segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Estudo sobre a memória XI


A D.H.

A vida imortal é inesquecível, esse é o sinal que nos permite reconhecê-la. É a vida que, sem monumento e sem lembrança, mesmo sem testemunho, deveria ser inesquecida. Não pode ser esquecida. Esta vida permanece, por assim dizer, sem recipiente nem forma, a imperecível. E dizer 'inesquecível' significa mais do que dizer que não podemos esquecê-la; é remeter a algo que está na essência do inesquecível mesmo, por meio do que ele é inesquecível. Até a falta de memória do príncipe durante sua doença posterior é símbolo do inesquecível de sua vida, pois ela está aparentemente mergulhada no abismo da rememoração de si, do qual não mais emergirá. - W. Benjamin.

Constituímos nossos modos, nossas formas de forjar relações, nosso estar no mundo, sobretudo a partir da profanidade que é o estar vivo. Antes de separarmos algo para os deuses (já mortos mas com os quais insistimos, às vezes mesmo cientes de seus corpos frios, em fabular relações), existe um tecido vivo de nosso uso, de uso profano, banal (e a tekné grega tem já nesses tecidos vitais uma espécie de protótipo). O escrúpulo que os sacerdotes, os fazedores do sagrado, tinham de ter para a construção da religio tem no aspecto profano de nossas "tecituras" sua origem, sua Ürsprung - e, atordoados pela percepção da morte, atordoados com o as dimensões quase infinitas do céu, criamos esse intocável que é o sagrado (Urano que será castrado por Zeus que, por sua vez, com Mnemosyne criará, como uma de suas filhas, Clio, a história). Todavia, a própria separação que cria o sagrado advém da profanidade que é nossa vida. Aos poucos vamos - tudo o que vive sobre este planeta -, em pequenos rituais profanos, formando isso a que damos o nome de memória. Estive, algumas horas atrás, sentado com meu tio, vítima do Alzheimer há 10 anos, e, nas poucas e confusas palavras que trocamos, meu pai tornava-se seu pai, seu pai tornava-se meu pai, e seus olhos estavam imersos nas obscuras águas do Lethe. Pareceu-me que ele já não habitava nenhuma profanidade ritual dos tecidos da vida. A segunda extemporânea de Nietzsche me veio à cabeça: toda ação requer, sim, esquecimento e é impossível sempre viver historicamente; mas a vida requer um tecido de memórias muito além de Mnemosyne ou de sua filha, Clio: vivemos e já não nos damos conta de que cumprimos nossos rituais profanos da memória no mais puro esquecimento. Este, porém, contrariamente aos olhos que me viam desde dentro do Lethe, é o que carregamos na "tecitura" de nossa vida, e que, em certo sentido, é o que Benjamin chamava de vida imortal (a vida inesquecível). O apagamento da possibilidade de forjar nossos modos (nossas técnicas) de estar no mundo, este algo terrível que acontece para nós (e o Alzheimer é mais uma de suas formas) quando nos aproximamos da morte, causa-nos o medo do infinito dos céus e a perpetuação dos escrúpulos rituais que separam nossa vida nas fabulações que entretemos com os sagrados. Tentamos, assim, fazer sagrado - e os sacerdos são os carregadores do sêmen de Zeus, e Clio é a honrosa glória de ser lembrado - e, com isso, talvez pensemos iludir a morte. Porém, a presença dessa ausência, do desaparecimento de nossa vida (e até mesmo a mais recôndita memória dos homens há de passar e nada mudará nesse vórtice enigmático a que, estupefatos, nomeamos universo), é uma constante presença dolorosa. Ainda há pouco, naquele sofá onde brincava quando criança, as palavras já não nomeavam ninguém: meu pai poderia ter o nome de meu avô, minha vó era minha mãe, minhas tias eram minhas irmãs. E aqueles olhos que me miravam desde as profundas águas do esquecimento eram, para mim, um irônico espelho a me lembrar daquilo que eu jamais posso lembrar mas que, num constante paradoxo, é de todo inesquecível: a profanidade de nossa vida.

Imagem: Aby Warburg. Atlas Mnemosyne (prancha 33). 1926

Nenhum comentário: