sexta-feira, 22 de abril de 2011

Gêmeos II



Para A. e J.

Quando da minha gestação, meu bisavô, um espanhol magrinho e teimoso, vivia dizendo: "Ahora sí, serán gemelos!" Ele, que tinha um irmão gêmeo recém falecido à época do meu nascimento, sempre contava com a possibilidade de os netos ou netas (já que os filhos não o fizeram) terem filhos gêmeos. Era uma espera ansiosa, pois dos seus oito filhos e vinte e dois netos nenhum havia feito filhos gêmeos. Talvez o velho Aleixo sonhasse a possibilidade de ver dois bebês nascerem juntos, deitarem juntos, crescerem juntos. Talvez as experiências solidárias e traumáticas da sua existência a dois (e são tantas as histórias das quais ainda hoje me lembro) pudessem alimentar esse desejo de ver irromper à luz uma nova dupla proveniente de seu sangue.
Os seus constantes "ahora sí" no transcorrer da minha gestação foram como últimos suspiros de uma existência que, em busca de vida nova, saiu de Logroño e cruzou o Atlântico até aportar em Terra Brazilis. Digo últimos suspiros pois vinte e poucos dias antes de eu nascer o velho Aleixo se cansou de esperar por novos gêmeos e partiu à não-existência, talvez para se juntar a Julian. Acho que ele sempre suspeitou de que mais uma vez seu desejo de ver uma dupla brotar de sua cepa seria frustrado pelos acasos da vida. Dias depois, em meio a uma festa de dia dos pais, nasci, sozinho (e imagino que para minha avó, que acabara de perder seu pai, a minha irrupção possa ter sido um momento de alegria na tristeza; uma pontinha de finito no infinito que é a tristeza). Nasci, portanto, de um desejo partilhado pelos meus pais, mas na sequência de um desejo recém apagado.
Antes de mim o ventre de minha mãe já tinha sido habitado por um irmão e, depois de mim, um outro irmão também por lá passou, mas em nenhuma das vezes tal ventre foi co-habitado. Aliás, até hoje a cepa do velho Aleixo não conseguiu produzir dois seres de uma só vez. Seus filhos, os filhos de seus filhos, os filhos dos filhos de seus filhos... nada, nenhum par de gêmeos. Mas o que talvez me marque e me faça pensar nessa história toda seja o fato de que eu era o último desejado; eu fui a última esperança do riojano (é certo que a comunidade de La Rioja ganhou seu estatuto de autonomia apenas um ano depois da morte de Aleixo). E como é curiosa a trajetória de desejos que se cruzam: uns na ascensão outros na decadência, ou ambos em ascensão, ou ambos em decadência... Talvez tenha sido pensando nessas confluências de desejos que Spinoza falou de encontros que compõem e que decompõem (e foi na carta de uma gêmea que pela primeira vez li essa citação do filósofo). E talvez toda a minha história, desde o meu pré-natal, tenha sido um vagar constante desse desejo que se acabou (mas que com certeza me tocou, como certamente concordaria comigo Sloterdjik) pouco antes de eu ver a luz; eu que era então, com dias de antecedência, a frutificação do outro desejo, aquele de meus pais.
Hoje, olhando para o mar, pensei muito sobre como a vida nos prega peças e de como o desejo é apenas uma fagulha. Pensei muito na distância que essa fagulha é capaz de impulsionar um homem a percorrer; pensei no mar e no infinito de tempo e espaço que ele representava para pobres imigrantes que saiam de uma terra em frangalhos para o absolutamente desconhecido. O desejo também tem dessas: é capaz de nos lançar no completamente ignorado. Em meio a tantas reflexões sobre o desejo lembrei também da Espanha. Não cheguei a conhecer La Rioja (dela conheço apenas alguns muito bons vinhos), pois, para mim, no período que estava por lá, era muito mais forte a ligação com a Andaluzia (ah, o Sr. Aleixo era atento para a beleza das andaluzas e, recém chegado no Brasil, casou-se com uma dessas descendentes mais recentes dos mouros; e, talvez, aqui esteja a origem destes meus cabelos encaracolados...). Porém, vagando em lembranças pela Espanha, recordei-me de que tinha visto no Prado um quadro de Navarrete El Mudo. Tratava-se de uma obra com traços típicos do renascimento veneziano e que pouco me chamou a atenção. No entanto, ao ler sobre El Mudo, um dado me atraiu: vi que ele, assim como meu bisavô, também era de Logroño; li que sob as ordens de Felipe II o tal pintor produziu pinturas para a Basilica de San Lorenzo de El Escorial (e, claro, pensei em outro pecado que cometi: não conhecer El Escorial).
Curiosidades são curiosidades, mas acabei me recordando (e a cadeia de lembranças é que nos dá certas histórias que são pura imaginação) do belo texto sobre El Escorial que Murilo Mendes escreveu em "Espaço Espanhol". Para o poeta mineiro todo o complexo da construção representa uma "idéia infinita dentro da área do finito". Tudo o que eu queria "ouvir" neste momento! Claro, talvez porque hoje nada mais represente para mim a ideia do infinito do que a fragilidade e potência dos desejos: fagulhas finitas que promovem viagens infinitas; vidas que mudam para sempre (e o eterno do sempre é sempre o mutável por excelência: tudo o que é eterno é apenas o movimento... e nada mais belo do que o movimento dos desejos). À área do finito, que é o complexo do El Escorial ("um paralelogramo de 161 e 207 metros de lado, respectivamente. Tem 2000 janelas, 1200 portas, 86 escadas, 13 capelas, 88 fontes, 16 pátios"), Ortega y Gasset não conseguia atribuir um motivo para a construção, já que São Lourenço - a quem é dedicado todo o complexo - nunca teria intervindo na história espanhola (acho que ele não entendeu que tudo aquilo pudesse ser apenas fruto de um desejo do rei). O filósofo, entretanto, lembrava que Felipe II tinha ganhado uma batalha justamente no dia do santo (São Lourenço teria sido grelhado e decapitado por ordem do imperador Valeriano por volta do ano 258 na península itálica) e que somente por isso tinha mandado construir o mosteiro em homenagem ao santo.
Ora, na tradição católica São Lourenço - considerado padroeiro dos cozinheiros - é comemorado um dia depois da data do meu nascimento; mais uma dessas curiosidades que permearam toda essa minha quête espanhola. Meu bisavô não viu seus gêmeos e meu padroeiro (digo que sou dado à cozinha) chegou um dia atrasado. Talvez os encontros e desencontros possam ser algo que me marca, que me toca a fundo a existência, ainda que a tais curiosidades não me entrego. Mas não nego que nos quase trinta anos que me separam da minha entrada neste mundo sombras e luzes desses desejos pré-natais parecem ter me acompanhado: todo o desejo de Felipe II, de Murilo, de Aleixo, de meus pais... acabam por se cruzar, de uma forma ou de outra, nas minhas perspectivas... não nego que talvez sejam apenas desvarios; mas, sim, tenho desejo por eles...

2 comentários:

Fernando Honesko disse...

Sensacional.
Mais uma fagulha finita lançada que gera infinitude!

Tia Sandra disse...

Amei demais, apesar de que em certos momentos não pude acompanhar sua linha de raciocínio. Mas, vc já conhece que somos assim mesmo haha
beijinhos