segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Violência e esperança no último espetáculo - de Giorgio Agamben


 

 Giorgio Agamben

Em novembro de 1967, quando Guy Debord publicou A sociedade do espetáculo, a transformação da política e de toda a vida social numa fantasmagoria espetacular ainda não havia atingido a figura extrema que hoje se tornou para nós perfeitamente familiar. Por isso é ainda mais notável a implacável lucidez de seu diagnóstico.

“O capitalismo, em sua forma última – assim ele argumenta, radicalizando a análise marxiana do caráter de fetiche da mercadoria, naqueles anos tolamente desconsiderada – apresenta-se como uma imensa acumulação de espetáculos, na qual tudo o que era diretamente vivido se distanciou numa representação”.

            Todavia, o espetáculo não coincide simplesmente com a esfera das imagens ou com aquilo que hoje chamamos de mídia: ele é “uma relação social entre pessoas, mediada através das imagens”, a expropriação e a alienação da própria sociabilidade humana. Ou melhor, com uma fórmula lapidar: “o espetáculo é o capital num tal grau de acumulação que se torna imagem”.

            Por isso mesmo, no entanto, o espetáculo é apenas a pura forma da separação: onde o mundo real se transformou numa imagem e as imagens se tornam reais, a potência prática do homem se destaca de si mesma e se apresenta como um mundo em si. É na figura desse mundo separado e organizado por meio das mídias, que nas formas do Estado e da economia se compenetram, que a economia mercantil acede a um estatuto de soberania absoluta e irresponsável sobre a vida social.

            Depois de ter falsificado o conjunto da produção, ela agora pode manipular a percepção coletiva e tomar posse da memória e da comunicação social para transformá-las numa única mercadoria espetacular, na qual tudo pode ser colocado em discussão, exceto o próprio espetáculo, que, em si, diz apenas: “aquilo que aparece é bom, e o que é bom aparece”.

            Em maio de 1988, Debord publicou um Comentário à sociedade do espetáculo, que acrescenta desenvolvimentos importantes às suas análises precedentes. Se antes ele havia distinguido duas formas de sociedade espetacular – a concentrada, que tinha seu modelo na Rússia stalinista e na Alemanha nazista; e a difusa, correspondente aos Estados Unidos e às democracias ocidentais –, agora ele mostra que, nos vinte anos subsequentes, impôs-se em escala planetária um terceiro modelo, para o qual Itália e França serviram como laboratório, definido por ele de “espetáculo integrado”.

            “O espetáculo integrado se manifesta ao mesmo tempo no estado concentrado e no estado difuso e, a partir dessa frutífera unificação, conseguiu empregar ao máximo uma e outra qualidade. Mas seu modo de aplicação se transformou. Considerando-se o aspecto concentrado, o centro dirigido agora se tornou oculto: nele não se situa mais nem um início reconhecido nem uma clara ideologia. Considerando-se o aspecto difuso, o influxo do espetáculo jamais havia determinado a tal ponto a quase totalidade dos comportamentos e dos objetos da produção social.

            O sentido último do espetáculo integrado é, com efeito, que ele se integrou na própria realidade à medida que dela falava: e que a reconstrói assim como dela fala, de modo que esta não está mais diante dele como algo estranho. Quando o espectador era concentrado, a maior parte da sociedade periférica lhe escapava: quando era difuso, dele escapava uma pequena parte; hoje, mais nada. O espetáculo se misturou a toda realidade permeando-a. Como era previsível em teoria, a experiência prática da realização desenfreada da vontade da razão mercantil mostra, rapidamente e sem exceções, que o tornar-se-mundo da falsificação era também um tornar-se-falsificação do mundo.

            Excetuando-se uma herança ainda consistente, mas destinada a se reduzir cada vez mais, de livros e edifícios antigos que, de resto, são cada vez mais frequentemente selecionados e colocados em perspectiva de acordo com a conveniência do espetáculo, não existe mais nada, na cultura e no mundo, que não tenha sido transformado e declinado segundo os meios e os interesses da indústria moderna”

            É difícil, para nós que vivemos os últimos vinte anos da história italiana, não subscrever essas análises. Isso pois é certo que, como parece sugerir Debord, a Itália foi o laboratório em que, enquanto o terrorismo formava o espetáculo de cobertura que monopolizava toda atenção, foi tentada e efetuada a passagem das democracias ocidentais para a última fase de seu desenvolvimento histórico. Jamais – nem mesmo nos anos 1950, quando os estados europeus, eliminados o fascismo e o nazismo, dedicaram-se com zelo a prosseguir sua obra de outro modo – uma tão grande massa de falsificação se concentrou num tempo tão breve em todos os aspectos da vida social.

            No espaço de poucos anos, ideologias, confissões religiosas, sindicatos, partidos políticos, jornais, dentre os quais existiam diferenças sensíveis e que representavam tradições opostas, entraram em acordo, como que seguindo as instruções de um modelo invisível, para repetir com as mesmas palavras o mesmo discurso sobre os mesmíssimos temas. E jamais, em algum regime totalitário, o discurso público foi tão homogêneo e, essencialmente, consentido como na Itália desses últimos anos, onde tudo se discutiu desde que não se pensasse em nada; e jamais, em nenhuma ditadura, os intelectuais, reduzidos com boa vontade ao papel de espectadores dos especialistas, foram mais solícitos em sua tarefa de obter consenso e tranquilizar por meio de ideias confusas. Isso pois, se o estado espetacular é o estágio extremo na evolução da forma Estado, em direção à qual, quase como que levados por uma força fatal, parecem se mover hoje todos os estados do mundo, o espetáculo, no sentido estrito de circulação midiática da informação, serve para impossibilitar que os problemas decisivos sejam colocados de modo claro e que os cidadãos disponham dos elementos para se formar uma opinião não contraditória sobre eles.

            Nesse sentido, os livros de Debord constituem uma das poucas descrições de nosso tempo à altura do problema: e, num registro de todo diverso, a única análise que possa ser comparada, em rigor e novidade, àquela que, exatamente quarenta anos antes, Heidegger havia conduzido nos parágrafos 25-38 de Ser e tempo. Só que a dimensão que Heidegger chamava de “impropriedade”, Uneigentlichkeit, não convive mais simplesmente com o ser-próprio, Eigentlich, do homem, mas, tornada autônoma, substituiu inteiramente este, tornando-o impossível.

            Assim, o “espetáculo” de Debord pode ser aproximado, sem se forçar muito, à fase extrema do desenvolvimento da técnica que Heidegger chama de Gestell, e sobre a qual diz ser o maior perigo e, ao mesmo tempo, o pressentimento da apropriação última do homem.

            Se isso é verdade, de que maneira hoje o pensamento pode acolher a herança de Debord? Dado que é claro que o espetáculo é a linguagem, a própria comunicatividade ou o ser linguístico do homem. Isso significa que a análise marxiana deve ser integrada no sentido que o capitalismo – ou, caso se queira em outros termos, o processo que hoje domina a história mundial – não era voltado apenas à expropriação da atividade produtiva, mas também e sobretudo à alienação da própria linguagem, da própria natureza linguística ou comunicativa do homem, daquele Logos no qual um fragmento de Heráclito identifica o “Comum”.

            A forma máxima dessa expropriação do Comum é o espetáculo, isto é, a política que nós vivemos. Isso significa também que, no espetáculo, é nossa própria natureza linguística que em nós é invertida. Por isso – justamente porque a ser expropriada é a possibilidade de um bem comum – a violência do espetáculo é tão devastadora; mas, pela mesma razão, o espetáculo, em cuja forma a humanidade parece estar cegamente indo ao encontro da própria destruição, contém também uma possibilidade positiva extrema, que a humanidade de forma alguma deve deixar escapar.

            O estado espetacular, com efeito e apesar de tudo, permanece um estado que, como todo estado, funda-se, como mostrou Badiou, não na relação social, da qual seria expressão, mas em sua dissolução, que proíbe. Em última instância, o estado pode reconhecer qualquer reivindicação de identidade, até mesmo (e a história das relações entre estado e terrorismo em nosso tempo é uma eloquente confirmação disso) a de uma identidade estatal em seu próprio interior. Mas que das singularidades se façam comunidades sem reivindicação de uma identidade, que humanos co-pertençam sem uma representável condição de pertencimento – o fato de serem italianos, operários, católicos, terroristas – é algo que o estado não pode de maneira alguma tolerar.

            Ainda assim, é o próprio estado espetacular, enquanto nulifica e esvazia de conteúdo toda identidade real, a produzir massivamente em seu seio singularidades que não são mais caracterizadas por nenhuma identidade social nem por qualquer real condição de pertencimento: singularidades verdadeiramente quaisquer.

            Isso pois é certo que a sociedade em que nos foi dado viver é também aquela em que todas as identidades sociais se dissolveram, na qual tudo aquilo que por séculos constituiu a verdade e a mentira das gerações que se sucederam sobre a terra já perdeu qualquer significado. Na pequena burguesia planetária, em cuja forma o espetáculo realizou de forma paradoxal o projeto marxiano de uma sociedade sem classes, as diversas identidades que marcaram a tragicomédia da história universal estão expostas e são acolhidas numa fantasmagórica vacuidade.

            Por isso, se é lícito avançar uma profecia sobre a política que vem, esta não será mais a luta pela conquista ou o controle do estado por parte de novos ou velhos sujeitos sociais, mas a luta entre o estado e o não-estado (a humanidade), disjunção incolmatável das singularidades quaisquer e da organização estatal.

            Isso não tem nada a ver com a simples reivindicação do social contra o estado, que por muito tempo foi o motivo comum de movimentos de contestação em nosso tempo. As singularidades quaisquer numa sociedade espetacular não podem formar uma societas, porque não dispõem de nenhuma identidade para fazer valer, de nenhuma ligação social para fazer reconhecer. Tanto mais implacável é o contraste com um estado que nulifica todos os conteúdos reais, mas para o qual um ser que fosse radicalmente privado de qualquer identidade representável seria, apesar de todas as declarações vazias sobre a sacralidade da vida e sobre os direitos do homem, simplesmente inexistente.

            Essa é a lição que um olhar menos desatento poderia ter retirado dos fatos de Tiananmen. O que mais espanta, de fato, nas manifestações do maio chinês é a relativa ausência de conteúdos determinados e de reivindicações. Democracia e liberdade são noções demasiado genéricas para constituir um objeto real de conflito, e a única demanda concreta, a reabilitação de Hu Yao Bang, foi prontamente acolhida. Ainda mais inexplicável se mostra a violência da reação estatal.

            É provável, todavia, que a desproporção tenha sido apenas aparente e que os dirigentes chineses tenham agido, de seu ponto de vista, com perfeita lucidez. Em Tienanmen o estado encontrou-se diante daquilo que não pode nem quer ser representado e que, todavia, apresenta-se como uma comunidade e uma vida comum. E isso independentemente do fato de que aqueles que se encontram na praça fossem efetivamente conscientes disso. Que o irrepresentável exista e faça comunidade sem pressupostos nem condições de pertencimento (como uma multiplicidade inconsistente, nos termos de Cantor) é precisamente a ameaça com a qual o estado não está disposto a sofrer.

            A singularidade qualquer, que quer apropriar-se do pertencimento mesmo, de seu próprio ser na linguagem, e que, por isso, declina toda identidade e toda condição de pertencimento, é o novo protagonista, não subjetivo nem socialmente consistente, da política que vem. Onde quer que essas singularidades se manifestem pacificamente seu ser comum, aí haverá uma Tiananmen e, cedo ou tarde, apareceram os canhões.

            Quanto a nós, o que quer que aconteça, podemos apenas repetir com Debord as palavras de Marx a Ruge: “Certamente não se pode dizer que eu tenha em muita estima a presente época; mas se não me desespero nela é porque sua situação desesperada me enche de esperança”.

 

Giorgio Agamben, Violenza e speranza nell’ultimo spettacolo, in. Giorgio Agamben et. al, I Situazionisti, Roma, Manifestolibri, 1991, pp. 11-17.

Trad.: Vinícius N. Honesko   

 

Imagem: Praça da Paz Celestial (Tiananmen), junho de 1989.

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