sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Carta ainda impossível


Para minha destinatária impossível.

Querida, queria lhe falar sobre o abandono. Pois é, pode parecer uma coisa fatídica, ou pernóstica ou até mesmo banal - para não dizer um lugar comum, como talvez quereria você -, mas não falar seria algo, como esta carta, da ordem da impossibilidade. Não sei como a ideia me ocorreu; talvez do correr os olhos pelas flores amarelas das sibipirunas, tão negramente esmagadas no piche horrendo desta horrenda cidade; talvez ao ouvir a senhorinha que ao meu lado passava, também ela olhando para as flores, e dizia: "que lindo, tudo amarelo!"; ou talvez pensando que as flores caídas eram o sinal que as árvores me davam sobre o abandono que é a vida - deixavam a beleza do instante primaveril pela tentativa de lograr a subsistência da espécie. Mas talvez os porquês não sejam tão importantes, porque talvez eles mesmos, os porquês, não sejam nada além de um apegamento, de uma tentativa inóspita de apreender a eternidade do instante numa eternidade contínua (mais uma vez algo da ordem do impossível), esquecendo de esquecer, esquecendo que tudo é abandono. Abandonar, querida, também era um jeito convencional de expulsão de alguns da ordem social: colocados para fora, sem bando, sem laço social, sem possibilidades de conversar, sem possibilidades de fazer-se em comum. É, querida, veja como não é nada metafórica a relação do abandonado com a impossibilidade da nossa conversa. Se bem que por vezes penso que as suas cartas apenas não chegam até mim, que elas estão a correr o mundo de mãos em mãos (por aqueles olhos fascinados dos leitores vorazes de cartas alheias) antes de chegar a mim, talvez tarde demais. Mas talvez esse meu pensamento também não seja mais do que flores amarelas esmagadas no negrume do asfalto desta horrenda cidade.

Do seu remetente impossível.

p.s.: Iria deixar-lhe um beijo, porém, acabei me lembrando de que não há nada pior do que um beijo abandonado...

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