O despertar é o lapso do sonho da vida. O vagar das imagens em negativo, de Antanas Sutkus - são mais de um milhão de negativos que o fotógrafo mantém em seu acervo e que aos poucos vem revelando -, expande sonho em meio ao turbilhão do despertar traumático da experiência soviética. As fotografias que se revelam, anos após terem sido tiradas, são os impossíveis de outrora que, inesquecíveis no olhar fotográfico de Sutkus, surgem como puncta que tocam os olhares que a eles se dirigem. As máquinas de refrigerante, os rostos em meio a caminhos repletos das folhas outonais, as mulheres e crianças de olhares tristes. É o sonho vívido da vida que, após o vagar inadvertido pelas décadas da oficialidade das poses e retratos, torna-se, por ínfimos instantes (o do olhar de quem se depara com tais imagens), um lapso de memória e, portanto, para lembrar Picabia, a forma da vida. Dos sonhos imaginados em que estamos imersos surgem imagens do despertar. A moça que lança seu olhar à rua, debruçando-se como uma gárgula desde o alto de um edifício, rompe a imobilidade eterna das feias figuras das igrejas e, como um despertar, exibe a beleza em movimento da memória. Sartre caminha no deserto - o apogeu do existencialismo: e como não lembrar da praia em que Camus coloca seu estrangeiro parado, olhando para o mar e para o sol? - acompanhado apenas pela sombra de Beauvoir (e talvez seja uma das melhores imagens de Sartre). As duas crianças que de dentro de uma espécie de tambor (o mesmo que se transforma em embarcação para um menino em outra imagem) deixam seus sorrisos sonoros ecoarem pelos tempos em que permaneceram negativas. O gesto da criança que se afaga e se apega na então gigantesca mão de um adulto, como que a lembrar que qualquer mitologia de segurança é estraçalhada pelo mais singelo gesto infantil. As fotografias de Sutkus são apenas imagens que irrompem a crosta de uma historiografia oficial e lançam uma sombra de seus presentes revelados em seus passados negativos. Como pontiagudas lâminas, cortam o sonho e apenas remontam uma possível história da vida.
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
Imagens de Antanas Sutkus
O despertar é o lapso do sonho da vida. O vagar das imagens em negativo, de Antanas Sutkus - são mais de um milhão de negativos que o fotógrafo mantém em seu acervo e que aos poucos vem revelando -, expande sonho em meio ao turbilhão do despertar traumático da experiência soviética. As fotografias que se revelam, anos após terem sido tiradas, são os impossíveis de outrora que, inesquecíveis no olhar fotográfico de Sutkus, surgem como puncta que tocam os olhares que a eles se dirigem. As máquinas de refrigerante, os rostos em meio a caminhos repletos das folhas outonais, as mulheres e crianças de olhares tristes. É o sonho vívido da vida que, após o vagar inadvertido pelas décadas da oficialidade das poses e retratos, torna-se, por ínfimos instantes (o do olhar de quem se depara com tais imagens), um lapso de memória e, portanto, para lembrar Picabia, a forma da vida. Dos sonhos imaginados em que estamos imersos surgem imagens do despertar. A moça que lança seu olhar à rua, debruçando-se como uma gárgula desde o alto de um edifício, rompe a imobilidade eterna das feias figuras das igrejas e, como um despertar, exibe a beleza em movimento da memória. Sartre caminha no deserto - o apogeu do existencialismo: e como não lembrar da praia em que Camus coloca seu estrangeiro parado, olhando para o mar e para o sol? - acompanhado apenas pela sombra de Beauvoir (e talvez seja uma das melhores imagens de Sartre). As duas crianças que de dentro de uma espécie de tambor (o mesmo que se transforma em embarcação para um menino em outra imagem) deixam seus sorrisos sonoros ecoarem pelos tempos em que permaneceram negativas. O gesto da criança que se afaga e se apega na então gigantesca mão de um adulto, como que a lembrar que qualquer mitologia de segurança é estraçalhada pelo mais singelo gesto infantil. As fotografias de Sutkus são apenas imagens que irrompem a crosta de uma historiografia oficial e lançam uma sombra de seus presentes revelados em seus passados negativos. Como pontiagudas lâminas, cortam o sonho e apenas remontam uma possível história da vida.
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