Em 1954 e 1955 Murilo Mendes, então em missão cultural na Bélgica e na Holanda, escreveu Siciliana, logo após ter ido para a ilha a passeio. Em 1957 o poeta muda-se definitivamente para a Itália, onde seria professor de cultura brasileira até o fim da vida. No livro de poemas dedicado à Sicília, 13 poemas no total, Murilo percorre e canta em versos várias das belezas da ilha. Do templo de Segesta a Cefalù, de Palermo a Agrigento, Murilo parece querer mostrar um tempo, contagiado de reminiscências e porvires, que era por ele sentido nos confins da ilha, esta que de dominação em dominação moldou sua face singular na trinácria que a representa.
Quando em Taormina, ele se dá conta de que sente uma saudade profunda de algo, de um algo enigmático, o qual talvez não seja nomeado porque encontrar-se-ia numa zona limítrofe entre a beleza e a morte. Por isso faz a Taormina um canto elegíaco, falando de um azul (e talvez a pureza da cor seja a "coisa" de que sente saudade, uma coisa impossível) que desce dos céus e sobe do mar para transpor todos os limites, toda a memória (no seu jogo enigmático de esquecimento e lembrança). "Ao horizonte da mão ter o Etna / Considerado das ruínas do teatro grego, / Descansa." No jogo que acabo de me colocar, também eu revejo agora as ruínas do teatro, os jardins, o mar, porém, faltam-me o azul e o Etna. O tempo estava nublado e qualquer perspectiva anil do mar, do céu, ou qualquer lampejo do monstro de lava era-me interdito. Seriam tais condições visuais já o prenúncio de futuras confusões de imagens e obscurecimentos? Não sei, talvez...
E talvez é pela visão que a imagem da Sicília tenha surgido há pouco. Ainda hoje, enquanto colocava minhas lentes de contato, observei no reflexo de meu antebraço direito no espelho uma cicatriz, exatamente em seu centro, entre a mão e o cotovelo. E foi por causa dessa cicatriz que reli Siciliana, e foi também por ela que refiz itinerários, e pensei em Arquimedes, e olhei agora há pouco para o céu, e comecei a deitar este texto cansado por meio destes meus dedos cansados. Há poucas horas de sair de Siracusa para Taormina, não tomando em conta as simples invenções ali criadas por Arquimedes há milênios, as alavancas (no caso, o jogo de rodas que facilitava a condução de minha mala), acabei por esbarrar em um vaso logo na saída do hotel. Lembro-me que só fui me dar conta de que tinha sofrido o tal corte - hoje a cicatriz que me faz girar a memória - tempos depois, já perto de Catanea.
Curiosa essa explosão (que nada tem de original... Proust já contou suas experiências com as Madeleines há tempos) da memória. Porém, interessante foi pra mim, ao observar a cicatriz do braço, procurar justamente o poema de Murilo que falava de Siracusa, Eco em Siracusa. O poema, que fecha o livro, pareceu-me como que uma exortação para reflexões. Eco, eis a palavra que fecha o poema e, portanto, o livro. E para mim todo o jogo com o som que Murilo quis deixar no seu poema (pensando nas cavernas oblongas, como ele diz), sua tentativa de tocar o mundo com a voz, era uma armadilha que tanto o mineiro quanto eu acabáramos de cair (mas, claro, caímos sabendo que estávamos caindo). No eco, que é forte, que se mantém "mais vivo do que / o Augúrio original", está a falcatrua da mesma voz que toca o mundo. Eco, ecco, é tão somente a indicação de presença, é o que constitui uma presença, uma indicação de algo que aqui está, um eis aqui, enquanto é também o sinal de algo que já não está (tudo a depender do ouvido...).
E disso tudo, desse tramado de recordações e esquecimentos, restou apenas uma timpanização excessiva que jogava com minhas lembranças, com minhas imagens, e, sem piedade, soava a condenação de toda inocência. E como que a coroar esse jogo, que parecia sem fim, estava a cena bíblica, talvez uma das mais representadas de todos os seus livros, em que a voz de Pilatos desdobrava-se num eco (aos meus próprios pensamentos de hoje) de condenação da inocência: "Eis o homem", Ecce homo. Como o messias que era apresentado, também a Sicília que hoje eu indicava para mim mesmo era um eco de desejos distantes, era um eco abafado, uma reverberação que já mal podia ouvir mas que, no entanto, com seu sussurro dizia-me "Ecco qua la tua vita".
Imagem: Caravaggio. Ecce homo. Galleria di Palazzo Bianco, Genova. 1605.
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