quinta-feira, 21 de abril de 2011

Um sonho


No lugar da rosa havia na roseira uma flor negra que só podia estar murcha... E diante dessa imagem, Tomás, o que me restava? Eu senti longos pelos crescerem-me nas orelhas e a sensação de terror batia-me à face. Estava espaventado, ferido, tocado profundamente pela sensação de morte que representavam aqueles pelos. Imaginei a queda do homem, imaginei a cena da expulsão do paraíso e, ao contrário do que poderia suceder a um homem assustado, dei um sorriso (um puro paradoxo). Era um sorriso mudo mas ao mesmo tempo verborrágico para quem me conhecia, ainda que nenhum dos que me acompanhavam me conhecia. Uma agonia me incitava. Eram os pelos que continuavam a crescer - como um castigo divino pelo meu sorriso nefasto diante da queda; ainda assim não desistia da risada, como se a vida pudesse apenas me dar um sorriso como recompensa pelos movimentos do meu corpo.
Pus-me, naquele instante, a pensar que também os padres da igreja por muito tempo se perguntaram se os pelos continuariam a crescer depois da ressurreição (e talvez daí tenha me vindo a ideia do castigo). Eram discussões infinitas sobre as possibilidades do corpo que, após a queda, retorna ao paraíso: será preciso a alimentação? O que será do aparelho reprodutor? Como haverá de ser nosso corpo glorioso? Tantas eram as questões debatidas pelos teólogos que eu, um ex-religioso convicto, não mais consegui segurar-me perante o castigo que me era infligido. Ria como uma criança que vê uma palhaçada. No mesmo ato, na gargalhada infantil, abaixei-me aproximando o rosto da roseira e, ao suspirar profundamente, tentei aspirar algum perfume daquela flor negra e murcha. Era ali, naquele organismo negligenciado pela beleza, que talvez pudesse novamente elevar-me para além das pressões que a morte estava tentando me colocar.
Engraçado como no instante mesmo em que o podre, o nefasto, o ignominioso parecem ser os horizontes últimos da existência ainda é possível olhar e sentir para além da imundície: é possível rir (ao modo de Diógenes)! Lembrei-me novamente da cena na qual Otelo e Iago - bonecos de teatro -, jogados em meio aos detritos de um aterro sanitário, conseguem enxergar a beleza de algo que, não sabendo o que é, sabem apenas nomear: as nuvens. O que era a coisa nuvem eles não sabiam, mas aquela coisa nuvem era bela, muito bela. Talvez pudessem eles ter olhado também para si próprios e perceber que, ainda que tivessem sido atirados fora da cena (um ato obsceno) como lixo, lixo não eram. Havia ali, naqueles bonecos falantes, a possibilidade de admirar formas mutantes que se mostravam como alvas fontes de beleza. O que são as nuvens? Sei lá... Ah, como são belas...
Mas o que eram aqueles pelos cretinos que cresciam nas minhas orelhas? O que era aquela flor negra e murcha que via ao acompanhar o trajeto do obscuro Tomás? O que era a coisa-lixo na qual parecia ter se transformado meu corpo? O que era aquele toque que a morte havia deixado no meu lábio? O que eram todos esses sinais senão os índices de uma existência ob-scena, isto é, tirada da cena? Tal como os bonecos de Pier Paolo, também eu estou em um aterro e não me resta outra ação senão admirar as mutações da vida. Sim, não há mais agilidade, incorruptibilidade e impassibilidade (estes os atributos do corpo glorioso), mas tão somente um corpo que se dá, uma exterioridade cujos enlaces com outros corpos são o pathos da existência. Como pensar no Senhor que me castiga? Não há agonia que mereça ser sentida diante daquilo que não há:
"Aquilo, que se não é, não existe
Ou se existe, então se esconde
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas"
A velha Hilda talvez tenha razão... de nada adiantam poemas e narrativas a buscar um algo sem nome, não adiantam palavras para fazer calar aquela flor negra que nada fala e, ao nada falar, tudo me faz falar. Sorrio, porque a queda não tem nada de mais; sorrio porque talvez queira apenas olhar para o corpo (o meu e o do outro) como o que ele dá a ser: uma aparência que pode ser dita ou não, que pode ser tocada ou não, que pode ser vivida ou não... só uma imagem, como a deste sonho que, talvez, tenha se alongado demais...

Imagem: Rene Burri. China. Beijing. 1964. "Former Summer Palace. Dead lotus flowers on the Kunming Lake."

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