quarta-feira, 6 de abril de 2011

Gerações, Civilizações


Jean-Luc Nancy
A relação entre as gerações não é de diferença ou de oposição, mas de síncope. O que a juventude atual sabe de um passado feito de rupturas é que ela não as viveu todas; ela partilha desse modo com as outras idades da vida o sentimento de que nossa civilização agora está mais suspensa do que solidificada, de que ela exige não mais se satisfazer com sua herança, mas se transformar na urgência.
As gerações não se sucedem sempre como nas narrações bíblicas e não se resumem sempre à fórmula: “X gera Y que gera Z”. Elas não são sempre simples engendramentos, elas nem sempre são, portanto, gerações. Como em toda genética, aliás, produzem-se mutações, saltos, recombinações. É o que chamamos de história: o que faz evento, perturbação, síncope na sucessão das gerações.
É possível dizer que a “geração” que tem hoje por volta de vinte anos foi engendrada e, sobretudo, cresceu em condições que fizeram dela uma geração mais em ruptura de sucessão do que a precedente. Basta-nos relembrar algumas datas entre 1989 (o muro), 2001 (as torres) e 2008 (a bolha), ou ainda lembrar que esse período viu a produção de transformações como a que assinala a expansão do estranho sintagma “recursos humanos”, ao mesmo tempo que se decompunham aceleradamente as esquerdas políticas europeias, em que se recompunham apressadamente todas as espécies de religiosidades ou de mitologias identitárias e em que cresciam exponencialmente as distâncias de meios tanto entre as pessoas quanto entre as empresas e as coletividades nacionais ou outras.
A geração dos vinte anos de hoje (como por certo também os jovens que a seguem) decididamente não pode se situar como uma “geração” religada à sua proveniência e abertura sobre a eclosão de sua nova identidade. Algo foi-lhe sem dúvidas removido da possibilidade de se experienciar como “geração”, ou ela só o pode fazer numa relação que não é mais exatamente “de gerações”. Não são mais os pais nem os avós que formam os marcos sobre os quais podem ter acesso à sua vida e à sua idade próprias. É de uma mutação do mundo que se trata.
O período do qual eu falo sem dúvidas formou o último momento de uma curva iniciada em meados de 68 (e cujos eventos de então foram os sinais potentes e mal compreendidos): essa curva desenhava uma mudança decisiva e irreversível daquilo que até aí sempre tinha sido inscrito – de geração em geração desde há muito tempo – sob os signos maiores de uma história mais ou menos dotada de sentido e, em todo caso, de futuro, de esperança num progresso tanto social e humano – leia-se moral! – quanto técnico (este último favorecendo o primeiro) e, de maneira geral, do projeto indubitavelmente já perturbado mas que ainda consistia numa emancipação da humanidade.
Podemos sem dúvidas dizer de uma maneira muito simples: desde mais ou menos a metade do século XIX, e a despeito das revelações esmagadoras que foram as duas guerras mundiais, cada geração podia pensar que iria fazer melhor do que a precedente. Todos podiam pensar que ela saberia tirar as lições das derrotas levando adiante os sucessos. Já 68 soube perceber uma outra expectativa, uma outra exigência: a de uma ruptura. É por isso que 68 não foi revolucionária: a revolução é a ruptura na fundação na retomada inauguradora, isto é, criadora de um tempo novo. Depois de 68, mas muito mais sensível e massivamente depois de 1989, entramos na ruptura suspensiva: suspensão de progresso, suspensão de confiança, suspensão do próprio sentido que poderia ter “uma nova geração”.
Talvez poderíamos dizer que a partir desse momento as gerações não se sabiam nem se sentiam “geradas” mas muito mais depositadas, abandonadas, ou ainda largadas à beira de uma estrada que ela mesma interditará não muito adiante, ou irá se perder numa região confusa privada de estradas, pistas, sinais.
Segue-se, ao menos, que esse saber e esse sentimento não são apanágios dos “jovens”. Nós também o compartilhamos, não importa nossa geração, desde que sejamos sensíveis a essas fraturas profundas, a esses tremores ou a esse mal-estar que não podemos nomear de forma diversa de como o fez Freud há oitenta anos – isto é, também, quatro vezes vinte anos. Podemos hoje ter 80 anos e conhecer um desenvolvimento, uma perplexidade ou um deslumbramento que não devem nada à velhice (a qual, aliás, já vem de longa data) nem, consequentemente, à bastante conhecida laudatio temporis acti, mas totalmente à percepção de uma ruptura e de uma espécie de abandono da história do mundo, dos homens e da natureza.
Sem dúvida, hoje não podemos nem mesmo – a não ser que sejamos estúpidos ou sonâmbulos – termos nostalgia de um tempo passado porque o passado não se mostra mais como o tempo de uma geração, no sentido ativo de um engendramento, o qual certamente pode ser seguido de vicissitudes, mas que ainda assim se abre para uma nova vida capaz de recomeços (reengendramentos). O passado se mostra muito mais como, ao mesmo tempo, muito passado – muito longe, muito distante de nós – e como muito pouco passado – muito próximo de nós. Muito longe, como é longe todo o peso das expectativas e dos chamados que puderam trazer as palavras “comunismo”, “socialismo”, “humanismo”; muito perto, como nos toca a rede inextricável de restrições técnicas e de contradições morais que herdamos de nossas invenções eletro-atômico-biológicas. Muito longe, como se estenderam a “razão” e a “ciência” nas suas glórias conquistadoras; muito perto, como essas mesmas “razão” e “ciência” se colocaram diante de nós de maneira desajeitada e emaranhada, na suspensão do futuro. Muito longe, como é o sentido grego de “democracia”; muito perto, como é o sentido moderno e incerto da mesma palavra.
Em 1936, Husserl publicava seu Krisis – “a crise das ciências europeias”. O que para ele era crise, isto é, ao mesmo tempo fase aguda da doença e momento propício para a intervenção terapêutica, não é mais crise para nós, mas estado contínuo, instalado, do que dificilmente pode ser distinguido como “patologia” de uma condição supostamente saudável ou normal.
Na verdade, trata-se de algo diferente de uma crise e mesmo de algo diverso de um fenômeno de geração. Entramos numa mutação da civilização comparável àquela que fez aparecer o mundo mediterrâneo dos Fenícios seguido pelos Gregos, ou àquela que fez desaparecer, quinze séculos mais tarde, esse mesmo mundo em favor do que iria tornar-se o nosso.
Em escala similar, as gerações apenas têm o mesmo sentido na proximidade de seus engendramentos e encadeamentos. É a história mesma que não se encadeia mais. Produziu-se uma disjunção do curso mais ou menos contínuo que acreditamos poder lhe atribuir, desde quando podemos pensar ou acreditamos poder fazê-lo em termos de sucessão, de passagem ou mesmo de transformação, isto é, de revolução (que ainda é uma transmissão). Não estamos mais numa duração da transmissão, da transferência – da tradição no seu valor ativo – mas numa síncope da metamorfose. É o tempo da civilização que se encontra out of joint, como disse Hamlet.
Sem dúvida Shakespeare é a testemunha de uma consciência de ruptura, de interrupção ruinosa – Hamlet ou Lear estão entre essas figuras notáveis – e que nos proporciona pensar que o sentimento da fratura do tempo e da ordenação do mundo é recorrente no mundo moderno, constitutivo talvez do “moderno” enquanto tal. Constitutivo já do mundo grego alexandrino, depois romano cristão. Um apocalipse está sempre suspenso sobre o Ocidente. Hoje, pela primeira vez, esse sentimento não é mais aquele de um Ocidente mais ou menos obscuramente apoiado ou inscrito num resto do mundo mais vasto, um oceano que marca uma grande distância das terrae incognitae, um céu que perde suas esferas de cristal mas que ainda está repleto de marcos brilhantes. Nosso sentimento é o de somente estar no meio de nada mais que um vazio intersideral. Que essa representação possa ainda ser seguida por uma nova maneira de “fazer mundo”, de atravessar o vazio com um sentido novo, não é impossível: mas também não é “possível”, no sentido em que vemos um início, um esboço. E isso, para o momento, parece que não nos dá condições para fazer surgir, por assim dizer, de nossa disjunção, uma forma que, como a de Shakespeare, tem a potência de um mundo em si. Podemos objetar que esse mundo de Shakespeare – o de Cervantes e também o de Montaigne – é que é para nós admissível de ser apreendido como tal e que não podemos saber quais formas nem quais forças nascem ao nosso redor, em nós e, talvez, por nós, não obstante nós...
Em todo caso, no tempo da disjunção, se não é justo pensar em termos de geração, de idades e, portanto, também de “declínio” ou de “renovação” (de “decadência” ou de “renascimento”, de “degeneração” ou de “regeneração” – todas estas valorações que supõem uma medida, um valor de referência), não está, por isso, excluído falar de velhice e de juventude. Não no sentido das idades da vida, mas no sentido daquilo que se fecha ou que se abre.
É suficiente distinguir dois sentidos dessa dupla “jovem/velho”? Não é certo. Por que a juventude teria o apanágio da abertura? Por que a velhice teria o do fechamento? A velhice é também a que vê mais longe, tanto para trás quanto à frente, e isso pode abri-la. Velhice pode querer dizer “expansão” e juventude “precipitação” – ou mesmo a segunda pode ser “germinação”, enquanto a primeira “descolamento”.
O que quer que seja, não importa a qual geração a nossa idade civil nos faça pertencer hoje, e que sejamos “velhos” ou “jovens”, podemos nos fechar ou nos abrir. Não a um futuro como o que procede de um engendramento, mas a uma “vinda” como aquilo que surge do desconhecido e enquanto desconhecido. Para um acontecimento. Ser jovem hoje é estar disposto a um acontecimento: a um imprevisível que não vai encadear, que não vai nem nos suceder nem herdar de nós, nem mesmo nos repudiar e nos destituir, mas que simplesmente vem de um completo outro lugar, intacto. É nossa responsabilidade saber aí nos dispor, aí nos expor.
Post-Scriptum
Perguntamo-nos qual a relação que podemos manter hoje com os termos “mal-estar” e “crise” que dão os marcos de uma consciência dos anos 1930 que o pós-guerra pensou poder esquecer na nova dinâmica de uma civilização ferida, mas em vias de cura. De início, seria preciso esclarecer que esses termos foram, até certo ponto, prudentes em relação a um termo como “declínio” (Splengler) e a outros do mesmo veio (degeneração, decadência) que os chamava, eles, à regenerações, à revivescências ou à restaurações pensadas sobre o apocalipse iminente. Reconhecemos um pano de fundo fascista. Em relação ao declínio, face ao qual podemos somente ceder ou reagir, no sentido mais corrente da “reação”, o mal-estar ou a crise deixam aberto ou indeterminado o prognóstico. Além disso, os sentimentos de Freud e de Husserl diferem muito: o primeiro não se despoja de um pessimismo ao mesmo tempo livre de qualquer “reação”, o segundo, ao contrário, coloca a análise da “crise” a serviço de uma confiança renovada naquilo – a razão europeia – que atravessa a crise. Assim, poderíamos dizer que para Freud a sucessão de gerações permanece muito mais indiferente (“é preciso esperar”, diz ele...), enquanto para Husserl, a despeito do ceticismo a que a crise obriga, a humanidade não deveria deixar de religar o fio da história aberta com o logos.
Nem uma nem outra dessas atitudes pode ser inteiramente a nossa. Nem a de esperar sobre o fundo de desencanto, nem a vontade que se separa forçosamente da dúvida. Estamos numa espécie de situação na qual devemos pensar de modo diverso, não em termos que pressupõem seu contrário perdido ou deteriorado: o contentamento oposto ao mal-estar, a energia vivente oposta à crise. O que temos que fazer é algo de outra ordem, mais do que uma perturbação. Há desaparição do dado. Aos nossos olhos, a natureza e a história, o “homem” mesmo e seu “mundo” esfacelam-se sem que nos seja permitido qualificar esse fenômeno como mal-estar ou crise, como infelicidade ou declínio. Trata-se muito mais daquilo que acima designei com o termo “mutação”. Muitas vezes já me aconteceu utilizá-lo. Uma mutação é uma transformação que não se deixa qualificar como boa ou má. Ela se subtrai também à inscrição num processo contínuo. As mutações genéticas surgem no continuum de um genoma. Algumas delas são letais, outras produzem novas possibilidades de vida.
Podemos falar também de mudança [mue[1]]. Na mudança da crisálida ou naquela da voz do adolescente há simultaneamente manutenção de uma identidade e metamorfose de sua manifestação. A mudança é um fenômeno privilegiado para pensar a coincidência de uma continuidade e de uma ruptura, aí pensando, ao mesmo tempo, a solidariedade da coisa em si e da manifestação. A coisa em si, aqui, é “nós”, ou a humanidade, ou o mundo – natureza e história: muitos nomes que traem a impossibilidade de dizer o que é essa coisa. Kant disse-a abrindo o tempo presente: não respondemos a questão “o que é o homem?”. Podemos repetir sua afirmação na resposta: o homem é um mutante. O mundo na sua totalidade é mutante, mutação e mudança. A manifestação – larva ou borboleta, voz fraca ou voz timbrada – revela outra coisa que a coisa mesma, uma outra verdade, nem melhor nem pior. Estamos em mudança, deixamos uma pele, uma voz, sem ainda ver nem entender aquelas que a metamorfose engendra.

[1] Termo técnico utilizado para troca das plumas nas aves, para a passagem do estado larval ao adulto em determinados insetos e para a mudança da voz na adolescência. Em português existe “muda de voz”, porém, para o fluir do texto, preferi traduzir como “mudança”.
Tradução para o português de Vinícius Nicastro Honesko. O original francês encontra-se na revista Vacarme n.47, da primavera de 2009, cujo endereço eletrônico é o que segue: http://www.vacarme.org/article1761.html
Imagem: Robert Capa. Pablo Picasso e seu filho em 1948.

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