sábado, 1 de abril de 2017

Entre o direito e a vida - Giorgio Agamben








Conheci Yan Thomas em 1996. Enquanto escrevia Homo Sacer, fui tocado por seu estudo Vitae necisque potestas. O pai, a cidade, a morte. O título – que unia a fórmula técnica do poder de vida e morte do pater famílias sobre os filhos homens com um tema mais vasto – era de algum modo uma expressão que compendiava seu método. Yan evitava, de fato, enunciações gerais e sempre preferia partir das análises minuciosas de um detalhe técnico para então lançar uma nova e inesperada luz sobre um problema mais amplo e urgente – nesse caso, o das relações entre a família e a cidade, a potestade do pai e o poder do detentor da soberania.
À medida em que seguia na leitura se delineava entre as linhas, por assim dizer, um outro tema que – como teria compreendido alguns anos depois, quando já estava familiarizado com seu estilo de pensamento – talvez constituísse um dos motivos essenciais do interesse de Yan pelo direito: a divisão – e, ao mesmo tempo, a possível confusão – entre direito e vida. Yan mostrava que justamente a fórmula vitae necisque potestas era também a única aparição do termo “vida” como conceito jurídico no direito romano. Nessa fórmula, todavia, vida é apenas a contraparte e quase a sombra de nex, isto é, do poder de matar sem derramamento de sangue. Segundo a demonstração de Yan, que a vida comparecesse no direito somente por meio da possibilidade da morte violenta era uma inesperada confirmação das teses sobre a vida nua que eu estava desenvolvendo em Homo sacer. Na mesma página, uma nota confirmava o caráter excepcional dessa inscrição da vida na ordem do direito: “No Digesto vida é o fato biológico de viver ou o modo de vida; não é, em nenhum caso, um conceito jurídico”.[1]
Lembro que, durante nossas conversas, Yan criticava abertamente a ideia – cara a um autor que para ele foi importante, Pierre Legendre – de que o direito pudesse ser concebido, segundo a fórmula que se encontra já em Cícero, como vitae institutio ou vitam instituere. Se é verdade que é possível conhecer verdadeiramente apenas aquilo que se ama, esse incomparável conhecedor do direito era, todavia – ou, talvez, justamente por isso –, animado por tão irredutível desconfiança em relação a seu objeto de amor – ou, de modo mais preciso, em relação à concepção moderna do direito que tende obstinadamente a confundir o plano do direito e o da vida, a pessoa jurídica e o indivíduo natural. 
O texto em que Yan refletiu de maneira mais explícita sobre a relação entre o direito e a vida é sua contribuição ao livro escrito em conjunto com Olivier Cayla sobre o caso Perruche: O direito de não nascer (2002). Toda a Breve história da noção jurídica de pessoa que ele aí delineia – um texto que, por seu teor filosófico e teológico deveria ser lido juntamente com o ensaio de Marcel Mauss sobre A noção de pessoa – funda-se sobre a ideia de que nossa tradição jurídica repousa sobre a separação entre realidade natural e realidade jurídica, causalidade real e imputação – isto é, entre o ser vivente de um lado e sua “pessoa” ou “máscara” jurídica de outro. Yan mostra que a pessoa jurídica só pode ser concebida como “um dispositivo formal que isola em cada um de nós, abstraindo aquilo de irredutivelmente singular que há em nós, uma personalidade jurídica, na qual não aparece quase nada de nossa realidade física, psíquica e social, uma vez que ela se reduz a uma só função: nossa capacidade de deter e exercitar direitos”.[2] No mesmo ensaio, todavia, Yan também mostra como, ao longo de um processo em que a teologia cristã desempenhou uma função decisiva, a pessoa tende progressivamente a se confundir com “o próprio ser humano, com o ser vivente naquilo que há de mais singular e, ao mesmo tempo, comum à espécie humana”.[3] A inerência de um corpo à pessoa, que para nós se tornou uma obviedade, finca suas raízes nas especulações dos juristas medievais que, a partir da premissa de ordem sem dúvidas teológica, transformaram o sentido puramente funcional que competia à pessoa no direito romano. De fato, os teólogos viam na pessoa humana a unidade indivisa e irredutivelmente singular de duas substâncias distintas: um corpo gerado pelos homens e uma alma criada por Deus. A noção jurídica de pessoa permitia fornecer a essa dualidade uma configuração de certo modo unitária, que retomava e desenvolvia numa nova perspectiva a definição patrística da pessoa como naturae rationalis individua substantia. Desse modo, afastando-se resolutamente do sulco da tradição jurídica romana, a pessoa jurídica “torna-se uma unidade substancial e não mais uma unidade funcional”.[4]
Não obstante essa formulação, a jurisprudência medieval havia conservado de algum modo a distinção entre uma realidade natural, unidade de um corpo e de uma alma, e uma unidade puramente formal, na qual consistia sua identidade jurídica. O que parecia inquietar Yan era a crescente confusão que a doutrina moderna produziu entre essas duas modalidades do sujeito. Sua preocupação era assim ainda mais motivada, uma vez que ele sabia perfeitamente que  direito funciona como “um instrumento de desnaturação do mundo”.[5] Seu estudo exemplar sobre a fictio[6] (isto é, sobre a capacidade do direito de fazer com que algo acontecido seja considerado como não-acontecido e vice-versa), o estudo sobre A instituição jurídica da natureza[7] assim como o extraordinário ensaio sobre O valor das coisas (2002), que aqui se publica, mostram que a potência específica do direito consiste na capacidade virtualmente ilimitada de produzir realidades que, mesmo que não coincidindo com as naturais, operam de maneira performática sobre estas, transformando-as profundamente. Não se tratava tanto do fato de que o direito, por meio de suas ficções e de seus artifícios, possa mudar estatutariamente os dados da vida natural – por exemplo, como acontece hoje em certos ordenamentos, separando a sexualidade da procriação – quanto, antes, de que a distinção entre o fato e o direito acabe, dessa maneira, por apagar-se. Aos olhos de Yan, a história do direito moderno testemunhava um duplo processo, “de encarnação e de naturalização, por um lado, de separação e de abstração da pessoa jurídica, de outro”.[8] Na modernidade, todavia, em nome de uma crescente identificação entre o direito e a vida, foi o próprio processo de encarnação que se acelerou desse modo quase incontrolável. A Declaração dos direitos de 1789, que havia feito coincidir o nascimento do sujeito e sua personalidade jurídica, para ele parecia ter produzido um ser ambíguo no qual o natural e o jurídico se tornavam indiscerníveis. “A qualificação jurídica”, ele escrevia, “restringida desse modo ao nascimento, perdia sua especificação e sua utilidade, uma vez que parecia reduzir-se então à descrição de um estado natural, sem por isso cessar de ser uma qualificação jurídica”.[9]
É por essa perspectiva que é preciso ler o ensaio de 1998, O sujeito de direito, a pessoa e a natureza. Aí estão em questão as polêmicas suscitadas entre os juristas e filósofos a partir dos perigos que as biotecnologias contemporâneas fariam correr alguns princípios fundamentais que dizem respeito à dignidade da pessoa humana, como a indisponibilidade da filiação e do gênero sexual. Yan mostra que, caso queiramos definir juridicamente a dignidade da pessoa humana, encontramo-nos por isso mesmo obrigados a demandar a uma instância terceira (o legislador ou seu intérprete) a tarefa de definir essa dignidade e de traçar o limite que separa a cada vez no sujeito a parte indisponível (que concerne à dignidade da espécie humana) da parte de que ele pode dispor livremente. Não é então difícil para Yan recordar que, do medievo aos estados totalitários modernos, a história mostra como é extremamente perigoso confiar ao legislador a faculdade de definir a natureza humana e, por consequência, de estabelecer por lei o que é humano e o que não o é. E é a propósito do problema dos limites que Yan se interroga sobre o “crescimento estupefaciente do modo jurídico da organização social, comparável apenas àquele da técnica e do mercado”,[10] que hoje nos coloca diante do espetáculo, por certo não confortável para um jurista, de uma juridicização integral tanto da vida do indivíduo quanto da vida da sociedade. Com um gesto característico, Yan inverte aqui os termos do problema: não se trata tanto de por meio do direito fixar limites quanto, antes, de colocar limites à invasividade do direito. O próprio conceito de limite não tem aqui utilidade alguma, pois ele é parte essencial do dispositivo por meio do qual o direito assegura seu controle sobre os assuntos dos homens.
Uma das teses mais agudas de Yan é, com efeito, que o direito funciona precisamente incluindo a exterioridade que instaurou colocando-se limites. No fim do ensaio, com uma provável polêmica referência à superficialidade da bioética contemporânea, ele interroga de maneira temática o significado dos limites e das interdições no direito: “Seria tempo de compreender o limite”, escreve ele, “mais do que como um freio colocado através do direito àquilo que ameaça a ordem humana, como o que, justamente ao contrário, protege o próprio direito e o define no curso de suas progressões sucessivas – limes sempre mais avançado do império do direito sobre a gestão dos assuntos humanos”.[11] Como no ensaio sobre O valor das coisas, é retirando as coisas sagradas, religiosas e públicas de comércio e excluindo provisoriamente da propriedade as res nullius que o direito pode fazer aquilo que Yan chama de “a captura jurídica das ‘coisas’”, e, “por meio da subtração e da exceção”,[12] estabelecer o regime ordinário da propriedade e do comércio, e, assim, o direito define em todo âmbito a própria esfera de validade declarando temporariamente algo fora do direito. Dessa maneira, o direito exibe a própria natureza que, mais uma vez, para Yan, não é ontológica e substancial, mas funcional e pragmática. “Toda pesquisa inscrita numa perspectiva ontológica, a partir da questão ‘o que é algo?’, bloquearia a possibilidade de aceder às coisas do direito... é um erro de perspectiva considerá-las, como se fez com tanta frequência, do ponto de vista da física e da metafísica grega, uma vez que isso impede de ver como seu regime depende na realidade de uma constituição de seu valor.”[13] A “coisa” do direito não é uma coisa, mas uma operação que a qualifica e constitui, incluindo-a no direito por meio de uma exclusão.
Sem dificuldades se compreenderá, neste ponto, o interesse, a emoção e a urgência, sempre renovada, com que, nos trezes anos que durou nossa amizade, li os ensaios de Yan. Na argumentação meticulosa de um grande historiador do direito encontrei o dispositivo da exceptio, da captura do fora, por meio do qual em Homo sacer havia definido a relação entre o direito e a vida. Nos termos de Yan, o direito assegura seu controle sobre a vida por meio da exclusão da fictio que é a vida nua, assim como o estado de exceção é o dispositivo por meio do qual o ordenamento jurídico, suspendendo temporariamente sua vigência, determina o âmbito normal de sua validade. A vida nua e o estado de exceção, como todo resultado de uma operação jurídica, são uma abstração e não uma realidade substancial; mas se, como aconteceu e acontece sempre com mais frequência na história dos homens, eles se encarnam em um corpo vivente e numa condição permanente, então as operações do direito mostram sua face obscura e letal.  


Giorgio Agamben. Tra il diritto e la vita. In.: THOMAS, Yan. Il valore delle cose. Macerata: Quodlibet, 2015. pp. 7-18 (Trad.: Vinícius N. Honesko)

Imagem: Fra Angelico. O julgamento de São Lourenço (detalhe). 1447-1450. Cappella Niccolina, Palazzi Pontifici, Vaticano.


[1] Yan Thomas, Vitae necisque potestas. Le père, la cité, la mort, in. Yan Thoma (éd), Du châtiment dans la cité. Supplices corporels et peine de mort dans le monde antique (Table ronde de Rome, 9-11 novembre 1982), École française de Rome, Rome 1985, p. 544.
[2] Olivier Cayla, Yan Thomas, Du dorit de ne pas naître: à propos de l’affaire Perruche, Gallimard, Paris 2002, p. 125 (trad. It. di Laura Colombo, Il diritto di non nascere. A proposito del caso Perruche, Giuffrè, Milano 2004).
[3] Ibid.
[4] Idem. p. 131.
[5] Idem.
[6] Yan Thomas, Fictio legis. L’empire de la fiction romaine et ses limites mediévales, “Droits. Revue française de théorie juridique”, 21, 1995, pp. 17-63; agora em Yan Thomas, Les opérations du droit, édition établie par Marie-Angèle Hermitte et Paolo Napoli, Seuil/Gallimard/Éditions de l’EHESS, Paris 2011, pp. 133-186. 
[7] Yan Thomas, L’institution juridique de la nature. Remarques sur la casuistique du droit naturel à Rome, “Revue d’histoire des facultés de droit et de la science juridique”, 6, 1988, pp. 27-48; agora em Idem., Les opérations du droit, cit., pp. 21-40.
[8] Yan Thomas, Du droit de ne pas naître, cit., p. 143.
[9] Idem., p. 145.
[10] Yan Thomas, Le sujet de droit, la personne et la nature. Sur la critique contemporaine du sujet de droit, “Le Débat”, 100, 1998, pp. 85-107; agora em Idem., Les opérations du droit, cit., p. 107.
[11] Ibid.
[12] Ver infra, p. 56.
[13] Idem., p. 57.

Um comentário:

Prof. Fabrício Zanin disse...

Obrigado.

Sua postagem fez eu ver com mais nitidez para mim mesmo minha problemática da dissertação de mestrado e meu futuro objeto de aprofundamento do doutorado.

Aprofundar as ideias de Agamben com a deste autor citado na postagem vai enriquecer muito minha futura pesquisa sobre o fundamento do sistema jurídico (exceção) e sua ação na hermenêutica jurídica (aplicação).

Abraço,
Zanin.