Conheci Yan Thomas
em 1996. Enquanto escrevia Homo Sacer, fui
tocado por seu estudo Vitae necisque
potestas. O pai, a cidade, a morte. O título – que unia a fórmula técnica
do poder de vida e morte do pater
famílias sobre os filhos homens com um tema mais vasto – era de algum modo
uma expressão que compendiava seu método. Yan evitava, de fato, enunciações
gerais e sempre preferia partir das análises minuciosas de um detalhe técnico
para então lançar uma nova e inesperada luz sobre um problema mais amplo e
urgente – nesse caso, o das relações entre a família e a cidade, a potestade do
pai e o poder do detentor da soberania.
À medida em que
seguia na leitura se delineava entre as linhas, por assim dizer, um outro tema
que – como teria compreendido alguns anos depois, quando já estava
familiarizado com seu estilo de pensamento – talvez constituísse um dos motivos
essenciais do interesse de Yan pelo direito: a divisão – e, ao mesmo tempo, a
possível confusão – entre direito e vida. Yan mostrava que justamente a fórmula
vitae necisque potestas era também a
única aparição do termo “vida” como conceito jurídico no direito romano. Nessa
fórmula, todavia, vida é apenas a
contraparte e quase a sombra de nex, isto
é, do poder de matar sem derramamento de sangue. Segundo a demonstração de Yan,
que a vida comparecesse no direito somente por meio da possibilidade da morte
violenta era uma inesperada confirmação das teses sobre a vida nua que eu
estava desenvolvendo em Homo sacer. Na
mesma página, uma nota confirmava o caráter excepcional dessa inscrição da vida
na ordem do direito: “No Digesto vida
é o fato biológico de viver ou o modo de vida; não é, em nenhum caso, um
conceito jurídico”.[1]
Lembro que,
durante nossas conversas, Yan criticava abertamente a ideia – cara a um autor
que para ele foi importante, Pierre Legendre – de que o direito pudesse ser
concebido, segundo a fórmula que se encontra já em Cícero, como vitae institutio ou vitam instituere. Se é verdade que é possível conhecer verdadeiramente
apenas aquilo que se ama, esse incomparável conhecedor do direito era, todavia
– ou, talvez, justamente por isso –, animado por tão irredutível desconfiança
em relação a seu objeto de amor – ou, de modo mais preciso, em relação à
concepção moderna do direito que tende obstinadamente a confundir o plano do
direito e o da vida, a pessoa jurídica e o indivíduo natural.
O texto em que Yan
refletiu de maneira mais explícita sobre a relação entre o direito e a vida é
sua contribuição ao livro escrito em conjunto com Olivier Cayla sobre o caso
Perruche: O direito de não nascer (2002).
Toda a Breve história da noção jurídica
de pessoa que ele aí delineia – um texto que, por seu teor filosófico e
teológico deveria ser lido juntamente com o ensaio de Marcel Mauss sobre A noção de pessoa – funda-se sobre a
ideia de que nossa tradição jurídica repousa sobre a separação entre realidade
natural e realidade jurídica, causalidade real e imputação – isto é, entre o
ser vivente de um lado e sua “pessoa” ou “máscara” jurídica de outro. Yan
mostra que a pessoa jurídica só pode ser concebida como “um dispositivo formal
que isola em cada um de nós, abstraindo aquilo de irredutivelmente singular que
há em nós, uma personalidade jurídica, na qual não aparece quase nada de nossa
realidade física, psíquica e social, uma vez que ela se reduz a uma só função:
nossa capacidade de deter e exercitar direitos”.[2]
No mesmo ensaio, todavia, Yan também mostra como, ao longo de um processo em
que a teologia cristã desempenhou uma função decisiva, a pessoa tende
progressivamente a se confundir com “o próprio ser humano, com o ser vivente
naquilo que há de mais singular e, ao mesmo tempo, comum à espécie humana”.[3]
A inerência de um corpo à pessoa, que para nós se tornou uma obviedade, finca suas
raízes nas especulações dos juristas medievais que, a partir da premissa de
ordem sem dúvidas teológica, transformaram o sentido puramente funcional que
competia à pessoa no direito romano. De fato, os teólogos viam na pessoa humana
a unidade indivisa e irredutivelmente singular de duas substâncias distintas:
um corpo gerado pelos homens e uma alma criada por Deus. A noção jurídica de
pessoa permitia fornecer a essa dualidade uma configuração de certo modo
unitária, que retomava e desenvolvia numa nova perspectiva a definição
patrística da pessoa como naturae
rationalis individua substantia. Desse modo, afastando-se resolutamente do
sulco da tradição jurídica romana, a pessoa jurídica “torna-se uma unidade
substancial e não mais uma unidade funcional”.[4]
Não obstante essa
formulação, a jurisprudência medieval havia conservado de algum modo a
distinção entre uma realidade natural, unidade de um corpo e de uma alma, e uma
unidade puramente formal, na qual consistia sua identidade jurídica. O que
parecia inquietar Yan era a crescente confusão que a doutrina moderna produziu
entre essas duas modalidades do sujeito. Sua preocupação era assim ainda mais
motivada, uma vez que ele sabia perfeitamente que direito funciona como “um instrumento de
desnaturação do mundo”.[5]
Seu estudo exemplar sobre a fictio[6] (isto
é, sobre a capacidade do direito de fazer com que algo acontecido seja
considerado como não-acontecido e vice-versa), o estudo sobre A instituição jurídica da natureza[7] assim
como o extraordinário ensaio sobre O
valor das coisas (2002), que aqui se publica, mostram que a potência
específica do direito consiste na capacidade virtualmente ilimitada de produzir
realidades que, mesmo que não coincidindo com as naturais, operam de maneira
performática sobre estas, transformando-as profundamente. Não se tratava tanto
do fato de que o direito, por meio de suas ficções e de seus artifícios, possa
mudar estatutariamente os dados da vida natural – por exemplo, como acontece
hoje em certos ordenamentos, separando a sexualidade da procriação – quanto,
antes, de que a distinção entre o fato e o direito acabe, dessa maneira, por
apagar-se. Aos olhos de Yan, a história do direito moderno testemunhava um
duplo processo, “de encarnação e de naturalização, por um lado, de separação e
de abstração da pessoa jurídica, de outro”.[8]
Na modernidade, todavia, em nome de uma crescente identificação entre o direito
e a vida, foi o próprio processo de encarnação que se acelerou desse modo quase
incontrolável. A Declaração dos direitos de 1789, que havia feito coincidir o
nascimento do sujeito e sua personalidade jurídica, para ele parecia ter
produzido um ser ambíguo no qual o natural e o jurídico se tornavam
indiscerníveis. “A qualificação jurídica”, ele escrevia, “restringida desse
modo ao nascimento, perdia sua especificação e sua utilidade, uma vez que
parecia reduzir-se então à descrição de um estado natural, sem por isso cessar
de ser uma qualificação jurídica”.[9]
É por essa perspectiva
que é preciso ler o ensaio de 1998, O
sujeito de direito, a pessoa e a natureza. Aí estão em questão as polêmicas
suscitadas entre os juristas e filósofos a partir dos perigos que as
biotecnologias contemporâneas fariam correr alguns princípios fundamentais que
dizem respeito à dignidade da pessoa humana, como a indisponibilidade da
filiação e do gênero sexual. Yan mostra que, caso queiramos definir
juridicamente a dignidade da pessoa humana, encontramo-nos por isso mesmo
obrigados a demandar a uma instância terceira (o legislador ou seu intérprete)
a tarefa de definir essa dignidade e de traçar o limite que separa a cada vez
no sujeito a parte indisponível (que concerne à dignidade da espécie humana) da
parte de que ele pode dispor livremente. Não é então difícil para Yan recordar
que, do medievo aos estados totalitários modernos, a história mostra como é
extremamente perigoso confiar ao legislador a faculdade de definir a natureza
humana e, por consequência, de estabelecer por lei o que é humano e o que não o
é. E é a propósito do problema dos limites que Yan se interroga sobre o
“crescimento estupefaciente do modo jurídico da organização social, comparável
apenas àquele da técnica e do mercado”,[10]
que hoje nos coloca diante do espetáculo, por certo não confortável para um
jurista, de uma juridicização integral tanto da vida do indivíduo quanto da
vida da sociedade. Com um gesto característico, Yan inverte aqui os termos do
problema: não se trata tanto de por meio do direito fixar limites quanto,
antes, de colocar limites à invasividade do direito. O próprio conceito de
limite não tem aqui utilidade alguma, pois ele é parte essencial do dispositivo
por meio do qual o direito assegura seu controle sobre os assuntos dos homens.
Uma das teses mais
agudas de Yan é, com efeito, que o direito funciona precisamente incluindo a
exterioridade que instaurou colocando-se limites. No fim do ensaio, com uma
provável polêmica referência à superficialidade da bioética contemporânea, ele
interroga de maneira temática o significado dos limites e das interdições no
direito: “Seria tempo de compreender o limite”, escreve ele, “mais do que como
um freio colocado através do direito àquilo que ameaça a ordem humana, como o
que, justamente ao contrário, protege o próprio direito e o define no curso de
suas progressões sucessivas – limes sempre
mais avançado do império do direito sobre a gestão dos assuntos humanos”.[11]
Como no ensaio sobre O valor das coisas, é
retirando as coisas sagradas, religiosas e públicas de comércio e excluindo
provisoriamente da propriedade as res
nullius que o direito pode fazer aquilo que Yan chama de “a captura
jurídica das ‘coisas’”, e, “por meio da subtração e da exceção”,[12]
estabelecer o regime ordinário da propriedade e do comércio, e, assim, o
direito define em todo âmbito a própria esfera de validade declarando
temporariamente algo fora do direito. Dessa maneira, o direito exibe a própria
natureza que, mais uma vez, para Yan, não é ontológica e substancial, mas
funcional e pragmática. “Toda pesquisa inscrita numa perspectiva ontológica, a
partir da questão ‘o que é algo?’, bloquearia a possibilidade de aceder às
coisas do direito... é um erro de perspectiva considerá-las, como se fez com
tanta frequência, do ponto de vista da física e da metafísica grega, uma vez
que isso impede de ver como seu regime depende na realidade de uma constituição
de seu valor.”[13] A
“coisa” do direito não é uma coisa, mas uma operação que a qualifica e
constitui, incluindo-a no direito por meio de uma exclusão.
Sem dificuldades
se compreenderá, neste ponto, o interesse, a emoção e a urgência, sempre
renovada, com que, nos trezes anos que durou nossa amizade, li os ensaios de
Yan. Na argumentação meticulosa de um grande historiador do direito encontrei o
dispositivo da exceptio, da captura
do fora, por meio do qual em Homo sacer havia
definido a relação entre o direito e a vida. Nos termos de Yan, o direito
assegura seu controle sobre a vida por meio da exclusão da fictio que é a vida nua, assim como o estado de exceção é o
dispositivo por meio do qual o ordenamento jurídico, suspendendo
temporariamente sua vigência, determina o âmbito normal de sua validade. A vida
nua e o estado de exceção, como todo resultado de uma operação jurídica, são
uma abstração e não uma realidade substancial; mas se, como aconteceu e
acontece sempre com mais frequência na história dos homens, eles se encarnam em
um corpo vivente e numa condição permanente, então as operações do direito
mostram sua face obscura e letal.
Giorgio Agamben. Tra il diritto e la vita. In.: THOMAS,
Yan. Il valore delle cose. Macerata:
Quodlibet, 2015. pp. 7-18 (Trad.: Vinícius N. Honesko)
Imagem: Fra
Angelico. O julgamento de São Lourenço
(detalhe). 1447-1450. Cappella Niccolina, Palazzi Pontifici, Vaticano.
[1] Yan
Thomas, Vitae necisque potestas. Le père,
la cité, la mort, in. Yan Thoma (éd), Du
châtiment dans la cité. Supplices corporels et peine de mort dans le monde
antique (Table ronde de Rome, 9-11 novembre 1982), École française de Rome,
Rome 1985, p. 544.
[2] Olivier
Cayla, Yan Thomas, Du dorit de ne pas
naître: à propos de l’affaire Perruche, Gallimard, Paris 2002, p. 125
(trad. It. di Laura Colombo, Il diritto
di non nascere. A proposito del caso Perruche, Giuffrè, Milano 2004).
[6] Yan
Thomas, Fictio legis. L’empire de la
fiction romaine et ses limites mediévales, “Droits. Revue française de
théorie juridique”, 21, 1995, pp. 17-63; agora em Yan Thomas, Les opérations du droit, édition établie
par Marie-Angèle Hermitte et Paolo Napoli, Seuil/Gallimard/Éditions de l’EHESS,
Paris 2011, pp. 133-186.
[7] Yan
Thomas, L’institution juridique de la
nature. Remarques sur la casuistique du droit naturel à Rome, “Revue d’histoire
des facultés de droit et de la science juridique”, 6, 1988, pp. 27-48; agora em
Idem., Les opérations du droit, cit.,
pp. 21-40.
[10] Yan
Thomas, Le sujet de droit, la personne et
la nature. Sur la critique contemporaine du sujet de droit, “Le Débat”,
100, 1998, pp. 85-107; agora em Idem.,
Les opérations du droit, cit., p. 107.
Um comentário:
Obrigado.
Sua postagem fez eu ver com mais nitidez para mim mesmo minha problemática da dissertação de mestrado e meu futuro objeto de aprofundamento do doutorado.
Aprofundar as ideias de Agamben com a deste autor citado na postagem vai enriquecer muito minha futura pesquisa sobre o fundamento do sistema jurídico (exceção) e sua ação na hermenêutica jurídica (aplicação).
Abraço,
Zanin.
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