terça-feira, 5 de abril de 2011

Malditos, gozosos e devotos


Num dia em que começaram certos ventos do sul, em que me peguei a vagar com a cabeça tonta e cheia de dedos, em que soltei suspiros antigos de outros pulmões, deparei-me com os "Poemas Malditos, Gozosos e Devotos" de Hilda Hilst. Como uma centopeia negra caminha em curvas, perdida em meio a tantos pés, perdi meu tempo num outro tempo. Fui absorvido, nefastamente absorvido por aqueles cantos ao Nada, por aqueles cantos a Deus. E talvez a epígrafe de Simone Weil - "Pensar deus é apenas uma certa maneira de pensar o mundo" - pudesse me dar tanto a pensar, pudesse me dar um mundo a pensar. Mas é com os poemas que o meu pensar se esvai em silêncio e talvez me imobilize numa experiência da linguagem, numa experiência do abismo de deus.
A experiência da leitura de Hilst é algo como o aprofundar-se no silêncio da linguagem pretendido pelos monges sírios da tardo-antiguidade. Como nesta passagem de "João, o solitário", que viveu aproximadamente entre a segunda metade do século V e o começo do século VI:
"Silêncio é Deus, e no silêncio é cantado a Deus o cântico que é digno dele. Não digo no silêncio da língua. Se alguém se cala com a língua não sabendo cantar na mente e no espírito, este, no seu silêncio, é ocioso e maus pensamentos vêm até ele pois se cala exteriormente, mas não sabe cantar interiormente, uma vez que não foi ainda dissolvida a língua do homem escondido porque balbucia. Como de fato observas aquele infante interior, espiritual, porque como é firme a língua do jovenzinho que não conhece ainda palavra, e a sua língua somente está dentro da boca, não tendo o movimento da palavra, assim também a língua interna à mente será muda de toda palavra e de toda consideração e somente estará e será pronta para aprender o balbucio do discurso espiritual."
Os poemas malditos de Hilst, no entanto, não se encaixam em modelos de procura de um deus dado desde sempre, de um ser divino apaziguador. Como alerta a nota de Alcir Pécora, "nos poemas deste livro, em particular, Deus não é senão dúvida, dor e ameaça do vazio. Na hipótese menos negativa, a ideia de Deus toma a forma de um 'mistério' no qual as parcas respostas que se pode obter pendem sempre de sinais difíceis, escondidos, que comumente apenas manifestam a insubstancialidade ou a insuficiência essencial da matéria divina face ao desejo humano. [...] os poemas hilstianos em busca do divino estão sempre a um fio de tocar o vazio."
O silêncio da linguagem que Hilst nos proporciona, diferentemente do ideário transcendente da vida futura apregoada pelos monges, é quase um toque na ferida do Real - um toque no vazio -, um sentir-se mudo (uma descida ao abismo de Sigé) sem mais balbucios senão aqueles que expõem o poema como tal, que, derramando sangue, colocam-nos frente a frente com nossa condição de falantes de uma língua que é um puro sem-sentido diante do enigma da existência e sua nomeação; na distância entre o sem-nome divino (ou do nome vazio do divino) e o nome abjeto do homem, a "Poeira".
Deixo a palavra com Hilda:

XVIII
Se some, tem cuidado.
Se não some é fardo.
Cuida que ele não suma

Pois ficará mais pesado
Se sumir de tua alma.

É de uma Ideia de Deus que te falo.
Pesa mais se ausente
Pesa menos se te toma

Ainda que descontente
Te vejas pensando sempre
Num alguém que está aí dentro
De quem não conheces rosto
Nem gosto nem pensamento.

Cuida que tal ideia
Te tome. Melhor um cheio de dentro
Que não conheces, um fartar-se
De um nada conhecimento

Do que um vazio de luto
Umas cascas sem os frutos
Pele sem corpo, ou ossos
Sem matéria que os sustente.

Toma contento
Se te sabes pesado
Dessa ideia de Nada.
É um pensar para sempre.

E não sentes verdade
Que a vida vale em extenso
Altura e profundidade
Se vives do pensamento?

XIX
Teus passos somem
Onde começam as armadilhas.
Curvo-me sobre a treva que me espia.

Ninguém ali. Nem humanos, nem feras.
De escuro e terra tua moradia?

Pegadas finas
Feitas a fogo e a espinho.
Teu passo queima se me aproximo.

Então me deito sobre as roseiras.
Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.

XX
Move-te. Desperta.
Há homens à tua procura.
Há uma mulher, que sou eu.
A Terra mora na Via-Láctea
Eu moro à beira de estradas
Não sou pequena nem alta.

Sou muito pálida
Porque muito caminhei
Nas escurezas, no vício
De perseguir uns falares
Teus indícios.

Move-te. Tua aliança com os homens
Teu atar-se comigo
Tem muito de quebra e dessemelhança.
Muitos de nós agonizam.
A Terra toda. Há de ser quase
Brinquedo adivinhares
Onde reside o pó, onde reside o medo.

Não te demores.
Eu tenho nome: Poeira.

Move-te se te queres vivo.

XXI

Não te machuque a minha ausência, meu Deus,
Quando eu não mais estiver na Terra
Onde agora canto amor e heresia
Outros hão de ferir e amar
Teu coração e corpo. Tuas bifrontes
Valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez

Não temas.
Meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens:
Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. Pela poeira que fui
Serei, e sou agora. Pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos.
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira

Sorri, meu Deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo-d'água
Rondando o ego. Sorri. Te amei sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.

Hilda Hilst. Poemas Malditos, Gozosos e Devotos. São Paulo: Globo, 2001. pp. 55-63.

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