domingo, 24 de abril de 2011

Pesach



Um domingo que não passa e mais uma dessas ironias da vida. Justamente no domingo da passagem a vida parece ter fincado estacas fora do tempo. Sem o ciclo das horas, a angústia tripudia o movimento dos ponteiros deixando a impressão de que a vida passa - esta, sim, a única passagem - e de que em certa medida pareço perdido no ritmo da permanência e da desfiguração dos lugares. Perde-se; não sei o quê se perde, não sei como, mas a sensação é de um espaço aberto. Mas talvez, como na velha história em que o mar Vermelho se abre à passagem, seja essa abertura - uma espécie de não estar presente no próprio presente - um caminho. Aliás, é esse o movimento próprio à passagem.
Na primitiva festa judaica, os cordeiros sacrificados, cujo sangue aspergido sobre as portas era sinal para que o anjo exterminador não sacrificasse o primogênito da casa, eram o mote para se evitar uma passagem mortal. A passagem aberta através do mar Vermelho foi também um movimento de fuga da morte. A re-simbolização cristã da passagem com o Agnus Dei messias foi uma tentativa de encontrar um outro corpo além da morte. Na passagem, portanto, a cultura judaico-cristã procurou a saída da finitude do tempo, uma saída para o eterno. E são, todas as saídas, desvios melancólicos do olhar; são formas de lamentos pelo inexorável que é a perda (aquele "não sei o quê" que a todo instante parece nos fazer querer parar a vida).
Mas pensando em outra passagem, aliás, nas passagens de Paris, lembro-me de Walter Benjamin. O que ele via nas passagens parisienses não era uma saída. Para Benjamin, refletir sobre elementos arquitetônicos passados (as passagens, então, eram já resquícios do capitalismo incipiente do século XIX em pleno entre-guerras, quando as vanguardas artísticas francesas pulsavam a ruptura com a tradição a todo instante) não era uma simples evocação da perda do passado. Pelo contrário, meditar sobre o passado foi para ele o ponto fundamental para tentar encontrar o agora em que um novo sentido poderia se construir. Aliás, é só com a perda (não diriam os psicanalistas que o objeto é sempre impossível?), com o vazio, com a passagem aberta é que podemos criar uma vida nova, criar a possibilidade de relação - de repente, de partilhar a vida (e se amizade é isso, talvez seja ela realmente um importante ponto para podermos pensar a política). E é aqui que penso mais uma vez na plenitude e na totalidade eterna: nada daí nos vem. E este jogo em que pareço ter me metido hoje soa como um engodo, uma suposição pascal permeada pelas imagens de plenitude dos últimos dias (supermercados lotados de gente e mercadoria - o chocolate é o novo sangue que se asperge sobre as portas das casas, mas, desta vez, não para para se evitar o extermínio, mas para celebrá-lo).
Passagem, passagens... Talvez aquelas de Paris que inspiraram Walter Benjamin, talvez estas que, parece, sentimos no tempo, talvez a lança a perfurar as costelas do messias na cruz. E o domingo que não passa, e a vida que parece continuar estacada. Passar, passagens e passados: o tempo, o vetor da história, a imaginação combalida pela solidão pascal (uma solidão de passagem). Talvez seja uma questão de reconciliação com o passado para uma nova passagem. E das Passagens me vem algumas palavras do caro Benjamin nesta, como todas as outras, não pouco confusa pesach: "A humanidade deve despedir-se de seu passado reconciliada - e uma forma de reconciliação é a alegria."

imagem: William Blake. The Descent of Christ. 1804-2o. Yale Center of british art, New Haven.

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