domingo, 4 de agosto de 2013

Identidade sem pessoa



O desejo de ser reconhecido pelos outros é inseparável do ser humano. Tal reconhecimento, de outro modo, é para ele tão essencial que, segundo Hegel, cada um, para obtê-lo, está disposto a colocar em jogo a própria vida. Não se trata, com efeito, apenas de satisfação ou de amor próprio: ao contrário, é somente por meio do reconhecimento dos outros que o homem pode constituir-se como pessoa.
Persona significa, na origem, “máscara”, e é por meio da máscara que o indivíduo adquire um papel e uma identidade social. Assim, em Roma, todo indivíduo era identificado por um nome que exprimia o seu pertencimento a um gens, a uma estirpe, mas esta era, por sua vez, definida pela máscara de cera do ancestral que toda família patrícia custodiava no átrio da própria casa. Daí a fazer da persona a “personalidade” que define o lugar do indivíduo nos dramas e nos ritos da vida social, foi um passo breve, e persona acabou por significar a capacidade jurídica e a dignidade política do homem livre. Quanto ao escravo, assim como não tinha nem ancestrais, nem máscara, nem nome, não podia sequer ter uma “persona”, uma capacidade jurídica (servus non habet personam). A luta pelo reconhecimento é, portanto, luta por uma máscara, mas essa máscara coincide com a “personalidade” que a sociedade reconhece a cada indivíduo (ou com a “personagem” que, com a sua conivência às vezes reticente, ela faz dele).

Não surpreende que o reconhecimento da própria pessoa tenha sido por milênios o domínio mais significativo e cuidado com mais zelo. Os outros seres humanos são importantes e necessários antes de mais nada porque podem me reconhecer. Assim também o poder, a glória, as riquezas, a que os “outros” parecem ser tão sensíveis, têm sentido, em última análise, apenas em vista desse reconhecimento da identidade pessoal. Por certo é possível caminhar como incógnitos pelas ruas da cidade, vestidos como mendigos, como, segundo contam, amava fazer o califa de Bagdá, Hárún al-Rashíd; mas se não houvesse jamais um momento em que o nome, a glória, as riquezas e o poder fossem reconhecidos como “meus”, se, como certos santos recomendam fazer, eu vivesse toda a vida no não-reconhecimento, então também a minha identidade pessoal seria perdida para sempre.

Na nossa cultura, a “pessoa-máscara” não tem, entretanto, apenas um significado jurídico. Ela contribuiu também de modo decisivo à formação da pessoa moral. O lugar em que isso aconteceu foi, sobretudo, no teatro. E, também, a filosofia estoica, que modelou a sua ética sobre a relação entre o ator e a sua máscara. Tal relação é definida por uma dupla intensidade: por um lado, o ator não pode pretender escolher ou refutar o papel que o autor lhe designou; por outro, não pode nem mesmo identificar-se sem resíduos com ele. “Recorda”, escreve Epiteto, “que tu és como um ator no papel que o autor dramático quis te colocar; breve, se breve, longo, se longo. Se ele quiser que tu encenes um papel de mendigo, faça-o convenientemente. E faça o mesmo para um papel de estropiado, de magistrado, de simples particular. Escolher o papel não te diz respeito: mas encenar bem a pessoa [persona] que te foi designada, isso depende de ti” (Ench. XVII). E, todavia, o ator (como o sábio que o toma como paradigma) não deve identificar-se por completo com o seu papel, confundir-se com seu personagem. “Logo chegará o dia”, ainda adverte Epiteto, “em que os atores acreditarão que a sua máscara e os seus costumes [costumi] sejam eles próprios” (Diss. I, XXIX, 41).
Ou seja, a pessoa moral se constitui por meio de uma adesão e, conjuntamente, por uma separação em relação à máscara social: aceita-a sem reservas e, ao mesmo tempo, toma dela, quase de modo imperceptível, distâncias.
Talvez em nenhum lugar esse gesto ambivalente e, ao mesmo tempo, a separação ética que ele abre entre o homem e a sua máscara apareçam com tanta evidência como nas pinturas ou nos mosaicos romanos que representam o diálogo silencioso do ator com a sua máscara. O ator aí é representado em pé ou sentado diante da sua máscara, que segura na mão esquerda ou está colocada sobre um pedestal. A ligação idealizada e a expressão absorta do ator, que mantém fixo o olhar nos olhos cegos da máscara, testemunham o significado especial da sua relação. Esta atinge o seu limiar crítico – e, também, o seu ponto de inversão – no início da idade moderna, nos retratos dos atores da Commedia dell’Arte: Giovanni Gabrielli, chamado Il Sivello, Domenico Biancolelli, chamado Arlecchino, Tristano Martinelli, também ele Arlecchino. Agora o ator não olha mais a sua máscara, esta que, pelo contrário, segura com a mão e exibe; e a distância entre o homem e a “pessoa”, tão apagada nas representação clássicas, é acentuada pela vivacidade do olhar que ele dirige decidida e interrogativamente em direção ao espectador.

Na segunda metade do século XIX, as técnicas de polícia conhecem um desenvolvimento inesperado, que implica uma transformação decisiva do conceito de identidade. Esta não é mais, então, algo que diga respeito essencialmente ao reconhecimento e ao prestígio social da pessoa, mas responde à necessidade de assegurar um outro tipo de reconhecimento, aquele, feito por parte do agente de polícia, do criminoso reincidente. Não é fácil para nós, habituados desde sempre a saber-nos registrados com precisão em cartórios e fichários, imaginar quão árduo podia ser a averiguação da identidade pessoal em uma sociedade que não conhecia a fotografia nem os documentos de identidade. É fato que, na segunda metade do século XIX, justo isso se torna o problema principal daqueles que se concebiam como os “defensores da sociedade” diante do aparecimento e da difusão crescente da figura que parece constituir a obsessão da burguesia oitocentista: o “delinquente habitual”. Tanto na França quanto na Inglaterra, foram votadas leis que distinguiam claramente entre o primeiro crime, cuja pena era a prisão, e a reincidência, que era punida, por sua vez, com a deportação para as colônias. A necessidade de poder identificar com certeza a pessoa presa por um delito torna-se, nesse período, uma condição necessária para o funcionamento do sistema judiciário.
Foi tal necessidade que levou um obscuro funcionário do comissariado de polícia de Paris, Alphonse Bertillon, a colocar em funcionamento, por volta do fim dos anos setenta, o sistema de identificação dos delinquentes baseado na medição antropométrica e na fotografia sinalética, que, em poucos anos, torna-se célebre no mundo inteiro como Bertillonage. Quem quer que, por alguma razão, fosse parado ou preso, era de imediato submetido a um conjunto de medições do crânio, dos braços, dos dedos das mãos e dos pés, das orelhas e da face. Logo em seguida, o indivíduo suspeito era fotografado tanto de frente quanto de perfil, e as duas fotografias eram coladas na “folha Bertillon”, que continha todos os dados úteis para a identificação, segundo o sistema que o seu inventor tinha batizado como portrait parlé.

Nos mesmos anos, um primo de Darwin, Francis Galton, desenvolvendo os trabalhos de um funcionário da administração colonial inglesa, Henry Faulds, começou a trabalhar em um sistema de classificação das impressões digitais, que permitiria a identificação dos criminosos reincidentes sem possibilidade de erro. Curiosamente, Galton era um convicto apoiador do método antropométrico-fotográfico de Bertillon, cuja adoção na Inglaterra defendia; mas sustentava que o levantamento das impressões digitais era particularmente adaptado aos nativos das colônias, cujos traços físicos tendiam à confusão e pareciam iguais aos olhos de um europeu. Um outro âmbito em que o procedimento teve uma precoce aplicação foi a prostituição, pois se sustentava que os procedimentos antropométricos implicassem uma promiscuidade constrangedora em relação às criaturas do sexo feminino, em quem as longas cabeleiras tornavam, por outro lado, mais difícil a medição. É provável que tenham sido razões desse tipo, de algum modo ligadas a preconceitos raciais e sexuais, a retardar a aplicação do método de Galton para além do âmbito colonial ou, no caso dos Estados Unidos, dos cidadãos afro-americanos ou de origem oriental. Mas já nos primeiros vinte anos do século XX o sistema se difunde por todos os estados do mundo e, a partir dos anos vinte, tende a substituir ou a ser concomitante ao Betillonage.
Pela primeira vez na história da humanidade, a identidade não era mais função da “pessoa” social e do seu reconhecimento, mas dos dados biológicos que com aquela não podiam ter nenhuma relação. O homem retirou de si a máscara, na qual se fundara por séculos a sua possibilidade de ser reconhecido, para entregar a sua identidade a algo que lhe pertence de modo íntimo e exclusivo, mas com o qual não pode de modo algum identificar-se. Não são mais os “outros”, os meus semelhantes, os meus amigos ou inimigos, a garantir o reconhecimento, e nem mesmo a minha capacidade ética de não coincidir com a máscara social que, no entanto, assumi: a definir a minha identidade e a minha possibilidade de ser reconhecido agora estão os arabescos insensatos que o meu polegar tingido deixou sobre uma folha em um comissariado de polícia. Isto é, algo de que não sei absolutamente nada e com o qual, e do qual, não posso em nenhum caso identificar-me nem tomar distância: a vida nua, um puro dado biológico.

As técnicas antropométricas foram pensadas para os delinquentes e permaneceram por longo tempo seu privilégio exclusivo. Ainda em 1943, o Congresso dos Estados Unidos rejeitou o Citizen Identification Act, que tinha como objetivo instituir para todos os cidadãos carteiras de identidade com as impressões digitais. Mas é por lei, que quer que aquilo que foi inventando para os criminosos, os estrangeiros e os judeus, que, mais cedo ou mais tarde, as técnicas que tinham sido elaboradas para os reincidentes serão aplicadas a todos os seres humanos enquanto tais, isto é, serão, no curso do século XX, estendidas a todos os cidadãos. A foto sinalética, por vezes acompanhada também pela impressão digital, torna-se então parte integrante do documento de identidade (uma espécie de “papel Bartillon” condensada) que estava de maneira gradativa se tornando obrigatório em todos os estados do mundo.
Mas o passo extremo foi cumprido apenas nos nossos dias e está, até agora, em plena realização. Graças ao desenvolvimento de tecnologias biométricas que podem revelar rapidamente as impressões digitais ou a estrutura da retina ou da íris por meio de scanners ópticos, os dispositivos biométricos tendem a sair dos comissariados de polícia e dos escritórios de imigração para penetrar a vida cotidiana. A entrada dos restaurantes estudantis, dos colégios e até mesmo das escolas elementares (as indústrias do setor biométrico, que conhecem atualmente um frenético desenvolvimento, recomendam que se habituem os cidadãos desde pequenos a esse tipo de controle) em alguns países já são reguladas por um dispositivo biométrico óptico, no qual o estudante coloca distraidamente a mão. Na França, e em todos os países europeus, prepara-se a nova carteira de identidade biométrica (INES), munida de um microchip eletrônico que contém os elementos de identificação (impressões digitais e fotografia numérica) e um copião de firma para facilitar as transações comerciais. E, na irrefreável deriva governamental do poder político, em que convergem curiosamente tanto o paradigma liberal como o estatístico, as democracias ocidentais começam a organizar o arquivo do DNA de todos os cidadãos, com fins tanto de segurança e de repressão dos crimes quanto de gestão da saúde pública.

De vários lados se chamou a atenção sobre os perigos ínsitos em um controle absoluto, e sem limites, por parte de um poder que disponha dos dados biométricos e genéticos dos seus cidadãos. Nas mãos de um tal poder, o extermínio dos judeus (e qualquer outro genocídio imaginável), que foi cumprido com bases documentárias incomparavelmente menos eficazes, teria sido total e velocíssimo.
Ainda mais grave, pois de todo inobservadas, são as consequências que os processos de identificação biométrica e biológica têm sobre a constituição do sujeito. Que tipo de identidade pode se construir sobre dados meramente biológicos? Por certo não uma identidade pessoal, que era ligada ao reconhecimento dos outros membros do grupo social e, ao mesmo tempo, à capacidade do indivíduo de assumir a máscara social sem entretanto a ela deixar-se reduzir. Se a minha identidade é agora determinada, em última análise, por fatos biológicos, que não dependem de modo algum da minha vontade e sobre os quais não tenho nenhum controle, a construção de algo como uma ética pessoal torna-se problemática. Que relações posso instituir com as minhas impressões digitais ou com meu código genético? Como posso assumi-los e, ao mesmo tempo, tomar deles certas distâncias? A nova identidade é uma identidade sem pessoa, em que o espaço da ética, que estávamos habituados a conceber, perde o seu sentido e deve ser repensado por inteiro. E enquanto isso não acontecer, é lícito esperar um colapso generalizado dos princípios éticos pessoais que regeram a ética ocidental por séculos.

A redução do homem à vida nua é hoje a tal ponto um fato cumprido, que ela já está na base da identidade que o estado reconhece aos seus cidadãos. Como o deportado de Auschwitz não tinha mais nome nem nacionalidade, e já era apenas o número que em seu braço tinha sido tatuado, assim o cidadão contemporâneo, perdido na massa anônima e equiparado a um criminoso em potência, é definido apenas pelos seus dados biométricos e, em última instância, por uma sorte de fado antigo tornando ainda mais opaco e incompreensível: o seu DNA. E, todavia, se o homem é aquele que sobrevive indefinidamente ao homem, se ainda há sempre humanidade além do inumano, então uma ética deve ser possível também no extremo limiar pós-histórico, ao mesmo tempo hilário e terrificante, em que a humanidade ocidental parece estar encalhada. Como todo dispositivo, também a identificação biométrica captura, com efeito, um desejo mais ou menos inconfessado de felicidade. Nesse caso, trata-se da vontade de liberar-se do peso da pessoa, da responsabilidade, tanto moral quanto jurídica, que ela carrega consigo. A pessoa (tanto na sua veste trágica como na cômica) é também o portador da culpa, e a ética que ela implica é necessariamente ascética, pois fundada sobre uma cisão (do indivíduo em relação a sua máscaras, da pessoa ética em relação à jurídica). É contra essa cisão que a nova identidade sem pessoa faz valer a ilusão não de uma unidade, mas de uma multiplicação infinita das máscaras. No ponto em que fixa o indivíduo numa identidade puramente biológica e associal, ela lhe promete deixar assumir, na internet, todas as máscaras e todas as segundas e terceiras vidas possíveis, e nenhuma destas jamais poderá a ele pertencer de modo próprio. A isso se acrescenta o prazer, desenvolto e quase insolente, de ser reconhecido por uma máquina, sem o fardo das implicações afetivas que são inseparáveis do reconhecimento operado por um outro ser humano. Quanto mais o cidadão metropolitano perde a intimidade com os outros, quanto mais ele se torna incapaz de olhar os seus semelhantes nos olhos, tanto mais consoladora é a intimidade virtual com o dispositivo, o qual aprendeu a escrutar-lhe o mais fundo da retina; quanto mais desaparece toda identidade e toda aparência real, tanto mais gratificante é ser reconhecido pela Grande Máquina, nas suas infinitas e minuciosas variantes, desde a catraca de ingresso no metrô até o caixa rápido, da câmera que, benevolente, observa-o enquanto entra no banco ou caminha pela praça, ao dispositivo que lhe abre a porta da sua garagem, e até mesmo a futura carteira de identidade obrigatória que o reconhecerá sempre e onde quer que esteja, de modo inexorável, por aquilo que é. Eu existo se a Máquina me reconhece ou, ao menos, vê-me; eu estou vivo se a Máquina que não conhece sono ou vigília, e está eternamente desperta, garante que eu vivo; eu não sou esquecido se a Grande Memória registrou os meus dados numéricos ou digitais.

Que tal prazer e tais certezas sejam postiças ou ilusórias é evidente, e os primeiros a saber disso são por certo aqueles que experimentam isso cotidianamente. O que significa, com efeito, ser reconhecidos, se o objeto de reconhecimento não é uma pessoa, mas sim um dado numérico? E por trás do dispositivo que parece me reconhecer porventura não estão ainda outros homens, que, na realidade, não querem me reconhecer, mas apenas me controlar e me acusar? E como é possível comunicar-se não por um sorriso ou por um gesto, não com polidez ou reticência, mas por meio de uma identidade biológica?
Entretanto, segundo a lei que quer que na história não aconteçam retornos a condições perdidas, devemos nos preparar sem lamentos nem esperanças a procurar, para além tanto da identidade pessoal quanto da identidade sem pessoa, aquela nova figura do humano – ou, talvez, simplesmente do vivente –, aquele rosto além tanto da máscaras quanto da facies biométrica que não conseguimos ainda ver, mas cujo pressentimento, por vezes, faz-nos estremecer inadvertidamente tanto nos nossos turbamentos como nos nossos sonhos, tanto nas nossas inconsciências como na nossa lucidez. 

Giorgio Agamben. Identità senza persona. In.: Nudità. Roma: Nottetempo, 2008. pp. 71-82. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Domenico Fetti. Retrato de um ator. 1623. Hermitage, São Petesburgo.     

Pequeno parágrafo sobre ficções



O abandono divino fez-se ouvir como nunca antes, desde o seio de pedras mudas até os rumores do vento por entre os galhos secos das árvores no inverno. Nenhuma perspectiva de redenção, apenas o reconhecer-se no rosto opaco de um velho que há pouco, em sonho, jazia inerte, perdido pelos caminhos da demência: tal era a sensação com a qual, logo pela manhã, se deparara. Toda aquela sorte de esperança mítica que um poeta certa vez disse ser o viver - "viver é insistir em realizar uma lembrança"-, era então motivo de desdém. Pensava naqueles olhos que, com insistência, fitara-o durante o sonho e, agora, motivavam sua angustiada e séria sensação de abandono. Qualquer sentido parecia-lhe interditado, assim como ao velho, que o acompanhara na noite, eram tolhidas as palavras, a possibilidade de sair da opacidade. Fechando os olhos, tentava se concentrar no rumor do abandono divino para, quiçá, poder, pelo menos por um instante, viver a pura ficção que é o viver. Buscava, portanto, naquela silenciosa manhã de domingo, seus inimigos mais íntimos: as petrificadas imagens do passado (supostamente perdido), seu caráter, os moinhos dos ventos do Sentido, todas as figuras que eram, de uma maneira ou de outra, as malfadadas realizações de uma lembrança, sua porta de entrada na tragédia (uma espécie de olhar culpado de um Édipo que, incapaz de lidar com a realização, cega-se ainda com esperanças). Queria encará-los, desafiá-los, para, talvez, poder viver o desvario das palavras sem sentido sem o medo da imagem do velho, sem a esperança da superação das demências, sem perspectivas de realização das lembranças. Uma vida intempestiva: eis o que se lhe mostrara como o único modo de afrontar o silêncio e, porventura, conseguir abrir os olhos e respirar, condenado mas sem culpa, as ficções possíveis de uma vida.   

Imagem: Émile Bernard. Madaleine na floresta do amor. 1888. Musée d'Orsay, Paris.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Utopismo



T. J. Clark

O utopismo - essa invenção dos primeiros funcionários públicos modernos -, por outro lado, é coisa para senhores de terras, que têm tempo de cultivá-lo. É tudo de que os camponeses de Carlo Levi aprenderam a desconfiar. Bruegel o mostra bem. Sua obra Cocanha é, antes de mais nada, uma dessublimação da ideia de Paraíso - uma comédia não divina que só faz realmente sentido quando relacionada com todas as outras ofertas de vida celestial (comezinhas e fabulosas, institucionalizadas e heréticas) postas em circulação quando a cristandade começou a se fazer em pedaços. O alvo central do deboche de Bruegel é o impulso religioso, ou uma das principais formas (tanto mais saliente quanto maior é o afastamento da religião em relação às particularidades da vida) assumidas por esse impulso: o desejo de escapar da existência mortal, o sonho da imortalidade, a ideia do porvir: "E Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram". A resposta que Bruegel dá ao livro do Apocalipse - e sua voz não é outra senão a da cultura camponesa, em uma de suas modulações inerradicáveis - é que todas as visões de evasão e perfeição são assombradas pelas realidades mundanas que pretendem transfigurar. Todo Éden é uma intensificação do aqui e agora: a imortalidade é um prolongamento da mortalidade; toda visão de bem-aventurança é material e apetitosa, encorpada e corriqueira e centrada no presente. O homem que emerge da montanha de mingau, no segundo plano da cena, é a personificação do "moderno". Foi à força de se empanturrar que ele conseguiu entrar na comunidade dos santos. O jovem deitado no chão à direita, com as penas de escrever no cinto e a Bíblia ao lado, podemos vê-lo como ninguém menos que São Thomas More; acordado, mas comatoso em sua criação. E o rapaz que dorme sobre o seu mangual? Quem mais se não o próprio Ned Ludd? 

As utopias tranquilizam a modernidade, dizendo-lhe que seu potencial é infinito. Mas por quê? Ela deveria aprender - ser ensinada - a encarar o fracasso. 


Por uma esquerda sem futuro. Trad. José Viegas. São Paulo: Ed. 34. pp. 57-59. Imagem: Pieter Bruegel, o Velho. A Terra da Cocanha. 1567. Alte Pinakothek, Munique. 

   

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Metafísica da Revolução


Massimo Cacciari

Lembrar-se ainda de que no termo "revolução", como em "renascimento" ou "reforma", soa a ideia de uma restauratio magna de um passado, o qual se imagina poder constituir-se como a sólida terra por onde avançar, agora parece um exercício erudito em vão. A novitas, o desejo de res novae e verba nova, para além de toda "repetição", invade toda a nossa cultura. Prolongar-se rumo ao futuro [Infuturarsi] aparece como imperativo. Todos anseiam ser pueri aeterni. Já há tempos revolução soa apenas como sinônimo de inovação. Entretanto, as coisas não se colocam assim de modo tão simples. O medo se mistura ao desejo. A busca e a dúvida ao redor do fundamento do "novo" fazem-se sempre mais tormentosas, justamente em relação à irresistível afirmação da sua ideia. Enquanto o "novo" deve "justificar-se", pode apenas "re-converter-se" a um passado, ao menos para explicar de que coisa pretende "secessão". Os plebeus romanos, nas suas secessiones, sabiam bem quem eram os "pais" (os patrícios). Que filho, hoje, ansioso por "inovar", conhece os próprios pais? Que pretendente a parricida participa, hoje, tão intimamente como Brutus, da vida do seu César? Mas o pai sobrevive sempre se não o mata em ti... Ninguém conhecia melhor a história e a razão do seu inimigo do que um Marx ou um Lênin. O simples demolidor[1] [rottamatore] acaba invariavelmente sepulto sob os cascalhos que a história, ou a sorte, por sua conta produz.
Por isso os autênticos revolucionários tenderam a fazer amadurecer o novo regime desde o interior das formas políticas tradicionais. A sua arte foi, de algum modo, maiêutica. O “novo” se exprime, desse modo, como o transpassar do velho, não a afirmação de uma prepotente violência, mas o produto do próprio passado. O “novo” se “justifica” enquanto nova permanência em que as formas dos pais podem finalmente encontrar paz. Assim, os novatores “reformistas” procuram superar o medo que inevitavelmente suscitam: apresentando-se como aqueles que falam e operam com base no autêntico sentido do passado. Variantes “messiânicas” dessa posição são possíveis: então o revolucionário não é apenas quem marca o “transpassar” da época, mas aquele que pretende resgatar-redimir vítimas e injustiças da história ou pré-história transcorrida. Ele se sente responsável em relação a elas; estas são para ele presenças vivas que é necessário escutar e “salvar”. Em todo caso, resulta decisivo a relação com o “tempo de ontem”. Onde tal relação não seja mais reconhecida como essencial, “revolução” acabará por indicar o “natural” salto tecnológico-organizativo no interior do ininterrupto progredir do sempre-igual. Revolução se torna progresso. E as duas ideias se põem juntas.
O quadro, naturalmente, é de todo diferente se acreditarmos que as res novae sejam apenas metamorfoses de “arquétipos” necessários e eternos, ou ainda, de modo oposto, a ocasião que de fato dê a possibilidade à virtude para inventar situações e ordens jamais experimentadas. A cultura moderna parece insistir nessa última perspectiva. Mas Maquiavel docet: os inovadores, os fundadores de “principados novos”, devem conhecer bem os antigos exempla, devem saber bem que os homens caminham “quase sempre pelos caminhos empreendidos por outros”, que “todas as coisas que foram” podem ainda ser. Não se dá uma pura inventio novitatis. O novo se constrói com os tijolos da história – mas transformando-os e forçando-os em formas jamais antes construídas. Nem eterno retorno, nem irrefreável fluxo de desordenadas mutações. O passado, como os astros, faz inclinar a algo, não determina.
Mas toda concebível inovação não pressupõe talvez um “retorno”? Qualquer “salto” é possível apenas se uma energia que obtemos em nós mesmos o faz aparecer necessário. Sem uma “voz” que force a superar as montanhas e aventurar-se em mar aberto, jamais poderemos vencer o medo do “novo”, a violência conservadora da consuetudo. Aqui a ideia moderna de revolução manifesta sua origem teológica. Revolução é, por excelência, a conversio, o retorno a si, o face a face com o próprio rosto, ao ponto de, com angústia, nele provar toda a miséria. Desse tremendo espetáculo a alma traz a força para mudar-se por completo. A conversão a si cria as condições imprescindíveis para mudar mente e coração e querer mudar o mundo segundo a nossa imagem. A secularização de tal ideia comporta o abandono ou o esquecimento do fato de que conversio era concebível apenas como gratia, e que jamais o homem, por si só, teria podido atingir a força necessária para mudar-se tão radicalmente. O desejo de res novae quebrou a “ordem” que o coligava à conversio. Por outro lado, essa “deriva” se anuncia desde a passagem da narração da conversão por antonomásia, aquela de Paulo, até a “confissão” da própria conversão por parte de Agostinho. Um raptus para Paulo; o Senhor não se “insinua” na alma, mas nela irrompe de improviso, agita-a junto com o próprio corpo com inaudita violência. Em Agostinho, ao contrário, a conversio avança com fadiga, entre hesitações, dúvidas, suspensões. É a história de uma verdadeira metanoia, isto é, de uma mutação que interessa essencialmente ao nous, à mente; por certo é o Senhor que chama e que vence, mas o eleito responde porque consegue convencer-se da verdade que a ele se manifesta. Tal decisão captura em si o ser humano na sua integridade, mas a marca dominante é a intelectual-noética – marca de todo estranha na narração evangélica sobre Paulo. A ideia moderna de revolução a seculariza, fazendo da decisão o produto de uma vontade movida somente pela energia do intelecto. Permanece, talvez, a angústia diante das condições do saeculum; mas não se trata da angústia que nos coloca diante de nós mesmos, que nos faz sentir responsáveis em todos os sentidos e que nos força a mudar de vida. O inovador de hoje não prova nenhuma necessidade de conversão; pelo contrário, ele, que se levanta como modelo da “ordem nova”, é a inocente figura futuri[2]. O agostiniano abismo do Si talvez se fechou para sempre sob a louca ideia de uma indefinida “revolução permanente”.        


[1] Trata-se de um neologismo recente. Como antonomásia, faz referência direta ao político do Partido Democrático Italiano Matteo Renzi, prefeito de Florença desde 2009, que, na ânsia por “reestruturação” do seu partido, lançou uma palavra de ordem de “liquidação” dos por ele referidos como seus “obsoletos grupos dirigentes”. (N.T.) 
[2] O autor joga com a expressão presente em Romanos 5; 14, segundo a edição da Vulgata: “sed regnavit mors ab Adam usque ad Moysen etiam in eos, qui non peccaverunt in similitudine praevaricationis Adae, qui est figura futuri” – isto é, segundo a edição brasileira da Bíblia de Jerusalém: “Todavia, a morte imperou desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram de modo semelhante à transgressão de Adão, que é figura daquele que devia vir...”(N.T.)

Texto publicado no dia 07 de maio de 2013, no jornal La Repubblica, na parte R2 Cultura, página 57, com o título Metafisica della Rivoluzione. (tradução: Vinícius Nicastro Honesko)

Imagem: Arco do Triunfo, Paris. Escultura denominada La Marseillaise, de François Rude. 1833-36.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Der Steppenwolf



para PWZ

um animal carnívoro, irascível, nada gregário
seu nomadismo é limitado pelo fim dos campos abertos
sua fria verdadeira solidão
isso o impele a atacar caravanas satisfeitas
sedentários cientes de seu minifúndio, de seus futuros
os construtores de edifícios e contabilistas na vida
não há fuga para a tragédia em que nos metemos
nem o boteco sujo da esquina nem sua droga
nem o grito rouco
nem o cimento cru, o asfalto, o beco dos craqueiros
não, nem mesmo o beijo e o sexo da amada
caçados sem recompensa
salvos apenas pelo anacronismo
o lobo da estepe
a estepe do lobo.

sábado, 20 de julho de 2013

Pequeno delírio em parágrafo XIII


A Alejandra Pizarnik

Por aqui passou o amor. Como o vento forte de um dia de nuvens baixas, varreu todos seus sonhos de um sentido único à vida para as sombras do tempo. 

El principio ha dado a luz el final
Todo continuará igual
Las sonrisas gastadas
El interés interesado
Las preguntas de piedra en piedra
Las gesticulaciones que remedan amor 
Todo continuará igual.

E o sonho agora sombreado sondava, à espreita, os féretros que habitou antes de morrer, todos os dias, mesmo sem o amor ter passado. Vida sem esperanças e deglutida pelo vento. Gritava e esperava sentir nesse grito o opus magnum da sua existência. Não há língua capaz de fazer sentido, não há permanência do amor aqui. Passa e, como passado, é a gaiola transformada em pássaro, a prisão na liberdade póstuma, a condenação às ausências. Fogo consumado, a vida dança como opus postumum. O fio miseravelmente tênue dos sentidos do grito se rompe em silêncio, no branco e opulento silêncio escuro da memória.
  
Recuerdo mi niñez
cuando yo era una anciana
Las flores morían en mis manos
porque la danza salvaje de la alegría
les destruia el corazon

Recuerdo las negras mañanas de sol
cuando era niña
es decir ayer
es decir hace siglos

Señor
La jaula se ha vuelto pájaro
y ha devorado mis esperanzas

Señor  
La jaula se ha vuelto pájaro
Qué haré con el miedo  


Imagem: Thomas Dworzak. 2006.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Pequeno parágrafo sobre mapas


Salvus. Todo mapa está desenhado desde o princípio daquilo que ele representa. Aliás, nenhum mapa reconstitui ou representa algo (um espaço, um domínio, uma dimensão); não grafa senão a forma daquilo que é salvo da não existência, salvo na falência (em erro, portanto). Em busca de refúgio, tentamos escrever mapas a todo tempo. Murilo Mendes desenhou seus delírios de desconjuntado colado ao tempo na expectativa de cartografar-se. Deixou apenas traços. Mário Quintana, talvez encantado, sonhou em seu mapa uma rua que nem em sonho podia traçar. Borges, inventariando a infâmia, pensou os mapas desmedidos e inúteis. Restaram ruínas. Restaram traços. Tudo é traço: as letras das cartas que endereçamos à amada (e não são as cartas o mapa impossível do amor?), as marcas nesse pequeno livro que preencho despreocupado em uma sala de espera qualquer, o tetragrama sagrado. Esse deus - que, como lembra Scholem, pode ser chamado, mas não pronunciado - que se tornou letra para, na arca da aliança, seguir a cartografia errante do povo que havia escolhido. A sós no deserto, os hebreus corriam os olhos pelo rolo sagrado para tentar decifrar, nas letras, o caminho para a terra prometida (e a promessa? Não seria o mapa impossível do porvir?). Clamando no deserto, os profetas (megafones da promessa do divino) mapeavam os trilhos para a salvação. Salvamos, nos toques transformadores da pena sobre o papel - no grafema -, nossa perspectiva de permanência nos lindes (e não lides) que são as letras - abstrações minimizantes que tornam macroscópica nossa imagem grafada. Nenhuma redenção comporta mapas. Estes, como cartas que são, não passam de espaços meio, em trânsito, a caminho de alguém que não se sabe se os lerá. Aprofundados, meus mapas deslocam-se pelos espaços que tentam marcar (tal como as quatro letras divinas) e, perdidos na impossibilidade de gravar-grafar uma verdade (espacial e histórica - e, lembra-nos Derrida, mesmo a verdade sobre algo teria sua história falseável), lançam-me na interdição absoluta: não é possível fazer fronteira no deserto, não é possível salvar o que se deixa tocar apenas como linde, limiar, entre determinações. Assim, só nos resta perceber a miséria do inóspito de todo mapa: sua condenação à errância. 

Imagem: Jacopo de' Barbari. Mapa de Veneza. 1500. Museo Correr, Venezia.