ipse dicit: Vade, non est hora decens eundi; non intrabis. Et iterum insistenti respondeat: Vade; tu es unus simplex et idiota; admodo non venis nobis; nos sumus tot et tales, quod non indigemus te. Et ego iterum sto ad ostium et dico: Amore dei recolligatis me ista nocte. Et ille respondet: non faciam. Vade at loco cruciferorum et ibi pete. Dico tibi quod si patientiam habuero et non fuero motus, quod in hoc est vera laetitia et vera virtus et salus animae."
[Venho de Perugia, chego aqui na noite profunda, é inverno, está tudo enlameado e faz muito frio. Gotas de água fria, congelante, cobrem-me o hábito e castigam-me as pernas ao ponto emanar sangue das feridas. E cheio de lama, frio e gelo chego ao portão e, após bater e chamar, vem um irmão e pergunta: Quem é? Eu respondo: Irmão Francisco. E ele diz: Vai-te! Não é hora decente para vagar; não entras. Eu insisto, e ele volta a responder: Vai-te! Tu és um simplório e um idiota, e gente como tu não vem a nós. Somos em tantos e tais que não precisamos de ti. E eu, ainda diante do portão, insisto e digo: Por amor de Deus, acolha-me esta noite! E ele responde: não faço isso. Vai-te ao lugar dos cruzados e peça a eles! E digo então que se tu tiveres paciência e não perderes a calma, é aí que está a verdadeira alegria e verdadeira virtude e salvação da alma.]   
(Francisco não encontra abrigo no não-reconhecimento e em nenhum caso a ausência de identidade pode constituir uma nova identidade. Ele obstina-se, antes, em repetir: sou Francisco, abri! Aqui a representação não é transcendida por meio de uma outra e superior representação, mas somente por meio da sua exibição, do seu aprofundamento. Como limiar, o nome insignificante - a subjetividade pura - está contido no edifício da alegria).

Giorgio Agamben. Idea del risveglio. In.: Idea della Prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. pp. 119-123. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Caravaggio. São Francisco meditando. 1606. Galleria Nazionale d'Arte Antica, Rome.

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