segunda-feira, 25 de julho de 2011

Notas sobre um quadro


Há dias que não escrevo. Não tive visões, não tive empenhos. Eram apenas algumas sensações confusas, um estranho estranhamento de si, uma bagunça de sentimentos. Mas hoje vi um simples meneio de cabeça acompanhado de um sorriso de satisfação que me tocaram de algum modo. Era um pintor que observava os frutos de uma árvore que estava a pintar. Tentava de todas as maneiras apreender uma luz da manhã que, segundo ele, era a mais bela do dia para aquela árvore específica, um marmeleiro. Meio atordoado pela certeza com que o pintor dizia ser aquela luz a mais própria para sua pintura, pus-me a pensar sobre a relação que ali estava estabelecida: um pintor, todo o preparo do terreno onde ele se colocava para pintar, a variante luz, a árvore com seus frutos e folhas que quotidianamente mudam de cores e formas e nosso diálogo a respeito de como víamos o tal marmeleiro.
Pensar a respeito disso era meio que me botar - eu, um terceiro diante das relações ali fundadas, uma vez que não seria eu a pintar - em xeque. Mesmo sendo pelo pintor chamado para ter sua visão diante da árvore (colocara-me exatamente no ponto em que ele se fixava diariamente para pintar, de modo que eu tivesse a mesma visão que ele), não conseguia entrever qualquer tipo de relação entre as cores que usava e as sensações que eu tinha. Claro, as consciências não se comunicam, e eu sabia que isso era empecilho para qualquer possibilidade de compreensão das sensações que o pintor tinha. Porém, a insistência com a qual ele tentava me mostrar e explicar suas visões tocou-me e fez como que um movimento para que eu tentasse novamente escrever.
Curioso como nossas tentativas de ver a mesma coisa sempre é fadada ao dissenso. Não que o pintor insistisse nisso ou naquilo como se houvesse uma razão em jogo, nada disso. A conversa era amigável e sabíamos desde o início que jamais entraríamos em acordo. Aí é que estava o meu ponto e as minhas angústias que voltaram para que eu escrevesse: como viver num mundo em que o que importa é o consenso? Toda a fundamentação do Estado contemporâneo é permeada pela ideia de consenso; parece que até mesmo para se fazer amizades ou amar é preciso, antes de mais nada, o consenso. A ficção de que vemos a mesma coisa é hoje imperativo, é como se o olhar de diferença fosse a priori condenado a outros espaços (diriam alguns entusiastas do consenso que há sim lugar para o diferente, porém, que é um lugar reservado pelo consenso - o que, traduzindo, seria como: "sim, a vocês sobrou um espaço para viver, mas saibam que não entre nós"). Diria ainda que o engenho dos consensuais está em, sob o signo da universalidade ("claro estamos em consenso"), propor relações que sejam autênticas, posto que dialogadas e tramadas num pacto.
Ora, além do ato de fé dos consensuais (pois uma vez estabelecido o consenso - o com-sentido, poderíamos dizer - a vida seria uma série litúrgica: como fazer para respeitar o próximo? como fazer para não infringir os direitos? etc. etc.) é preciso lembrar que sua crença na limpidez e tecnicidade da linguagem - como se nos fosse possível tomar a linguagem como algo que simplesmente é um adendo ao bicho homem - é talvez o maior dos atos metafísicos que ainda imperam neste mundo (crêem numa vida autêntica). Há no consenso, diferentemente também do que aqueles que o criticam afirmam, a tentativa de formação não de uma paróquia (que no grego paroikein significa permanecer provisoriamente num lugar como estrangeiro, ainda que a igreja tenha se apropriado do termo para nomear suas sedes regionais) mas de uma katoikein, de uma permanência definitiva (uma residência, uma cidadania) no mundo, como se a formulação de regras e acordos de convivências com base na comunicação - nessa linguagem tecnicizada tomada por um homem cujas características seriam a de um anjo - fosse suficiente para a criação de um mundo em comum e, pior de tudo, infinito.
Dissentimos as coisas, dissentimos o tempo, dissentimos a vida. Não há como imaginar um conviver sem separação (erro em que incorremos o tempo todo). Com-sentir só se pode a partir do hífen, do que liga e separa. É-nos interdita uma demora eterna no mundo (ainda que as ficções tecnicistas de hoje queiram pensar em algo como uma eternidade na vida), pois somos seres-para-a-morte. Aliás, na nossa tradição judaico-cristã, dissentimos já de deus, o que nos custou a saída do paraíso (o espaço onde não há tempo nem morte: o lugar do consenso) e a entrada no tempo histórico, onde só podemos dissentir na provisoriedade da nossa existência mortal. Um diálogo definitivo que estabelece instituições infinitas, que protege a vida, que dá condições de convivência para os homens é tão somente um mito, uma crença numa bondade intrínseca do homem, uma esperança (talvez até numa salvação...) de viver no paraíso. Mas talvez seja hora de uma conversa infinita que nada funda, que sequer pretende fundar algo, na qual estamos lançados e condenados a permanecer (como estrangeiros) para além das concordâncias e consensos (esses mitos do eterno), mas, justamente, no dissenso transitório da nossa existência.
Voltei os olhos para meu amigo pintor e disse-lhe que jamais conseguiria pintar o quadro como eu gostaria que fosse pintado, mesmo que eu lhe explicasse exatamente como o queria. E foi aí que ele meneou a cabeça, sorriu e me disse: "neste momento, meu caro, nem você nem eu conseguiríamos pintar o que estará em alguns dias pintado".

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