domingo, 10 de abril de 2011

Esquecer


(...) Mas nas menores como nas maiores felicidades é sempre o mesmo aquilo que faz da felicidade felicidade: o poder esquecer ou, dito mais eruditamente, a faculdade de, enquanto dura a felicidade, sentir a-historicamente. Quem não se instala no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem não é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa de vitória, sem vertigem e medo, nunca saberá o que é felicidade e, pior ainda, nunca fará algo que torne os outros felizes. Pensem o exemplo extremo, um homem que não possuísse a força de esquecer, que estivesse condenado a ver por toda parte um vir-a-ser: tal homem não acredita mais em seu próprio ser, não acredita mais em si, vê tudo desmanchar-se em pontos móveis e se perde nesse rio do vir-a-ser: finalmente, como bom discípulo de Heráclito, mal ousará levantar o dedo. Todo agir requer esquecimento: assim como a vida de tudo o que é orgânico requer não somente luz, mas também escuro. Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante àquele que se forçasse a abster-se de dormir, ou ao animal que tivesse de sobreviver apenas da ruminação e ruminação sempre repetida. Portanto: é possível viver quase sem lembrança, e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver. Ou para explicar-me ainda mais simplesmente sobre o meu tema: há um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente chega a sofrer dano e por fim se arruína, seja ele um homem ou um povo ou uma civilização.


Friedrich Nietzsche. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. (Considerações extemporâneas - II). In: Obras Incompletas (trad. Rubens R. Torres Freire). São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 58.

3 comentários:

Anônimo disse...

Há um simples viver na vida inesquecível? Inesquecer é uma categoria do esquecimento, não? Não é uma lembrança, mas o acompanhamento do esquecido com a gente (talvez uma categoria psicanalítica? talvez significantes que não nos abandonam? talvez o entorpecimento advindo do vinho de fim de domingo? Não sei...). Acho que as fantasias do sempre vir-a-ser (vendidas a quilo em qualquer pocilga no nosso tempo) é meio que o mote dos tempos da "pseudo-abertura" para o mundo. Lembro do Jesi, leitor atentíssimo de Nietzsche: "O que importa, o que é destinado a sobreviver, sobrevive aparentemente em segredo, na realidade no modo mais óbvio, uma vez que sobrevive como matéria existente de quem experimentou o passado: como presente vivente, não como memória de passado morto."
Abraço!
V.

pancho disse...

"Em cada instante, a medida de esquecimento e de ruína, o desperdício ontológico que trazemos em nós mesmos excedem em grande medida a piedade de nossas lembranças e da nossa consciência. Mas esse caos informe do esquecido, que nos acompanha como um golem silencioso, não é inerte nem ineficaz, mas, pelo contrário, age em nós com força não inferior à das lembranças conscientes, mesmo que de forma diferente. Há uma força e quase uma apóstrofe do esquecido, que não podem ser medidas em termos de consciência, nem acumuladas como um patrimônio, mas cuja insistência determina a importância de todo saber e de toda consciência. O que o perdido exige não é ser lembrado ou satisfeito, mas continuar presente em nós como esquecido, como perdido e, unicamente por isso, como inesquecível." Do velho ranzinza...

Idem disse...

mas que continua genial... Grande abraço!