sexta-feira, 18 de maio de 2012

Ideia do pensamento


Para Jacques Derrida
I.

Entre os signos da pontuação, as aspas gozam, há algum tempo, de um benefício particular. A extensão do seu uso para além do signum citationis, na prática tão difundida de colocar uma palavra entre aspas, sugere, em relação a tal uso, razões não superficiais. 
De fato, o que significa colocar uma palavra entre aspas? Com as aspas, quem escreve toma distâncias da linguagem: elas indicam que certo termo não é tomado na acepção que lhe é própria, que o seu sentido foi modificado (citado, colocado para fora de seu uso habitual), mas não completamente retirado da sua tradição semântica. Não se quer ou não se pode mais usar simplesmente o velho termo, mas nem mesmo se pode ou se quer encontrar para ele termo novo. O termo entre aspas é mantido em suspenso na sua história, é pesado - isto é, ao menos elementarmente, pensando.
Recentemente foi elaborada uma teoria geral da citação para uso das universidades. À costumeira irresponsabilidade acadêmica, que crê poder manejar, extrapolando-a da obra de um filósofo, essa arriscada prática, é preciso lembrar que a palavra entre aspas espera somente o momento de vingar-se. E nenhuma vingança é mais sutil e irônica do que a sua. Quem colocou uma palavra entre aspas dela não pode mais liberar-se: suspendida a meio caminho do seu lance significante, ela torna-se insubstituível - ou, ainda, agora é, para quem assim o fez, absolutamente inseparável. Assim, o espalhar-se das aspas trai o desconforto do nosso tempo em relação à linguagem: elas representam os muros - finos, mas intransponíveis - da nossa prisão na palavra. No círculo que as aspas fecham à volta do vocábulo permaneceu fechado também o falante.
Mas se as aspas são uma citação que convocam a linguagem a comparecer diante do tribunal do pensamento, o processo assim intentado não pode permanecer indefinidamente adiado. Todo ato cumprido de pensamento deve, de fato, para assim o ser - isto é, para poder referir-se a algo que está fora do pensamento -, resolver-se inteiramente na linguagem: uma humanidade que pudesse falar somente entre aspas seria uma humanidade infeliz, que teria perdido, à força de pensar, a capacidade de levar a cumprimento o pensamento. 
Por isso o processo intentado pela linguagem pode concluir-se somente com o apagar das aspas. Mesmo no caso em que o veredito final fosse uma condenação à morte. As aspas apertam então o pescoço do termo imputado até sufocá-lo. No ponto em que isso parece esvaziar-se de todo sentido e exalar o último suspiro, os pequenos carrascos, pacificados e inquietos, retornam à vírgula de que nasceram e que, segundo a definição de Isidoro, assinala o ritmo da respiração no sentido.

II.

Onde caiu uma voz, onde faltou uma respiração, está, em cima, um pequeno sinal. Sem nada mais do que isso aventura-se, hesitante, o pensamento.  

Giorgio Agamben. Idea del Pensiero. In.: Idea della Prosa. Macerata: Quodlibet, 2002. pp. 89-90. (trad.: Vinícius Nicastro Honesko).

Imagem: Domenico Ghirlandaio. São Jerônimo em seu escritório (detalhe). 1480. Ognissanti, Firenze. 

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