METROPOLIS
Giorgio Agamben
Transliteração e tradução: Vinícius Nicastro Honesko (Agosto/2007)
Documento de áudio disponível no sítio:
http://www.globalproject.info/art-9966.html
Muitos anos atrás, discutia com Guy Debord questões que a mim pareciam ser de filosofia política, até que em certo ponto Guy me interrompe e diz: 'Olhe, eu não sou um filósofo, sou um estrategista'. Esta frase me chocou porque eu o considerava um filósofo, assim como considerava a mim mesmo como um filósofo, e não um estrategista. Mas creio que aquilo que Guy queria dizer é que todo pensamento, por mais puro, por mais geral e por mais abstrato que seja é sempre marcado por assinaturas históricas, temporais e, portanto, sempre preso, de alguma maneira, a uma estratégia e a uma urgência. Fiz esta introdução porque as minhas considerações serão necessariamente gerais e não entrarão no específico tema dos conflitos. No entanto, espero que estas considerações gerais carreguem de algum modo uma assinatura de uma estratégia.
Gostaria de iniciar a partir de algumas considerações banais sobre a etimologia da palavra metropoli. Como sabeis o termo metropoli significa em grego Cidade Mãe e se refere à relação entre a cidade e as colônias. Os cidadãos de uma polis que partiam para fundar uma colônia eram chamados por um curioso termo: en apoikia, distantes de casa e da cidade, esta que em face da colônia assumia agora o caráter de Cidade Mãe, Metropoli. Como sabeis este significado do termo permaneceu corrente até nossos dias para exprimir a relação entre o território da pátria metropolitana e as colônias. A primeira observação instrutiva, que me sugere esta etimologia, é que o termo metrópole implica e traz consigo a idéia de uma máxima deslocação, de uma forte desomogeneidade especial e política, como aquela que define a relação entre cidade – ou o estado – e as colônias. E disto me vêm algumas dúvidas sobre a idéia corrente da metrópole como um tecido urbano, contínuo e relativamente homogêneo. Uma primeira consideração é que a isonomia que define, por exemplo, a polis grega como modelo de uma cidade política, é excluída no caso da relação metrópole/colônia e que, portanto, o termo metrópole transferido para desenhar um tecido urbano carrega consigo esta desomogeneidade fundamental. Assim, proponho-me a reservar o termo metrópole a algo substancialmente outro em relação à cidade, à concepção tradicional da polis, isto é, de algo política e espacialmente isonômico. Sugiro reservar este termo, metrópole, ao novo tecido urbano que se funda paralelamente aos processos de transformação que Michel Foucault definiu como passagem do poder territorial, do ancien régime, da antiga soberania, ao biopoder moderno que é na sua essência, segundo Foucault, governamental.
Isto significa que, para entender o que é uma metrópole, é necessário compreender o processo que progressivamente levou o poder a assumir a forma de um governo dos homens e das coisas, ou, se preferirdes, de uma economia. A palavra economia não significa nada mais que governo, que claramente se mostra no século XVIII: o governo dos homens e das coisas. A cidade do sistema feudal do ancien régime, que estava sempre em situação de exceção em relação aos grandes poderes territoriais, era o modelo da cidade franca, relativamente autônoma dos poderes de governo das grandes entidades territoriais. Por outro lado, diria então que a metrópole é o dispositivo, ou o conjunto de dispositivos, que toma o lugar da cidade quando o poder assume a forma de um governo dos homens e das coisas.
Não podemos adentrar na complexidade da transformação do poder em governo. Como é óbvio, governo não significa simplesmente domínio e violência, mas sim uma configuração muito mais complexa do poder que pretende passar através da própria natureza dos governados e que, portanto, implica a liberdade destes. É um poder que não é transcendente, mas imanente e por isso, no fundo, seu caráter essencial é sempre de ser, nas suas manifestações mais específicas, efeito colateral, algo que recai num particular a partir de uma economia geral. Quando os estrategistas norte-americanos falam de collateral damages, efeitos colaterais, de seus bombardeamentos, como, por exemplo, aqueles das cidades iraquianas, devem ser compreendidos literalmente: o governo tem sempre este esquema de uma economia geral com efeitos colaterais sobre as particularidades, sobre os sujeitos.
Voltemos agora à metrópole. A minha idéia é que aqui não se está diante de um processo de crescimento e desenvolvimento da antiga cidade, mas da instauração de um novo paradigma, cujo caráter deve ser analisado. Certamente um dos seus traços seguros é que há uma passagem do modelo da polis fundada sobre um centro, no qual há um espaço público, uma agorá, a uma nova espacialização metropolitana em que certamente está ocorrendo um processo de “des-politização”, cujo resultado é uma curiosa zona na qual não é possível decidir aquilo que é privado e o que é público.
Michel Foucault tentou definir algumas características essenciais deste novo espaço urbano ligado à governabilidade. Segundo Foucault, há aqui a convergência de dois paradigmas que até então permaneciam distintos: a lepra e a peste. O paradigma da lepra é claramente a exclusão e tratava-se de “manter fora”, de excluir da cidade os leprosos. É o modelo de uma cidade pura, que mantém fora de si os estranhos e também o modelo daquilo que Foucault chama de grand enfermement, isto é, o “grande fechamento”, o “grande aprisionamento”, portanto, fechar e excluir. Tal é o modelo da lepra. Foucault sugere que o modelo da peste é completamente diverso e dá lugar a um paradigma totalmente diferente. Quando a epidemia se instaura na cidade é evidente que não é possível “manter fora” os pestilentos e tratar-se-á, ao contrário, de criar pela primeira vez um modelo de vigilância, controle e articulação do espaço urbano. Estes são divididos em setores e no interior destes, cada rua é tornada autônoma e colocada sob a vigilância de um intendente; ninguém pode sair de casa e, mesmo assim, todos os dias os habitantes de cada casa são controlados: quantos são, se ainda estão lá, quem morreu e quem não etc. Em suma, um quadrillage do território urbano vigiado pelos intendentes, médicos e soldados. Enquanto o leproso era tomado por uma prática de rejeição e exclusão, o pestilento é enclausurado, vigiado, controlado e curado através de uma complexa rede de dispositivos que dividem e individualizam e, deste modo, articulam também a eficácia do controle do poder.
Isto significa que, enquanto a lepra é o paradigma de uma sociedade de exclusão, que pretende manter-se pura, a peste é o paradigma daquilo que Foucault chama de técnicas disciplinares, formação das tecnologias que levarão à passagem de uma sociedade do ancien régime a uma sociedade disciplinar. Segundo Foucault, o interesante é que o espaço político da modernidade, a partir do século XVIII até hoje, é resultado da fusão destes dois paradigmas. Isto é, em certo ponto o poder começa a tratar o leproso como um pestilento, e vice-versa. Começa-se a projetar sobre o esquema de exclusão e de separação da lepra o esquema de vigilância, controle, individualização e articulação do poder disciplinar. Trata-se agora de individualizar, subjetivar e corrigir o leproso tratando-o como um pestilento. Deste modo cria-se um duplo esquema: de um lado a simples divisão binária, como por exemplo, doente/sadio, louco/não-louco, normal/anormal e, de outro lado, ao contrário, toda a complicada série de repartições diferenciais, de dispositivos e de tecnologias que subjetivam, individualizam e controlam os sujeitos. Este é um primeiro esquema que poderia ser útil para a definição geral e sumária do espaço metropolitano hoje. E isto me parece que também explica estas coisas muito interessantes das quais falavam agora – a impossibilidade de definir univocamente os confins, os muros a espacialização justamente porque estes são o resultado da ação deste duplo paradigma: não simples divisão binária, mas projeção de uma complexa série de procedimentos e de tecnologias individualizantes e articuladoras.
Lembro dos fatos de Gênova em 2001, que me pareciam experiências para tratar o centro histórico de uma cidade velha, que ainda conservava a sua estrutura arquitetônica antiga, e ver se neste centro poderiam ser repentinamente criados muros, portões etc, que não tinham apenas a finalidade de excluir e separar, mas articular espaços diversos, de individualizar espaços e sujeitos. Assim, esta análise que Foucault deu apenas alguns acenos, é naturalmente sumária e poderia ser ulteriormente desenvolvida e aprofundada.
Eu agora, ao contrário, gostaria de terminar e me concentrar sobre um diferente ponto. Disse que a cidade é um dispositivo, ou um grupo de dispositivos. A teoria a que vos remeti anteriormente era a idéia, muito sumária, segundo a qual se pode dividir a realidade em, de uma parte, os homens e os viventes, e, de outra parte, os dispositivos em que os viventes são continuamente capturados e presos. No entanto, como terceiro, o ponto fundamental para definir o que é um dispositivo, creio também segundo Foucault, são os processos de subjetivação que resultam do corpo-a-corpo dos indivíduos e dos dispositivos. Chamarei, portanto, sujeito o que resulta do corpo-a-corpo, da relação entre os homens e os dispositivos. Não há dispositivo sem processo de subjetivação e para que se possa falar de um dispositivo deve haver um processo de subjetivação. Naturalmente sujeito tem dois significados: de uma parte, aquilo que leva um indivíduo a ligar-se e a assumir uma individualidade, uma singularidade e, de outra, sujeitamento a um poder estranho. Não há processo de subjetivação que não tenha estes dois aspectos (de um lado, assunção de uma individualidade e de uma individualidade, de outro, sujeitamento a um poder externo).
A consciência desta relação é exatamente aquilo que freqüentemente falta. Aos movimentos falta justamente esta consciência de que toda assunção de uma identidade também é sempre um sujeitamento. Naturalmente isto é complicado porque, talvez, os dispositivos modernos não implicam apenas uma criação de uma subjetividade, mas também, e na mesma medida, processos de dessubjetivação. Toda subjetivação é também hoje uma dessubjetivação. Talvez isso sempre tenha sido assim e em todo dispositivo desde sempre havia estes dois aspectos: pensais na confissão, que formou a subjetividade ocidental (o grande instituto da confissão dos pecados ou da confissão judiciária, que ainda vivemos hoje), que implicava sempre ao mesmo tempo da criação de um novo sujeito, a negação de um sujeito. Na figura do confesso e do arrependido é claríssima a idéia de que a assunção de uma nova subjetividade vem junto a um ato de dessubjetivação.
Hoje os dispositivos são sempre mais dessubjetivantes, portanto é sempre mais difícil analisar e individualizar os processos de subjetivação que se criam. No entanto, a metrópole pode ser vista como um imenso lugar onde está acontecendo um grande processo de criação de subjetividade, do qual creio que não sabemos o bastante. Quando digo que precisamos tentar conhecer estes processos de subjetivação, não me refiro apenas a análises, ainda que muito importantes, sobre a natureza sociológica, econômica e social destes processos, mas, por assim dizer, a um nível quase ontológico, no qual “spinosianamente” se coloca em questão a capacidade de agir dos sujeitos. Isto é, aquilo que nos processos em que o sujeito se liga a uma identidade subjetiva, leva a uma modificação, a um aumento ou a uma diminuição da sua capacidade de agir. Parece-me que esta consciência está hoje muito carente e que, exatamente por isso, os conflitos metropolitanos que hoje assistimos tornam-se tão opacos.
Parece-me que um verdadeiro confronto com os dispositivos metropolitanos será possível somente quando penetrarmos nos processos de subjetivação, que naqueles estão implicados, de um modo mais articulado e mais profundo. Porque creio que o êxito do conflito dependerá exatamente disso: da capacidade de intervir e agir sobre os processos de subjetivação, de modo a atingir aquele ponto que eu chamaria de “ingovernabilidade”. Aquele ingovernável sobre o qual pode fazer naufragar o poder na sua figura de governo; e este ingovernável que é também para mim o início e o ponto de fuga de toda política.
Giorgio Agamben
Transliteração e tradução: Vinícius Nicastro Honesko (Agosto/2007)
Documento de áudio disponível no sítio:
http://www.globalproject.info/art-9966.html
Muitos anos atrás, discutia com Guy Debord questões que a mim pareciam ser de filosofia política, até que em certo ponto Guy me interrompe e diz: 'Olhe, eu não sou um filósofo, sou um estrategista'. Esta frase me chocou porque eu o considerava um filósofo, assim como considerava a mim mesmo como um filósofo, e não um estrategista. Mas creio que aquilo que Guy queria dizer é que todo pensamento, por mais puro, por mais geral e por mais abstrato que seja é sempre marcado por assinaturas históricas, temporais e, portanto, sempre preso, de alguma maneira, a uma estratégia e a uma urgência. Fiz esta introdução porque as minhas considerações serão necessariamente gerais e não entrarão no específico tema dos conflitos. No entanto, espero que estas considerações gerais carreguem de algum modo uma assinatura de uma estratégia.
Gostaria de iniciar a partir de algumas considerações banais sobre a etimologia da palavra metropoli. Como sabeis o termo metropoli significa em grego Cidade Mãe e se refere à relação entre a cidade e as colônias. Os cidadãos de uma polis que partiam para fundar uma colônia eram chamados por um curioso termo: en apoikia, distantes de casa e da cidade, esta que em face da colônia assumia agora o caráter de Cidade Mãe, Metropoli. Como sabeis este significado do termo permaneceu corrente até nossos dias para exprimir a relação entre o território da pátria metropolitana e as colônias. A primeira observação instrutiva, que me sugere esta etimologia, é que o termo metrópole implica e traz consigo a idéia de uma máxima deslocação, de uma forte desomogeneidade especial e política, como aquela que define a relação entre cidade – ou o estado – e as colônias. E disto me vêm algumas dúvidas sobre a idéia corrente da metrópole como um tecido urbano, contínuo e relativamente homogêneo. Uma primeira consideração é que a isonomia que define, por exemplo, a polis grega como modelo de uma cidade política, é excluída no caso da relação metrópole/colônia e que, portanto, o termo metrópole transferido para desenhar um tecido urbano carrega consigo esta desomogeneidade fundamental. Assim, proponho-me a reservar o termo metrópole a algo substancialmente outro em relação à cidade, à concepção tradicional da polis, isto é, de algo política e espacialmente isonômico. Sugiro reservar este termo, metrópole, ao novo tecido urbano que se funda paralelamente aos processos de transformação que Michel Foucault definiu como passagem do poder territorial, do ancien régime, da antiga soberania, ao biopoder moderno que é na sua essência, segundo Foucault, governamental.
Isto significa que, para entender o que é uma metrópole, é necessário compreender o processo que progressivamente levou o poder a assumir a forma de um governo dos homens e das coisas, ou, se preferirdes, de uma economia. A palavra economia não significa nada mais que governo, que claramente se mostra no século XVIII: o governo dos homens e das coisas. A cidade do sistema feudal do ancien régime, que estava sempre em situação de exceção em relação aos grandes poderes territoriais, era o modelo da cidade franca, relativamente autônoma dos poderes de governo das grandes entidades territoriais. Por outro lado, diria então que a metrópole é o dispositivo, ou o conjunto de dispositivos, que toma o lugar da cidade quando o poder assume a forma de um governo dos homens e das coisas.
Não podemos adentrar na complexidade da transformação do poder em governo. Como é óbvio, governo não significa simplesmente domínio e violência, mas sim uma configuração muito mais complexa do poder que pretende passar através da própria natureza dos governados e que, portanto, implica a liberdade destes. É um poder que não é transcendente, mas imanente e por isso, no fundo, seu caráter essencial é sempre de ser, nas suas manifestações mais específicas, efeito colateral, algo que recai num particular a partir de uma economia geral. Quando os estrategistas norte-americanos falam de collateral damages, efeitos colaterais, de seus bombardeamentos, como, por exemplo, aqueles das cidades iraquianas, devem ser compreendidos literalmente: o governo tem sempre este esquema de uma economia geral com efeitos colaterais sobre as particularidades, sobre os sujeitos.
Voltemos agora à metrópole. A minha idéia é que aqui não se está diante de um processo de crescimento e desenvolvimento da antiga cidade, mas da instauração de um novo paradigma, cujo caráter deve ser analisado. Certamente um dos seus traços seguros é que há uma passagem do modelo da polis fundada sobre um centro, no qual há um espaço público, uma agorá, a uma nova espacialização metropolitana em que certamente está ocorrendo um processo de “des-politização”, cujo resultado é uma curiosa zona na qual não é possível decidir aquilo que é privado e o que é público.
Michel Foucault tentou definir algumas características essenciais deste novo espaço urbano ligado à governabilidade. Segundo Foucault, há aqui a convergência de dois paradigmas que até então permaneciam distintos: a lepra e a peste. O paradigma da lepra é claramente a exclusão e tratava-se de “manter fora”, de excluir da cidade os leprosos. É o modelo de uma cidade pura, que mantém fora de si os estranhos e também o modelo daquilo que Foucault chama de grand enfermement, isto é, o “grande fechamento”, o “grande aprisionamento”, portanto, fechar e excluir. Tal é o modelo da lepra. Foucault sugere que o modelo da peste é completamente diverso e dá lugar a um paradigma totalmente diferente. Quando a epidemia se instaura na cidade é evidente que não é possível “manter fora” os pestilentos e tratar-se-á, ao contrário, de criar pela primeira vez um modelo de vigilância, controle e articulação do espaço urbano. Estes são divididos em setores e no interior destes, cada rua é tornada autônoma e colocada sob a vigilância de um intendente; ninguém pode sair de casa e, mesmo assim, todos os dias os habitantes de cada casa são controlados: quantos são, se ainda estão lá, quem morreu e quem não etc. Em suma, um quadrillage do território urbano vigiado pelos intendentes, médicos e soldados. Enquanto o leproso era tomado por uma prática de rejeição e exclusão, o pestilento é enclausurado, vigiado, controlado e curado através de uma complexa rede de dispositivos que dividem e individualizam e, deste modo, articulam também a eficácia do controle do poder.
Isto significa que, enquanto a lepra é o paradigma de uma sociedade de exclusão, que pretende manter-se pura, a peste é o paradigma daquilo que Foucault chama de técnicas disciplinares, formação das tecnologias que levarão à passagem de uma sociedade do ancien régime a uma sociedade disciplinar. Segundo Foucault, o interesante é que o espaço político da modernidade, a partir do século XVIII até hoje, é resultado da fusão destes dois paradigmas. Isto é, em certo ponto o poder começa a tratar o leproso como um pestilento, e vice-versa. Começa-se a projetar sobre o esquema de exclusão e de separação da lepra o esquema de vigilância, controle, individualização e articulação do poder disciplinar. Trata-se agora de individualizar, subjetivar e corrigir o leproso tratando-o como um pestilento. Deste modo cria-se um duplo esquema: de um lado a simples divisão binária, como por exemplo, doente/sadio, louco/não-louco, normal/anormal e, de outro lado, ao contrário, toda a complicada série de repartições diferenciais, de dispositivos e de tecnologias que subjetivam, individualizam e controlam os sujeitos. Este é um primeiro esquema que poderia ser útil para a definição geral e sumária do espaço metropolitano hoje. E isto me parece que também explica estas coisas muito interessantes das quais falavam agora – a impossibilidade de definir univocamente os confins, os muros a espacialização justamente porque estes são o resultado da ação deste duplo paradigma: não simples divisão binária, mas projeção de uma complexa série de procedimentos e de tecnologias individualizantes e articuladoras.
Lembro dos fatos de Gênova em 2001, que me pareciam experiências para tratar o centro histórico de uma cidade velha, que ainda conservava a sua estrutura arquitetônica antiga, e ver se neste centro poderiam ser repentinamente criados muros, portões etc, que não tinham apenas a finalidade de excluir e separar, mas articular espaços diversos, de individualizar espaços e sujeitos. Assim, esta análise que Foucault deu apenas alguns acenos, é naturalmente sumária e poderia ser ulteriormente desenvolvida e aprofundada.
Eu agora, ao contrário, gostaria de terminar e me concentrar sobre um diferente ponto. Disse que a cidade é um dispositivo, ou um grupo de dispositivos. A teoria a que vos remeti anteriormente era a idéia, muito sumária, segundo a qual se pode dividir a realidade em, de uma parte, os homens e os viventes, e, de outra parte, os dispositivos em que os viventes são continuamente capturados e presos. No entanto, como terceiro, o ponto fundamental para definir o que é um dispositivo, creio também segundo Foucault, são os processos de subjetivação que resultam do corpo-a-corpo dos indivíduos e dos dispositivos. Chamarei, portanto, sujeito o que resulta do corpo-a-corpo, da relação entre os homens e os dispositivos. Não há dispositivo sem processo de subjetivação e para que se possa falar de um dispositivo deve haver um processo de subjetivação. Naturalmente sujeito tem dois significados: de uma parte, aquilo que leva um indivíduo a ligar-se e a assumir uma individualidade, uma singularidade e, de outra, sujeitamento a um poder estranho. Não há processo de subjetivação que não tenha estes dois aspectos (de um lado, assunção de uma individualidade e de uma individualidade, de outro, sujeitamento a um poder externo).
A consciência desta relação é exatamente aquilo que freqüentemente falta. Aos movimentos falta justamente esta consciência de que toda assunção de uma identidade também é sempre um sujeitamento. Naturalmente isto é complicado porque, talvez, os dispositivos modernos não implicam apenas uma criação de uma subjetividade, mas também, e na mesma medida, processos de dessubjetivação. Toda subjetivação é também hoje uma dessubjetivação. Talvez isso sempre tenha sido assim e em todo dispositivo desde sempre havia estes dois aspectos: pensais na confissão, que formou a subjetividade ocidental (o grande instituto da confissão dos pecados ou da confissão judiciária, que ainda vivemos hoje), que implicava sempre ao mesmo tempo da criação de um novo sujeito, a negação de um sujeito. Na figura do confesso e do arrependido é claríssima a idéia de que a assunção de uma nova subjetividade vem junto a um ato de dessubjetivação.
Hoje os dispositivos são sempre mais dessubjetivantes, portanto é sempre mais difícil analisar e individualizar os processos de subjetivação que se criam. No entanto, a metrópole pode ser vista como um imenso lugar onde está acontecendo um grande processo de criação de subjetividade, do qual creio que não sabemos o bastante. Quando digo que precisamos tentar conhecer estes processos de subjetivação, não me refiro apenas a análises, ainda que muito importantes, sobre a natureza sociológica, econômica e social destes processos, mas, por assim dizer, a um nível quase ontológico, no qual “spinosianamente” se coloca em questão a capacidade de agir dos sujeitos. Isto é, aquilo que nos processos em que o sujeito se liga a uma identidade subjetiva, leva a uma modificação, a um aumento ou a uma diminuição da sua capacidade de agir. Parece-me que esta consciência está hoje muito carente e que, exatamente por isso, os conflitos metropolitanos que hoje assistimos tornam-se tão opacos.
Parece-me que um verdadeiro confronto com os dispositivos metropolitanos será possível somente quando penetrarmos nos processos de subjetivação, que naqueles estão implicados, de um modo mais articulado e mais profundo. Porque creio que o êxito do conflito dependerá exatamente disso: da capacidade de intervir e agir sobre os processos de subjetivação, de modo a atingir aquele ponto que eu chamaria de “ingovernabilidade”. Aquele ingovernável sobre o qual pode fazer naufragar o poder na sua figura de governo; e este ingovernável que é também para mim o início e o ponto de fuga de toda política.
Nenhum comentário:
Postar um comentário