quarta-feira, 13 de abril de 2011

O banho e o fosso



Ao tomar banho, hoje cedo, escutei pelo fosso das janelas dos banheiros do condomínio uma senhora conversando com um senhor. Provavelmente era um casal de companheiros já idosos. Ela estava conduzindo-o à ducha, tal como um prático guia um navio no momento de atracar no porto: "Segure ali... não, não, ali... tu consegues... isso, isso, devagar, devagar...". Ela, com o timbre vocálico já gasto pelo tempo, dava todas as coordenadas para o senhor. Ele, quase mudo, apenas resmungava algumas palavras: "A água tá muito forte... tá fria...", ao que ela respondia: "Já, já esquenta...".
Fiquei pensando no meu dia que começava com a reverberação desse diálogo quase finito - sim, notei que talvez pudesse ser esse o único tipo de diálogo que o casal tratava de ter no que aparentemente - sonoramente - mostrava-se como o limite da existência. A finitude dava para mim as caras logo nos primeiros lances do jogo do dia. Lembrei-me de outros começos que já marcam o fim; lembrei-me dos batistérios de San Giovanni e do Neoniano, onde, octogonalmente começavam as vidas dos cristãos. Sete mais um: essa era a ideia dessas construções; ou, Tempo (7) mais Deus (1), finito mais infinito. Era o jogo das anedotas bíblicas que lançavam suas malícias no meu dia: "Setenta vezes sete...", "Ouve, ó, Israel, o Senhor teu Deus é único" (e as imagens dos batismos... talvez o primeiro banho pensado como meio de lavar a morte, de limpar as barreiras da finitude). Começavam as coisas, mas o diálogo do fosso lembrava-me de que elas também terminam. E como não pensar na condição da partilha? Era o quê eu ouvia, uma partilha, uma divisão de experiências de vida, ou tão somente o abraço final de vidas despedaçadas? Não seria tal abraço também uma partilha da vida? Não, não estou sendo sarcástico; tampouco procuro uma seriedade - das máscaras do mundo dos homens sérios, no qual o pensamento sobre os velhinhos teria aquele grau consciencioso, auto-complacente, de que um dia estaremos também nós nas suas posições e que, por isso, devemos já começar a nos envelhecer -, mas talvez procure uma maturidade, aquela sobre a qual Nietzsche fala que é a capacidade de "reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar."
Quando criança o banho era, quando não mal-vindo, mais uma chance de ser sério na mais pura brincadeira. Talvez também para o casal de idosos a vida poderia ser medida por um banho: na infância o gozo dos jogos de espuma, as brigas com jatos d'água etc., quando adultos os jogos eróticos, o banho a dois, as diversões sexuais... e agora, próximos ao fim, o nada aprazível jogo de coordenadas voltado à sustentação do corpo que já não tem mais forças. É, o jogo da vida talvez não nos deixe mais do que essa coleção de cenários, coleção de jogos... e talvez sejam eles - os jogos nos quais dia a dia podemos nos meter - a nossa própria condição de existência.
Voltam-me as elucubrações do banho, do dito banho de inscrição na vida eterna. Como lavar a morte? A construção dos octógonos batismais era também um jogo de contrários, pois as pias onde eram mergulhados os fiéis representavam também uma pira de fogo, o fogo do espírito que deveria descer para marcar a fronte daquele que então poderia suprimir de si a finitude. (Pia e Pira, apenas um "r"... queria entender o "r": que som é esse que remete à volta? Que som é esse que reverte, reflete, que faz as coisas virarem-se contra si mesmas?)
Pensei agora no templo do fogo em Baku, onde Zoroastro, olhando para o fogo, pensou na criação, na luz e na sombra, e talvez tenha influenciado, mesmo que eu não o saiba, toda a minha breve reflexão matinal. Aliás, talvez os octógonos sejam em alguma medida os simulacros do templo do fogo de Baku; aliás, por que tantos encontros com esses banhos do passado e não com os fossos do passado? Era de fossos na terra (dos gases do petróleo, o qual seria a degradação e esterilização do Arzebaijão no período soviético) que Zoroastro via sair o fogo. Mas é no contraste entre fogo e a água, o espírito e o corpo banhado, entre a vida e a morte (da pulsão mais viril da tenra idade aos dolorosos passos da senilidade) que talvez posso encontrar-me.
Talvez o batismo como símbolo seja isto: não apagar o fogo com a água, mas incendiar-se na água com o fogo. Porém, como fazer isso independentemente dos octógonos? Como não querer somar sete mais um, mas tentar ser o sete mais um independentemente da promessa dos octógonos? Como abraçar o finito e o infinito e, ao mesmo tempo, saber das condições que nos são impostas pela conversa que vem do fosso? Qual o meu jogo e qual o meu banho?
Penso no meu dia que começa com um banho e não sinto nenhum vento do espírito (é o primeiro banho, mas não quer lavar a morte), não escuto nenhuma promessa para além do banho - e para além da vida -, só um tilintar de vozes débeis a me alertar sobre a minha condição: jogue, meu amigo, jogue... mas lembre-se de jogar com a seriedade de uma criança...

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