terça-feira, 5 de junho de 2012

Dinheiro




"Algumas das melhores cabeças já começaram a ajustar-se a essas coisas. Sua característica é uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total fidelidade a esse século. Pouco importa se é o poeta Bert Brecht afirmando que o comunismo não é a repartição mais justa da riqueza, mas da pobreza, ou se é o precursor da moderna arquitetura, Adolf Loos, afirmando: "Só escrevo para pessoas dotadas de uma sensibilidade moderna.. Não escrevo para os nostálgicos da Renascença ou do Rococó". Tanto um pintor complexo como Paul Klee quanto um arquiteto programático como Loos rejeitam a imagem do homem tradicional, solene, nobre, adornado com todas as oferendas do passado, para dirigir-se ao contemporâneo nu, deitado como um recém-nascido nas fraldas sujas de nossa época. " W.B. Experiência e pobreza




Ao Tiqqun 
Ao Vin 
Ao Marechal
À Suellen Muniz  Coelho, esteja onde estiver.


Uma das primeiras menções ao dinheiro na história da filosofia pode ser encontrada na Ética a Nicômaco, no capítulo quinto do livro V, quando Aristóteles apresenta sua clássica definição do dinheiro como "nomisma", convenção humana (parte dos "nomoi"), uma invenção. O dinheiro seria apenas uma representação da necessidade e, portanto, o mediador universal (já antecipando o chiste marxista do dinheiro como o "alcoviteiro universal", o "senhor das distâncias"). 


"O dinheiro é como a medida que torna todas as coisas comensuráveis" (EN 1133 b17). Em Aristóteles já está antevisto o paradoxo do capital: o risco de que, com a mediação do dinheiro, tudo possa se tornar fungível, comensurável. Antevista também a circularidade deste paradoxo: para o macedônio, a fungibilidade de tudo seria uma espécie de risco inevitável na finalidade do atendimento das necessidades, estando estas atreladas às trocas, e estas só podendo ser viabilizadas pelo artifício do dinheiro. (Não há aqui qualquer tipo de nostalgia pelas relações de escambo típicas das culturas iletradas do período arcaico; Aristóteles é, ao lado de Antifonte, o grande filósofo da cidade grega). 


A necessidade, em Aristóteles, será o princípio substancial de regulação das trocas econômicas. Boa parte do  livro V trata da busca por um critério de justiça apto a guiar estas relações.  

Troquemos o termo necessidade por "valor de uso" e a dimensão arbitrária e cultural do dinheiro por "valor de troca" e já temos praticamente expostos, em um texto do séc. IV a. C., os conceitos básicos que guiarão a análise e simultânea crítica da economia política no séc. XIX. 

Desde Aristóteles sabemos que o dinheiro, como insígnia arbitrária da necessidade, não tem um valor intrínseco, é apenas um meio disposto para um fim. Ajustemos as coordenadas históricas e facilmente podemos afirmar, com ou sem Marx, que o problema da circulação está diretamente associado ao âmbito da produção: ao campo da necessidade e da utilidade (termo não usado por Aristóteles, pois só no mundo moderno adentrará na esfera econômica). 


A mais-valia do séc. XIX analisada por Marx ou as sucessivas crises econômicas dos séculos XX e XXI apresentam-se sempre como um "gap" entre estes dois domínios, isto é, o dinheiro (ou a mercadoria) passando a adquirir uma sutileza metafísica, teológica, um lastro sagrado expresso na quase total independência das condições de produção, o que poderia significar, em Marx, exploração da força de trabalho, e, para além desta, no mundo contemporâneo, uma desrealização enquanto tal.       

"Quase" total independência: este "quase" é o nó górdio. Pois, em última instância, o dinheiro nada mais é que o outro da necessidade (e da utilidade). Por mais que os especuladores e investidores lidem com "nomismas" fantasmáticos e sem lastro produtivo, em última instância, volto a repetir, é apenas a produção que dá o suporte de realidade às prestigitações mágicas das bolsas e bancos, o novo poder absolutista de origem divina sobre a terra. 

A especulação não deve, em nenhum momento, se tornar a regra do jogo, sob pena de todo o sistema ruir como um imenso castelo de cartas. Esta é a boutade dos capitalistas sensatos que os kamikases do mercado ousaram descumprir.  


Ninguém sobrevive apenas com brioches e chanel n. 5.  

"Crise", portanto, é apenas uma das condições indispensáveis de manutenção do desajuste estrutural entre valor de troca e valor de uso no interior do capitalismo. E a mecanização e destruição radical do mundo natural pela nova indústria agrícola, a proliferação de bugigangas, a guerra ou exploração maciça do novo proletariado pós-industrial são subterfúgios brutais e excessivos para dar o devido suporte produtivo à alucinante fetichização e autonomização do dinheiro observadas no presente. Mais do que nunca, tudo se tornou comensurável, intercambiável. E descartável. 

(A questão revolucionária: qual a guilhotina apta a cortar a cabeça do soberano mercado financeiro? Quando os ricos e senhores do mundo acumulam suas fortunas, acumulam também o valor do trabalho bruto, ou seja, mais valia... Concentram para suas miseráveis mesquinharias domésticas a condição e meio de realização das necessidades básicas de muitos. A metafísica do valor de troca autônomo tem como contraface o pesadelo concreto da catástrofe e da pilhagem. Isto se torna mais drástico nos tempos de desertificação da terra e hecatombes climáticas). 


Resta-nos, no interior da vulgar loucura institucionalizada, viver com a mais irrestrita e dolorosa lucidez. Me permito falar com Alejandra Pizarnik, citada por Fernando Robles (Federico Luppi), o terno professor do filme argentino "Lugares Comunes": 

"Uno sabe pero se olvida de que sabe, esta es la manera de convivir con la lucidez. Pero la cosa se complica cuando uno no puede olvidar. El despertar de la lucidez puede no suceder nunca, pero cuando llega, si llega, no hay modo de evitarlo; y cuando llega se queda para siempre. Cuando se percibe el absurdo, el sinsentido de la vida, se percibe también que no hay metas y que no hay progreso. Se entiende, aunque no se quiera aceptar, que la vida nace con la muerte adosada, que la vida y la muerte no son consecutivas sino simultáneas e inseparables. Si uno puede conservar la cordura y cumplir con normas y rutinas en las que no cree, es porque la lucidez nos hace ver que la vida es tan banal que no se puede vivir como una tragedia.

Es un don y un castigo, está todo en la palabra: lúcido viene de Lucifer, el arcángel rebelde, el demonio; pero también se llama Lucifer el lucero del alba, la primera estrella, la más brillante, la última en apagarse. Lúcido viene de Lucifer y Lucifer viene de luz y de ferous, que quiere decir “el que tiene luz”, el que trae la luz que permite la visión interior, el bien y el mal, todo junto; el placer y el dolor. La lucidez es dolor. El único placer que uno puede conocer, el único que se parecerá remotamente a la alegría, será el placer de ser consciente de la propia lucidez: el silencio de la comprensión, el silencio del mero estar. En esto se van los años, en esto se fue la bella alegría animal. 

El lúcido puede seguir viviendo mientras conserve el instinto de la especie, el impulso vital. Es muy posible que, con los años, esa fuerza oscura e instintiva se pierda. Es necesario entonces apelar a algo parecido a la fe; hay que inventarse un motivo, una meta que nos permita reemplazar el impulso animal perdido por una voluntad fríamente racional. Pero esa voluntad es muy difícil de mantener. De repente, sin motivo, se va, se apaga, desaparece. Es entonces cuando se sigue o no se sigue, se puede o no se puede. Y si no se puede no hay culpa. No importa el amor de los otros ni el amor que uno siente por ellos: si uno no sigue, todo sigue sin uno y sigue igual. Todo pasa, pasa la ausencia. Se conoce la muerte antes de morir, es un final antiguo, un final muy común, es un final deseado que se espera sin temor porque uno lo ha vivido ya muchas veces. Todo da igual."

É chegado o momento de mostrar os irredutíveis. De mostrar que não existem metas e não existem progressos, de que o futuro, tão capturado na "pistis" do crédito bancário e do desejo de estabilidade asseptizada de inseguranças e imprevistos, é uma quimera hipócrita que traz apenas a letargia, o tédio ou o desespero. 


E de que há, mesmo que hoje frágil, doente e escandalizada, uma dimensão de gratuidade infinita na vida, que não se submete nem aos critérios da necessidade nem da utilidade. 


Não se submete tampouco ao niilismo in-útil e inessencial do valor de troca autofágico financeirizado, contra o qual sabemos, desde Marx, só resta a Gewalt da revolução (que já foi perdida).  
  
É chegado o momento de lucidamente chamar o valor de troca mercantil por seu devido nome próprio: nada. 


É chegado o momento de parar de pagar dízimo aos bancos. 


É chegado o momento de abolir a coorporativização do cotidiano. 


É preciso também afrontar o pseudo-esquerdismo hipster, que faz de uma suposta postura transgressora um meio de "se dar bem" (e conseguir um bom posto de trabalho).


Não leve a sério seu emprego, sua rotina de pagador de contas. Apenas Kant, Marx, Nietzsche, Borges, Guimarães Rosa, Pizarnik, Lima Barreto e outros tantos precisam, muito, serem levados a sério.     


A revolução foi perdida, mas não desistamos. Mesmo calados, não desistamos. 


Em face à miséria reinante, um voto profano e bárbaro de pobreza. 

Às margens do Rio Sumaré aterrado, na Paulicéia Desvairada. 

Imagem: Banksy, Palestina - 2005. 
       

3 comentários:

Anônimo disse...

Jon! Gratíssimo pela dedicatória!!!
Kairós!!!
Abraço!
V.

Marlon disse...

Baita.

Elvira (Teacher) disse...

Inteligente... como vc!
Meu abrç.