segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A eterna traição dos brancos

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Cansados de serem deuses, periodicamente os homens se lembram de que são homens, e começam a exaltar tal condição de homens como se ela fosse superior àquela dos deuses.

Não sei se já foi observado que, em todos os tempos, no instante em que os homens se reconhecem apenas como tais e nada mais, a civilização, por sua vez, colapsa, como se à vida do mundo fosse preciso, para que ela possa se manter à máxima altura de seu destino, o suporte da imaginação exacerbada dos homens.

As crises do humanismo, com um notável paralelismo, sempre correspondem às crises da civilização. A coincidência, é preciso que se diga, é estranha. Quando o estado da civilização já é de desespero e quando a ideia de cultura já está em via de total regressão, os  homens então põem-se a falar de humanismo, como se o homem tivesse poder de escapar da Natureza, como se a anarquia dominante não tivesse acontecido, antes de tudo, por causa dessa ideia estreita e aviltante do homem que, através dos séculos, não cessou de se camuflar sob o termo humanismo: do humanismo do Renascimento ao humanismo materialista de hoje.

Humanismo sempre significou que o homem reduzia a Natureza ao seu talante, que ele fazia do padrão “homem” uma espécie de medida comum, tanto física quanto moral, à qual, de maneira periódica, deviam se referir todas as coisas do mundo.

E tal momento sempre é aquele em que se propaga o culto de uma faculdade especificamente human, a razão, e no qual o duplo ponto de vista, da moral e da psicologia humanas, entende suas crueldades em todos os sentidos.

É desconcertante perceber que fora do homem a moral não existe e que o ponto de vista materialista, que procura fazer da razão humana uma sorte de chefe universal, chega apenas a um servilismo, o servilismo do homem diante da Natureza, pois o homem se faz escravo de sua própria moral e prisioneiro dos tabus que ele mesmo criou.

Por sua vez, essa concepção de moral da natureza e da vida – segundo a qual o homem sente em si mesmo sua própria vida como distinta da Natureza – corresponde a uma ideia dualista das coisas. E sempre vimos nascer o humanismo nas épocas que separaram o espírito da matéria e a consciência da vida.

Tal concepção é europeia. O mundo branco, através dos séculos, sempre fez dessa particularização uma especialidade.

Quando na Europa aconteceram guerras religiosas, estas sempre foram feitas contra a eterna unidade do espírito. A guerra dos albigenses foi contra os partisans da vida unitária enquanto, no curso das guerras religiosas na Índia, foram os partisans da dualidade da vida e da preexistência da matéria que, invariavelmente, acabaram por ser massacrados.

Através dos tempos, o mundo hindu manifestou uma inextirpável crença na sua ideia monista do homem, da Natureza, do espírito e da vida.

E o budismo herético foi extinto na Índia pelos brâmanes ao longo de guerras que duraram duzentos ou trezentos anos.

Buda, o grande Buda, foi um traidor. É considerado como traidor na Índia, e os brâmanes não deixam de proclamar isso.

Não é no Renascimento do século XVI que de modo próprio retorna a infantilidade pouco invejável dessa diminuição do homem e dessa ideia anárquica da vida. Havia na Grécia, no século IV antes de Cristo, uma escola de filósofos céticos que colocavam a vida à medida do homem e qualificavam como contos pueris os mitos divinos sobre os quais a autêntica civilização da Grécia tinha se edificado, mitos estes em que a vida subterrânea e mágica tinha feito fermentar o drama esquiliano.

De Ésquilo a Eurípides o mundo grego seguiu uma curva descendente. Nas escolas contamos que o homem, graças a Eurípides, pôde ter uma ideia mais justa e racional da Natureza. A verdade é que Eurípides destruiu a consciência da Natureza com sua concepção mesquinha e humanizada da vida. Os ignorantes falam da eterna cultura da Grécia e sobre o mesmo plano colocam Ésquilo, Sófocles e Eurípides, sem ver o mundo que os separa e sem ver que os três nomes representam as três etapas de uma curva funesta que conduziu, de século em século, o homem a renunciar seus poderes.

O termo “humanismo”, na realidade, nada mais significa que uma abdicação do homem. Para os mitos divinos, o homem é o igual da Natureza que ele compreende sinteticamente; mas quando nasce o espírito analítico, o homem imagina penetrar a Natureza e dissecar seus segredos, exatamente como um cirurgião disseca um músculo ou separa os órgãos do corpo; de modo que, no mesmo instante, assim como o cirurgião cessa de estar à escuta do corpo, o homem perde seu contato com a Natureza, pois é apenas pelo instinto que podemos penetrar a alma da Natureza. Diga-se o que quiser contra o conhecimento instintivo, mas é ele que torna possíveis todas as grandes invenções humanas. É a imaginação sem limites do homem que em todos os tempos nutriu as civilizações. Cada vez que reaparece o espírito racional, essa reaparição indica que um mundo vai morrer. Ora, no espírito da raça branca, há uma tara que, periodicamente, a leva a negar que a compreensão do mundo não pode se limitar e a se concentrar num saber que talvez seja claro, mas inútil, pois se apoia apenas em objetos mortos, os membros dispersos e inanimados da Natureza.

A luta, hoje, está localizada entre o saber ocidental, preciso e morto, e o saber confuso, mas que vive uma eterna existência, do monismo oriental.



p.s.: Não devemos confundir a alta metafísica do Oriente, tal como nos foi transmitida desde o século VIII antes de Cristo, nas versões escritas dos Vedas (metafísica que une o espírito e a matéria em um todo indestrutível, refletindo-se, por sua vez, por partes, no mundo do Sangsara ou domínio da ilusão universal), eu repito, é preciso não confundir essa alta metafísica monista com as falsificações que nos são oferecidas pelo teosofismo inglês de H. –P Blavatsky e Annie Besant. A escola teosófica é inglesa e representa o esforço feito pelo Intelligence Service para meter seu nariz até nas doutrinas do Oriente.





Em 1936 Artaud permanece uma semana em Havana, onde escreve vários artigos para jornais cubanos. Este texto, o único reencontrado, foi publicado em Carteles, em 1º de novembro de 1936. A edição, nas Obras, foi feita por Marie Dézon e Philippe Sollers.



Antonin Artaud. L’Éternelle Trahison des Blans. In.: Oeuvres. Paris, Gallimard. 2004. pp. 681-683. (Tradução: Vinícius N. Honesko) 

Imagem: Artaud.  La bouillabaisse de formes dans la tour de Babel. aproximadamente 1948.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Da angústia noturna


Na escuridão do quarto, a angústia entra disfarçada de sombra. Passa sorrateira pelas visões daquele que já não é mais do que um corpo moribundo, que sonha em cores um idílico passado cheio de vitalidade. Talvez a ideia dantesca seja, em seu caráter visceral, logo, presente, a única proposição capaz de dar conta do ingresso da angústia nos espaços de descanso: o inferno é a memória de Deus. A memória, no silêncio da noite, responde pela abertura da porta e um vazio absoluto preenche aquele quarto em que jaz o moribundo. Mas, dizia M. Eckhart, "estar vazio de todo o criado é estar cheio de Deus". Nietzscheanamente, o corpo descobre-se deus, e não um mero professor pestilento e desencantado. O vazio da angústia, que ali, naquela escuridão massacrante, era a ausência de qualquer rosto senão na forma fantasmática das imagens pré-oníricas, era similar ao choro de Odisseu à beira-mar: o herói que olha para o mar e percebe a inclemência da natureza, e, num fugaz instante, tem aguda ciência da morte e da fragilidade de seu corpo, que, em breve, sem deixar sombras ou vazios, voltará ao deserto de onde veio. A memória divina, que agora era também a sua, mostra-se, nesta noite de angústia, como aquilo que é: um imenso inferno descolorido e vazio em que, com pincel e guache, alguns fantasmas tentam deixar suas marcas impossíveis... 

Imagem: Michael Wolgemut. Circe e Ulisses. 1493.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

666

Penso que este deserto foi construído. É povoado por ruídos metálicos, vozes, milhões de fotografias virtuais, mas não passa de um deserto mesquinho forjado na solidão e no desespero de muitos. Não, eu não tenho facebook. Você me encontrará nos lugares mais inapropriados, como um bicho, buscando uma toca para se esconder. Meu desespero não se resolve nisso aí. Não quero ser como o pároco de Unamuno que, mesmo se vendo ateu, continua com suas liturgias, invectivas, com o lenga-lenga. Tenho ojeriza a pregações, mesmo o breviário religioso dos "malditos" de departamento. A filosofia, a literatura, as ciências humanas em geral foram indevidamente apropriadas pelos canalhas e pelos parasitas de cátedra, pelos "coletivos", pelos famintos por um nome literário ou, simplesmente, "curtidas". Basta. Mudar a vida e semear no deserto sem ser um pregador? Mas não se pode plantar nada em desertos artificiais, e este deserto foi construído à base de forjas pesadas, com camadas impenetráveis de galvanização. Não, nem a guerrilha, o último  poço dos escrúpulos quixotescos, nem o ópio barato, apenas um buraco, uma proteção provisória contra o relento mortífero, onde eu possa dormir algumas noites de sono tranquilo, um sono sem sonhos, só. Condenado ao deserto quero fazer deserto ao meu jeito, exijo que não o edulcorem, estas tábuas frias, palavras e objetos perdidos serão o rastro de alguém que quer ser esquecido.     

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Carta à destinatária impossível...


Para minha destinatária impossível.
Querida, o mundo cabe na brisa de um suspiro. Toda vez que penso que talvez poderia ter tido sua possibilidade, lembro também que jamais esse tempo composto condicional - esse poderia ter tido - constitui uma possibilidade, senão a falência de todas elas. Ainda hoje pensei em te escrever, depois de meses. Hesitei e, depois de lembrar de um sorriso teu, comecei, inadvertidamente, como um boneco ventríloquo nas mãos de seu senhor. Esta carta pode ser a última, como deveria ter sido a última (o que só confirma a fragilidade dos tempos compostos), porém, ainda pulsa em mim um diálogo infinito com tua voz, meiga e, ao mesmo tempo, dura. Há sempre um resto de conversa que fica, um não dito que permanece latente, como que a querer, a todo instante, nos fazer calar diante de um suposto encontro dos nossos olhares - encontro este que poderia ter acontecido horas, ou dias, ou meses, ou anos atrás. A composição dos tempos parece ser um empecilho, querida: eu, num aqui-agora inadmissível, tu, num aqui-agora para mim de todo desconhecido. Há aqui, na minha frente, enquanto escrevo, um casal que se despede. Tristes e com lágrimas nos olhos, parecem dizer um adeus que nem Borges poderia supor. Talvez seja de fato a última vez que se veem; ou, ainda, por não saber o porquê da despedida, tudo não passe de elucubração da minha parte. Mas algo me parece certo: poderiam não ter se despedido. Tudo se compõe, querida, como esses tempos faltantes e condicionantes da vida. O imprevisível desta minha carta está no fato de que eu já poderia ter decidido não escrevê-la - como, porventura, em outro dia nublado, tenha feito. Entretanto, aqui estão estes sinais, aborrecidos e teimosos e aos quais chamamos letras, formando seu composto (que em língua inglesa é seu homônimo) de que mais gostam: a carta. Já te disse que cartas são mapas que, por sua vez, não conseguem dar conta de nenhum lugar (e, como o mapa da China borgeano, estas minhas cartas jamais dão conta do que eu poderia ter te contado). Todavia, querida, ainda há pouco sentida, no meu peito descoberto, a brisa do meu próprio suspiro me fez lembrar de ti. Foi como a passagem do mundo pelo meu peito desnudo, foi como o toque de um deus cadavérico à espera da reencarnação, foi como ouvir sua voz impossível. De todo modo, querida, escrevo como esse suspiro; de uma só vez, sem ler nem reler o que escrevo, como que a tentar surpreender minha voz enquanto escrita, como que a tentar apanhar, em pleno voo, a cotovia das lembranças que me dita essas palavras, como que a sorrir, como te vi, de soslaio, enquanto a brisa do meu sopro tocava minha pele. Sem mais, querida, espero - sem esperanças - poder vê-la num agora incomposto, num tempo em que, talvez, não haja condições, mas tão somente nossas vozes a se abraçar, sem choro e sem letras, como que a borrar as letras desta carta que, talvez, tenha o desenho do mapa que sempre quis te dar.

Do seu remetente impossível.

p.s.: nos meus pós-escritos, sempre vão notícias dos postais. Aqui te mando um postal com o mapa zodiacal do hemisfério sul, desenhado por Dürer, em 1515.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Noite de tauromaquia

A noite seguiu insólita, talvez como jamais antes. Uma espécie de monólogo esquizofrênico tomava conta de sua cabeça e, como um toureiro a bailar com o animal ferido na arena, parecia que aquela voz, tão sua e, ao mesmo tempo, tão outra, era a única coisa a povoá-lo. Já estava certo de não ser o valente homem paramentado para o virtuosismo, mas sim o touro fragilizado e que espumava de ódio e cansaço. A voz era incansável e dela não havia fuga. Foram seis horas de desespero, talvez a tourada mais custosa de toda sua vida noturna, e, desta vez, não em sonho. Assim que percebia a fadiga do insone, a voz girava sua muleta vermelha, a única coisa com cor desta noite, e com seus volteios o deixava ainda mais atônito. Por que tamanha dureza? Por que essa retração aos obscuros cantos das conversas infinitas, onde essa voz de ninguém - desse eu envaidecido e, por isso, covarde - se gabava da sua soberania? A infinita tristeza parecia arrolar uma lista com todos os tique-taques percebidos e contados pela voz nesta noite. Era uma técnica de tortura? Cansado e sangrando em demasia, o insone - que, tolo, pensava não ter nada a ver com esse eu - desistiu da entrada nos sonhos e abraçou o pesadelo com os olhos abertos. A noite havia preparado, com seus sopros frios das mensagens de demência e morte, a espada. Era a parte final do espetáculo noturno da tauromaquia. Entre a carne viva e lamuriante distendida sobre o leito e a feroz voz imperiosa armada com sua espada não havia mais nenhuma distância. A lâmina penetrava, fria e lancinante, e, sem mais, não deixou senão suas marcas, seus traços: estes, justamente estes, as letras, com os quais agora, como um vagabundo do Hades, desenho a dança da noite.

Imagem: Francisco de Goya y Lucientes. A Arena dividida. 1825. Biblioteca Nacional, Madrid.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Pequeno parágrafo sobre a morada


Nestes rincões desertificados, a atmosfera pesa como névoa fria ao desabrigo. Uma sordidez quase palpável em meio a espectros vagantes parece dar o ritmo da vida. Vejo como querem tocar, com a ponta dos dedos, as águas frias do Estige, pensando alcançar uma espécie de imortalidade. Consomem-se e, com seus rostos cadavéricos, mostram-me seu vazio profundo na cavidade ocular, como que a insultar-me por minha petulante insistência em querer vê-los. Nenhum Virgílio me acompanha nesta barca e meu passeio não tem o rumo celestial. Vago, como um tolo, nisto a que, um dia, chamei de minha morada...

Imagem: Sandro Botticelli. Divina Comédia. (Manuscrito Hamilton 201.) 1480s. Staatliche Museen, Berlin.

domingo, 13 de outubro de 2013

Pequeno parágrafo sobre a vitalidade


Lendo "O Idiota", de Dostoiévski, Walter Benjamin diz: "a vida imortal é inesquecível, esse é o sinal que nos permite reconhecê-la. É a vida que, sem monumento e sem lembrança, mesmo sem testemunho, deveria ser inesquecida. Não pode ser esquecida. Esta vida permanece, por assim dizer, sem recipiente nem forma, a imperecível. E dizer 'inesquecível' significa mais do que dizer que não podemos esquecê-la; é remeter a algo que está na essência do inesquecível mesmo, por meio do que ele é inesquecível." O sem forma que é a vida, a duração de um modo de existir que só é interrompido pela decomposição das relações que compõem seu modo de existir em um outro possível, envolve um tempo indefinido, como disse Spinoza (Ética, III, 8). Tal indefinição componente da duração, oposta por Deleuze à eternidade (esta que, entretanto, coexiste com a duração, mas não é apreensível pela memória), de alguma maneira a nós se apresenta como vitalidade. Em todos os movimentos, em toda persistência no ser, na única substância possível, a vida histórica - a vida de qualquer príncipe idiota, incompatível com as idiotas vidas dos transeuntes de nossas dementes cidades - parece ser a única condizente à possibilidade da permanência, sem forma e inesquecível na infinita substância divina. Entretanto, a vida "sonhada" como pura presença num mundo em que deus transcende a vida, é o que vislumbra e insiste em tentar a todo custo criar o mundo do capital: forjar seres que se submetem ao pesadelo de pureza histórica, à teodicea concretizada no consumo ininterrupto e único gerador de vida. O homem médio (muito bem descrito por Pasolini, na voz de Orson Welles) que hoje repete sem cessar a necessidade de vida, que aspira o grande elixir an-histórico comprável em qualquer esquina, não percebe minimamente as potências do inesquecível e se deixa levar pelos modelos, pelas formas de vida patenteadas, por uma suposta imagem do eterno transcendente que o fascina como redenção pós-histórica (já o velho Oswald enunciou com ironia: "é a partilha do ócio a que todo homem nascido de mulher tem direito. E o ideal comum passa a ser a aposentadoria, que é a metafísica do ócio"). O ininterrupto desejo de tempo livre, de lazer, nada mais é do que a fantasia da vitalidade em estado puro (livre das sevícias do trabalho que, por outro lado, carrega também no mundo do capital uma função à vitalidade: justamente a condição sine qua non da "pura vida", o primeiro estágio da vida que produz vida gloriosa). No nosso tempo, somos o sonho não realizado da vida, sempre em busca de vida.  

Imagem: Antonio de Pereda. Vanitas. Museo Provincial de Bellas Artes, Saragossa.