segunda-feira, 18 de abril de 2011

Das imundícies ou acerca de vários tempos



A Pier Paolo.

Nascido entre as fezes e a urina, o bicho homem corre a vida a vomitá-la. Ainda na minha última noite naquela cama, o vômito me escorria pelo corpo, pegajoso. A arte do encontro botou-me em desencontro... vida, vida, vida... o nojo escancarado pelas viscosidades não foi capaz de me fazer deitar em paz. Volto os olhos, reviro as colchas, entranho-me no mais alvo lençol com o gozo esfacelado; e as quinquilharias da paixão ainda perpassam o gosto de fel do meu vômito. Era dia de ano, de meus anos, de voltas ao mundo, de cruzar oceanos, de sentir que para o espaço do nascimento (de onde veio o natimorto que era eu) as fezes se apresentavam como ameaça quente e fétida e que a urina seria posta no cantil para matar a sede nos trajetos por fazer. Como é difícil sentir um discurso vil e virulento brotar sob a luz da lua. Nefastas horas de um nascimento cujo projétil expelido fora eu. Horas insanas no leito cheio de óleos, unguentos e vômito. Este clarão da lua, tão cheia, ora me traz sorrisos, ora lágrimas... e cheio de vida, desesperada vitalidade, ainda ouço Pier Paolo com sua voz aguda a me dizer que non c'è disegno del carnefice che non sia suggerito dallo sguardo della vittima. E a vítima sou eu, e o carrasco sou eu, e o desenho é meu. E o olhar daqueles olhos inquietos enfiava-me espinhos enquanto eu vomitava, enquanto o tempo suspendia-se em vão, enquanto a aparente tranquilidade de uma noite de anos deixava-me cair no caminhão de lixo da vida, em meio a fezes e urina. Mas também me lembro de que foi do meio da immondezza que Otelo perguntou para Iago o que eram aquelas coisas que viam:
"Iiiih, o que são aquelas coisas?
São... são... as nuvens...
E o quê são as nuvens?
Boh!
Como são belas! Como são belas!"
Do meio da sujeira, mas talvez pela primeira vez fora de tetos artificiais, canto também meus tempos que se cruzam e que não se balizam em ponteiros: é-me possível também ver a beleza, pura e obscura beleza de uma vida despedaçada. Vejo as nuvens a se metamorfosear, vejo o finito e o infinito fundirem-se, escuto vozes loquazes a me dizer não-ditos... é o silêncio assustador dos espasmos de um dia de imundícies, o qual pode ter por fim minha figura ensanguentada, numa praia vazia nos arredores de Roma...

imagem: Peter Marlow. Lombardia, 2004.

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