quinta-feira, 7 de julho de 2011

Outra carta



Para minha destinatária impossível.

Até pensei em não mais lhe escrever, mas parece que havia algo mais no som das árvores ao vento do que simples devaneios meus. Acho que era outra carta, outros sussurros, outros encantos. No último mês escrevi um romance água com açúcar, daqueles que você detesta. Até pensei que poderia lhe agradar, mas desisti de enviá-lo no último momento, na fila do correio. Era uma longa fila, cheia de rostos estranhos, de cheiros desagradáveis. Mas num momento, olhei para aquela japonesa e lembrei-me da Lady Wakasa, dos Contos da lua vaga do Mizoguchi (que você provavelmente não viu). Inevitavelmente aquele rosto causou-me calafrios. Ela, a japonesa da fila, era como um signo da lua vaga. O espectro Lady Wakasa, no entanto, só podia ser, em mim, a imagem sua, destinatária impossível. No mesmo momento em que vi aquele rosto luminoso, mas que trazia sombras ao meu mundo (acho que era isso no filme também: Lady Wakasa sempre radiante e pálida, como se dela pudesse quase que emanar luz; tolo Genjuro... era morte que daquele corpo emanava), olhei para meu dorso em busca das frases em sânscrito que me salvariam daquela imagem. Nada! Nada! Estava condenado, querida! Condenado a não saber o que fazer do livro que lhe enviaria, das imagens que agora podia ver, do calafrio causado por aquela pálida senhora japonesa. Aliás, em mim não sentia uma disposição como a de Genjuro, não pensava em lhe comprar quimonos, em presentear-lhe com belas joias, em ficar contigo na sua mansão inexistente. Para mim a vida era guerra (e como não me lembrar da dedicatória que o Oswald tinha feito no exemplar de Serafim Ponte Grande dado a Murilo Mendes: "Para o camarada Murilo Mendes. Saúde e Guerra!") e talvez este fosse meu lado Tobei. Mas, mesmo assim, também não era tolo o suficiente para acreditar nas poses de um samurai feito por falcatruas. Não, não roubei nenhuma cabeça para lhe dar, querida. Nem para você, nem para ninguém. Queria era guerrear sozinho, queria acordar e ver que a mansão tinha sido queimada na guerra que você não quis ver. Ah, mas por que achei que deveria lhe escrever essas imagens de Mizoguchi? Por que se nem ao menos o livro água com açúcar consegui lhe mandar? Talvez seja por isso que mais uma vez só consigo sentir sua impossibildidade; talvez seja a distância de sonhos trocados em escambo; talvez sejam reverberações do excesso de vinho... saí do correio com o pacote em mãos e, tão logo avistei um latão de lixo, joguei-o. Gesto simples, mas que me entorpeceu, que me fez entrar em alguma coisa como um tédio profundo, algo parecido com aquilo que ao ser analisado por um filósofo alemão (de quem talvez você não goste muito), deixou-o como que suspenso entre seu gosto por Rilke e seu desejo por um pensamento autêntico. É, nem uma cotovia poderia ver o aberto. Mas o que se abria pra mim, querida, era uma vontade nova. Queria sim lhe contar sobre um mundo novo (um mundo, não um ambiente), sobre uma vida vivida e outra não vivida, sobre imagens que me fizeram chorar e outras que me fizeram rir, sobre o fluxo e o refluxo do tempo... enfim, era um desejo palpitante, mas que, talvez, só numa carta conseguiria lhe contar. Porém, a guerra me chama, a saúde crepita, e não me resta senão seu endereço impossível.
Do seu remetente impossível.

p.s.: Mando-lhe flores... uma pena, mas elas devem chegar já sem perfume.

Nenhum comentário: